Sem ter experienciado o estado incondicionado, é praticamente impossível se dar conta da farsa desse estado limitado. E isso é um dos paradoxos mais cruéis da travessia.
Enquanto
o indivíduo só conhece o estado condicionado, a mente funciona como uma bolha
autorreferente: ela acredita que aquilo que experimenta é a realidade última.
Dentro desse circuito fechado, as crenças, os valores herdados, as
interpretações e até mesmo as suas dúvidas já estão contaminadas pelo mesmo
condicionamento. É como tentar escapar de uma prisão sem perceber que se está
dentro de uma.
Por
isso, o estado condicionado se autoalimenta: ele oferece sensações de verdade —
convicções, dogmas, explicações “sagradas” ou ideologias — que mascaram sua
própria limitação. A mente condicionada se sente segura nos limites do
conhecido, e quando surge um lampejo de ruptura (um silêncio inesperado, uma
experiência de presença, uma percepção não mediada), imediatamente ela tenta
enquadrar esse lampejo dentro de velhos moldes, neutralizando-o.
Somente
quando, por alguma fenda — crise iniciática, choque existencial, colapso
psicológico, ou até mesmo um instante de graça sem causa aparente — o indivíduo
prova o sabor do não-condicionado, mesmo que por segundos, ele percebe a
brutalidade da farsa. É como sair de um quarto abafado pela primeira vez e
respirar o ar puro de uma montanha: só então se dá conta de que sempre viveu
asfixiado.
Sem
essa experiência, o discurso sobre liberdade, verdade ou despertar vira apenas
mais um produto dentro do catálogo dos condicionamentos.
Com
essa experiência, mesmo que fugaz, todo o resto perde a consistência que antes
parecia absoluta.
...
O
ser humano vive, desde o nascimento, submerso num oceano invisível de
condicionamentos. Ele aprende a falar, a pensar, a se mover, a interpretar, a
desejar, a temer — tudo dentro de um molde já estabelecido muito antes de sua
chegada. A família, a cultura, a religião, a escola, os rituais sociais, as
narrativas coletivas, tudo converge para dar forma a uma entidade chamada “eu”.
Esse “eu”, no entanto, não é o ser em si, mas apenas um personagem feito de
memórias, hábitos e reações. O problema é que o personagem acredita ser o todo,
e essa crença cria uma bolha impenetrável, onde tudo é interpretado através das
lentes do condicionamento.
Dentro
desse estado limitado, não há como ver a farsa de maneira plena. É como tentar
enxergar a água enquanto ainda se está totalmente mergulhado nela. O
condicionado toma a si mesmo como referência última: suas alegrias e tristezas,
suas convicções e incertezas, suas esperanças e medos. Tudo isso é vivido com
intensidade, mas não passa de uma repetição. Mesmo quando acredita estar se
rebelando contra o sistema, geralmente o faz dentro das alternativas já
previstas pelo mesmo sistema. O condicionamento tem a astúcia de incluir também
o “inimigo do condicionamento” dentro de seu cardápio. Assim, a sensação de
liberdade é, em grande parte, apenas um disfarce de prisão.
E,
no entanto, algo em nós não se contenta. Há momentos em que a engrenagem falha.
Às vezes, por meio de uma crise iniciática profunda — uma depressão, uma perda
irreparável, uma falência das certezas mais íntimas — o indivíduo se vê despido
de suas proteções. O que antes oferecia chão desaparece. O que antes era
identidade dissolve. Outras vezes, é um instante de silêncio, um pôr do sol, um
encontro inesperado com a morte ou com a intensidade do amor, que abre uma
fenda no automatismo. Nessas brechas, surge um vislumbre do que não é
condicionado.
Esse
vislumbre não pode ser fabricado pela vontade. Ele acontece. Não é resultado de
técnicas, nem de repetições, nem de disciplina. Pode ser provocado
indiretamente, quando a mente chega a um ponto de exaustão em suas tentativas
de controlar a vida, mas o salto em si é sempre graça. É um relâmpago que
ilumina, ainda que por segundos, a prisão inteira. Nesse instante, o ser
percebe que a vida não se reduz aos conceitos, que o “eu” é apenas uma
construção passageira, que há algo respirando além de toda narrativa.
O
impacto desse relâmpago é devastador. O que antes parecia sólido — os valores
sociais, as opiniões religiosas, as certezas morais — de repente revela sua
fragilidade. O mundo inteiro aparece como uma trama de crenças compartilhadas,
mas não como verdade absoluta. O indivíduo se vê diante do abismo: “Se não sou
esse ‘eu’ condicionado, quem sou? Se tudo isso é construção, o que permanece
quando as construções caem?” Essa pergunta não é intelectual, é existencial.
Ela corrói por dentro.
É
nesse ponto que o falso personagem, essa máquina de sobrevivência psicológica,
reage com toda a sua força. Ele sabe que está em risco. E por isso,
imediatamente, tenta sequestrar o vislumbre. Uma das estratégias é transformar
a experiência em lembrança especial: “Eu tive uma experiência espiritual
extraordinária.” Nesse instante, o incondicionado já foi recapturado e embalado
dentro do condicionado. Outra estratégia é criar uma nova identidade: “Sou
alguém que viu além”, “Sou diferente dos demais”, “Sou iluminado em potencial”.
Mais uma vez, a prisão muda de decoração, mas continua a ser prisão.
O falso
personagem também pode reagir com medo. O contato com o incondicionado é, ao
mesmo tempo, libertador e aterrador. Libertador porque mostra que nada nos
aprisiona de fato. Aterrador porque mostra que o “eu”, ao qual nos agarrávamos,
não tem substância real. Esse terror pode ser tão grande que o indivíduo corre
de volta para suas antigas crenças, agarrando-se a elas como se agarrasse um
salva-vidas. Ele prefere voltar à ilusão confortável do conhecido a suportar o
abismo do desconhecido.
A
farsa do estado condicionado só se revela por contraste. Quem nunca provou o ar
puro não sabe que estava sufocado. Quem nunca saiu da caverna não percebe as
sombras como sombras; acredita que são a realidade em si. Por isso, a maior
parte da humanidade continua a viver integralmente no ciclo do condicionamento,
sem suspeitar. E mesmo os que suspeitam, se não experimentaram o
não-condicionado, acabam transformando sua suspeita em teoria, filosofia ou
espiritualidade dogmática — que, no fim, continuam sendo apenas prolongamentos
da prisão.
O
que muda tudo é a experiência direta, ainda que breve. Um silêncio que não é
forçado, mas acontece. Uma clareza que não é construída, mas irrompe. Uma
ausência de centro psicológico que, por alguns instantes, mostra que a vida é
plena em si, sem a mediação do “eu”. Esse instante não pode ser repetido sob
comando, e qualquer tentativa de repeti-lo já o transforma em memória
condicionada. Mas, uma vez experimentado, ele deixa uma marca impossível de
apagar. O indivíduo pode até retornar ao jogo social, às crenças, às práticas
espirituais, mas no fundo sabe que algo maior existe além de tudo isso.
E
aqui surge outro perigo: a tentativa de transformar o relâmpago em sistema.
Muitos que tiveram vislumbres autênticos criaram métodos, tradições,
programações com sequência de passos espirituais, comunidades, tentando
organizar aquilo que, por natureza, é inorganizado. E ao fazerem isso, acabaram
traindo a essência da experiência. Porque o incondicionado não pode ser
ensinado como técnica, não pode ser programado, não pode ser vendido como
curso, não pode ser acumulado como patrimônio. Ele é sempre novo, sempre
fresco, sempre fora do alcance da memória.
O
caminho não está em fabricar a experiência, mas em desfazer os obstáculos que
impedem sua irrupção. Esses obstáculos são os condicionamentos que se colam à
mente: o medo, o desejo de controle, a identificação com papéis, a compulsão
por segurança, os apegos e falsas dependências. Quando esses movimentos são
observados sem julgamento e sem fuga, algo neles se dissolve. E, no vazio que
fica, o incondicionado, com sua lucidez amorosa e integrativa e com sua
capacidade de amor impessoal, pode se estabilizar — não como conquista, mas
como revelação.
Esse
processo, no entanto, exige coragem para atravessar o que chamamos de “abismo
do terror”. Porque ele não promete garantias, não oferece certezas, não
sustenta identidades. Ele arranca o chão sob os pés. Ele destrói as muletas
psicológicas. Ele deixa o indivíduo nu diante do mistério da existência. E
quase ninguém está disposto a esse grau de exposição. Por isso, a maioria se
contenta com substitutos: dogmas confortáveis, técnicas espirituais, promessas
de salvação futura. Esses substitutos mantêm a sensação de busca, mas
neutralizam a possibilidade de encontro.
Quando
a fenda se abre e o incondicionado se revela, ainda que brevemente, a vida
nunca mais é a mesma. O indivíduo pode resistir, pode tentar esquecer, pode se
esconder nas velhas estruturas. Mas o gosto do ar puro não se apaga. Ele sabe
que a prisão é prisão. Ele sabe que as crenças são construções. Ele sabe que o
“eu” é um fantasma. E esse saber — não intelectual, mas existencial — já é o
início de um processo irreversível.
A
travessia que se segue é longa e cheia de armadilhas. O falso personagem não
desaparece de uma vez; ele se reinventa, se adapta, cria novas ilusões. A cada
passo, ele tenta capturar o frescor do incondicionado e transformá-lo em
memória, método ou identidade. Mas a vigilância atenta, a observação
silenciosa, a recusa de se prender a qualquer forma, permitem que o contato com
o real se aprofunde. E assim, pouco a pouco, o estado condicionado vai perdendo
sua tirania.
No
fim, não se trata de alcançar algo, mas de deixar cair o que nunca foi real.
Não se trata de conquistar o incondicionado, mas de perceber que ele sempre
esteve presente, encoberto pelos véus do condicionamento. A fenda inicial é
apenas um lembrete. O trabalho é não permitir que o falso personagem transforme
esse lembrete em mais uma prisão.
O
paradoxo permanece: sem experienciar o incondicionado, não é possível perceber
a farsa do condicionado; mas para experienciar o incondicionado, é preciso
deixar que o condicionado, em algum momento, entre em colapso. Esse colapso
pode vir como crise, dor, fracasso, vazio. Ele é muitas vezes sentido como
morte. E, de certo modo, é morte: a morte do “eu” como centro absoluto. Mas é
também o nascimento daquilo que sempre esteve vivo além das máscaras e da
forçosa representação de papéis.
E
quando isso acontece, mesmo que por um instante, a farsa se expõe. E, uma vez
vista, já não pode ser totalmente acreditada.