Vivemos numa época em que o valor do ser humano é medido não pela sua essência, mas por sua capacidade de produzir, consumir e vender — inclusive — a si mesmo. A mercantilização do indivíduo é um fenômeno contemporâneo que não se limita ao âmbito econômico, estendendo-se de forma invasiva às relações sociais, à identidade, à saúde mental e à própria percepção do que significa existir.
O ser humano, em sua
complexidade, tem sido transformado numa mercadoria — um objeto que pode ser
comprado, vendido, explorado e descartado. E o mais alarmante: esse processo é
muitas vezes aceito e até desejado pelo próprio indivíduo, que se torna o primeiro
mercador de sua própria existência.
O corpo e a identidade como produtos
Quando se fala em mercadoria, o
que vem à mente são bens tangíveis, produtos com preço de mercado. Mas o corpo
humano e a identidade pessoal também passaram a ser tratados como tais. Na
indústria do fitness, por exemplo, a saúde virou produto a ser vendido.
Academias, suplementos, dietas milagrosas e cirurgias plásticas formam um
mercado bilionário que transforma o corpo numa vitrine — e uma mercadoria a ser
aperfeiçoada para melhor atender as demandas do mercado da beleza e da
eficiência.
Não é apenas o corpo que virou
mercadoria, mas a própria identidade. Redes sociais, aplicativos de
relacionamento, currículos profissionais, portfólios digitais: tudo virou
produto a ser exibido, formatado e vendido. O sujeito se reduz a um conjunto de
atributos que possam ser valorizados, sejam eles físicos, intelectuais ou
emocionais. A própria personalidade é moldada para “vender” uma imagem que
atraia o outro — seja para consumo afetivo, social ou profissional.
Essa transformação da identidade
em produto tem efeitos devastadores. O indivíduo perde a autenticidade e se
torna refém de expectativas externas. A busca incessante por aprovação e
validação passa a ser um imperativo, alimentando um ciclo de ansiedade, frustração
e vazio.
Trabalho: a venda da própria
força de trabalho e da vida
No capitalismo contemporâneo, a
relação mais explícita entre ser humano e mercadoria ocorre no trabalho. O
trabalhador vende sua força de trabalho ao empregador, que por sua vez a
utiliza para gerar lucro. Essa relação, embora fundamental para a economia,
esconde uma violência invisível: a alienação do trabalhador em relação a si
mesmo.
Karl Marx já denunciava essa
condição na análise do trabalho assalariado: o trabalhador torna-se objeto, uma
mercadoria que pode ser comprada e vendida. Mas a mercadoria mais valiosa não é
o objeto produzido, e sim a própria capacidade produtiva humana, que inclui
tempo, energia e criatividade.
Essa mercantilização do ser
humano no trabalho se agravou com o avanço da tecnologia e a cultura do
desempenho. O trabalhador não é mais apenas uma força produtiva física; ele é
também produtor de si mesmo — gerenciando sua imagem, otimizando sua produtividade,
aprimorando habilidades, vendendo sua “marca pessoal” para permanecer
competitivo no mercado.
A expressão “capital humano”
sintetiza essa realidade: o ser humano como capital a ser investido, valorizado
e explorado. O paradoxo é cruel: enquanto se fala em desenvolvimento pessoal, o
indivíduo é compelido a se tornar uma mercadoria melhor, sem que isso garanta
qualquer sentido verdadeiro à sua existência.
A mercadoria emocional e
afetiva
A mercantilização humana não se
restringe ao corpo e ao trabalho. As emoções, a vida afetiva e as relações
interpessoais também são permeadas por essa lógica. O amor, a amizade, o desejo
e até a solidariedade estão contaminados pela cultura do consumo.
Na era digital, por exemplo, as
relações amorosas são mediadas por aplicativos que funcionam como mercados de
opções, onde pessoas são avaliadas, escolhidas e descartadas com base em
critérios superficiais, semelhantes aos usados para comprar um produto. A ideia
de “match” reduz o encontro humano a uma transação rápida e impessoal.
Além disso, o capitalismo
emocional induz o indivíduo a consumir produtos e serviços como forma de
preencher o vazio afetivo, transformando a busca por felicidade em um exercício
de consumo constante. A felicidade, assim, vira mercadoria, vendida em doses
pequenas por meio da publicidade, da cultura do espetáculo e da manipulação dos
desejos.
A mercadoria do tempo e da
atenção
Vivemos também a mercantilização
do tempo e da atenção. Na sociedade acelerada, o tempo é visto como recurso
escasso e valioso, que deve ser investido, economizado e rentabilizado. O tempo
livre, que poderia ser dedicado à contemplação, à reflexão ou à convivência
genuína, é frequentemente ocupado por atividades que geram lucro ou
visibilidade.
Plataformas digitais capturam a
atenção dos usuários e transformam-na em mercadoria vendida para anunciantes. O
indivíduo, por sua vez, torna-se produto para ser consumido em forma de dados,
cliques e engajamento.
A atenção fragmentada e
superficial compromete a profundidade das relações humanas e da experiência
vivida. A mercantilização do tempo rouba do indivíduo a possibilidade de
simplesmente ser, de existir sem pressa, sem objetivo utilitário.
A ilusão da autonomia e do
controle
Um dos aspectos mais trágicos da
mercantilização do ser humano é a ilusão de que o sujeito exerce controle total
sobre essa condição. O discurso dominante promove a ideia do “empreendedor de
si mesmo” — aquele que pode gerir sua vida, seu corpo, suas emoções e seu
trabalho como um negócio próprio.
Mas essa autonomia aparente é na
verdade uma nova forma de subjugação. Ao internalizar a lógica mercadológica, o
indivíduo se cobra incessantemente por resultados, desempenho e sucesso,
tornando-se um empresário de si mesmo, sempre vigilante para não “falhar” ou
ser descartado.
Essa mercantilização voluntária,
em vez de libertar, aprisiona o sujeito em uma rede de expectativas,
comparações e competição. O preço a pagar é o desgaste físico e mental, a
ansiedade, a sensação de solidão e a perda do sentido profundo da existência.
A resistência possível
Embora a mercantilização do ser
humano pareça avassaladora e irreversível, há sempre possibilidades de
resistência. A consciência crítica sobre esse fenômeno é o primeiro passo para
que o indivíduo recupere sua humanidade além do valor de troca.
Resistir à mercantilização
implica resgatar a autenticidade da experiência, cultivar o tempo para a
reflexão e a contemplação, valorizar as relações humanas desinteressadas,
buscar sentido para além do sucesso material e da performance.
A prática da atenção plena, a
busca por silêncio interior, o cultivo da empatia e do amor verdadeiro são
formas de insurgência contra a lógica mercadológica que quer transformar tudo —
inclusive o ser humano — em mercadoria.
Considerações finais
O ser humano como mercadoria de
si mesmo é uma das grandes tragédias da contemporaneidade. A redução da
existência a valor de mercado aliena o sujeito da sua essência, transforma
relações em transações e gera um vazio existencial profundo.
Entender essa dinâmica é
fundamental para que possamos reconstruir um modo de vida que respeite a
dignidade humana, onde o ser seja valorizado para além de sua utilidade
econômica, e onde a vida possa ser vivida com sentido, plenitude e liberdade.
A mercantilização é um fenômeno
poderoso, mas não invencível. A saída está na redescoberta da humanidade, na
valorização do ser em si, e na recusa a ser objeto, produto ou mercadoria —
mesmo que essa recusa seja um ato de coragem e solidão em meio à farsa global.