Há uma morte que salva. E há uma vida que mata. A maioria vive — e morre — sem jamais ter conhecido a primeira.
A sabedoria perene, os grandes
mestres e os raros que rasgaram o véu da ilusão repetem isso em diferentes
linguagens: "Morra antes de morrer". Porque quem não morre antes da
morte, sucumbe inteiro no fim. Nada se salva do que não foi queimado em vida.
Mas o homem comum, hipnotizado
pelo seu nome, pela sua história, pelos seus traumas, medos e pequenas glórias,
insiste em adiar essa morte essencial. Ele vive defendendo seu personagem. O
"eu" que ele acha que é. Agarra-se aos seus gostos, às suas certezas,
à sua identidade como um náufrago a uma tábua podre no meio do naufrágio.
Esse é o indivíduo que não morreu
antes de morrer. Viveu com medo, morreu no medo. Nunca atravessou o próprio
abismo.
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O observador desperto, aquele que
morreu em vida, sabe que não há nada a salvar da velha estrutura. Não há o que
preservar do personagem, da identidade, da narrativa pessoal. Ele permitiu que
tudo fosse queimado, desfeito, desintegrado. Vive em estado de ausência de si —
não como fuga, mas como libertação.
Essa morte não é simbólica. Ela é
existencial. É uma demolição silenciosa. A quebra do feitiço do “eu”.
Morrer antes de morrer é
entregar-se à incineração do falso. É parar de negociar com as defesas
psíquicas. É observar sem amortecedores. É renunciar à posição central da
mente, que insiste em querer ser autora, vítima, salvadora e estrela da própria
farsa.
A morte do indivíduo não é
suicídio físico, mas sim psicológico. Não é desistência da vida, mas
desistência da ilusão. Quem morre antes da morte biológica experimenta a
liberdade radical. Um estado sem centro, sem exigências, sem máscara — onde
nada mais precisa se provar ou se justificar.
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Mas quem é o indivíduo que não
morreu antes de morrer?
É aquele que vive para sustentar
seu papel no teatro social. É aquele que reza para o céu enquanto negocia com
seus vícios. É aquele que teme o ridículo, o fracasso, a exclusão. É aquele que
vive no modo sobrevivência, mas finge plenitude. É aquele que multiplica metas,
títulos, etiquetas, mas nunca se senta no silêncio de si mesmo.
É aquele que exige sentido, mas
não suporta o vazio que revela o real. Este indivíduo é uma ficção em
manutenção. Um fantasma que se alimenta de distrações, de opiniões alheias, de
validação externa. Vive em negação da sua condição de ser impermanente, finito,
e fundamentalmente só.
E então, quando a morte real
chega — como chegará para todos — ela o encontra despreparado, colado à sua
história, carregado de desejos não saciados, pendurado em arrependimentos, com
o peito pesado de não-ditos. Ele não se dissolveu antes da dissolução. E por
isso, morre sem conhecer a liberdade.
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O observador que morreu em vida é
um sobrevivente do fogo interno. Ele não é um asceta, nem um iluminado de
vitrine. É apenas alguém que teve a coragem de não se poupar. Alguém que olhou
sua própria mentira, suas compulsões, manias, apegos e tendências, sem piedade,
sem rodeios, sem fuga.
Esse observador não é mais
“alguém” no sentido comum. Ele é um espaço consciente. Um não-eu que observa o
mundo com olhos limpos de necessidade. Ele não pertence ao script coletivo. Não
se encaixa. Não se vende. Não se repete.
Ele sabe que a única revolução
possível é morrer. Morrer para o falso. Morrer para o passado. Morrer para o
nome, a história, os desejos, os sonhos herdados.
E dessa morte — paradoxalmente —
nasce uma vida nova. Uma vida livre do tempo psicológico. Uma presença viva,
espontânea, selvagem. Uma vida sem dono.
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O indivíduo que não morreu antes
de morrer busca, medita, ora, lê livros espirituais — mas não se entrega. Ele
quer evoluir sem se desfazer. Quer manter o trono e se declarar livre. Quer
acordar, mas com garantias. Quer transcender, mas desde que a conta bancária
esteja segura, o relacionamento estável, a reputação intacta.
Ele nunca vai acordar. Porque não
se acorda com acordos. A verdade não é gentil com quem negocia.
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A morte antes da morte exige uma
radicalidade quase insana. É preciso rasgar os contratos invisíveis com a
mentira. É preciso desobedecer os comandos internos do condicionamento. É
preciso abrir mão da necessidade de ser alguém — mesmo que isso cause medo,
solidão, desorientação.
E causa. A morte do falso dói.
Ela arranca os alicerces de uma vida inteira. Derruba muros, queima pontes,
dissolve ilusões queridas. Deixa o chão nu, o céu exposto, a alma sem escudo.
Mas logo se percebe: tudo o que
caiu era prisão. Tudo o que ardeu era carga inútil. E tudo o que resta é o que
nunca nasceu — e, por isso, não pode morrer.
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Este é o paradoxo supremo do
observador desperto: Ele morreu para o indivíduo — mas vive como presença. Ele
não é mais alguém — mas está mais vivo que nunca.
Ele não pertence ao mundo — mas age nele com lucidez, precisão e desinteresse.
Ele não quer mudar ninguém. Não quer convencer. Não quer
conduzir. Ele apenas é. E esse “ser” é suficiente para rasgar a malha da
inconsciência onde passa.
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O indivíduo que não morreu antes
de morrer vive com medo do fim. Mas o fim já chegou. Ele apenas não percebeu.
Viveu tanto no amanhã que não viu que a vida já está se despedindo em cada
respiração.
Já o observador desperto vive sem
futuro. Não espera nada. Não projeta sentido. Não cria esperança. Vive no agora
cru, e por isso, é presença pura — e presença é eternidade em forma de
instante.
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Essa morte não é uma conquista. É
uma rendição. Não é um mérito. É uma desaparição. E não é um prêmio. É o fim da
busca.
Por isso tão poucos se aproximam
dessa fronteira. Por isso tantos morrem sem ter vivido.
Porque viver — de verdade — só é
possível quando o falso morre. E isso exige tudo.
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Morrer antes de morrer não é um
evento. É um processo de desmantelamento interior. É um colapso íntimo que só
pode ser atravessado no silêncio, no vazio, na entrega total.
Não há técnica. Não há fórmula. Não
há método. Há apenas um abandono. Um fim voluntário.
E então, no silêncio depois do
fim, surge uma nova presença. Um ser sem nome. Um olhar sem dono. Um amor sem
forma.
Este é o observador. Aquele que
morreu — e por isso, vive. Aquele que não tem mais nada a perder — e por isso,
é livre.
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Quem ainda teme a morte é porque
ainda não viveu de verdade. Quem ainda se agarra à sua identidade é porque não
descobriu o que há por trás do teatro.
A pergunta final não é "o
que farei da minha vida?" Mas sim: "Você já morreu antes de
morrer?"
Porque tudo depende disso.