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domingo, 31 de agosto de 2025

O vislumbre do incondicionado e a farsa do estado condicionado

Sem ter experienciado o estado incondicionado, é praticamente impossível se dar conta da farsa desse estado limitado. E isso é um dos paradoxos mais cruéis da travessia.

Enquanto o indivíduo só conhece o estado condicionado, a mente funciona como uma bolha autorreferente: ela acredita que aquilo que experimenta é a realidade última. Dentro desse circuito fechado, as crenças, os valores herdados, as interpretações e até mesmo as suas dúvidas já estão contaminadas pelo mesmo condicionamento. É como tentar escapar de uma prisão sem perceber que se está dentro de uma.

Por isso, o estado condicionado se autoalimenta: ele oferece sensações de verdade — convicções, dogmas, explicações “sagradas” ou ideologias — que mascaram sua própria limitação. A mente condicionada se sente segura nos limites do conhecido, e quando surge um lampejo de ruptura (um silêncio inesperado, uma experiência de presença, uma percepção não mediada), imediatamente ela tenta enquadrar esse lampejo dentro de velhos moldes, neutralizando-o.

Somente quando, por alguma fenda — crise iniciática, choque existencial, colapso psicológico, ou até mesmo um instante de graça sem causa aparente — o indivíduo prova o sabor do não-condicionado, mesmo que por segundos, ele percebe a brutalidade da farsa. É como sair de um quarto abafado pela primeira vez e respirar o ar puro de uma montanha: só então se dá conta de que sempre viveu asfixiado.

Sem essa experiência, o discurso sobre liberdade, verdade ou despertar vira apenas mais um produto dentro do catálogo dos condicionamentos.

Com essa experiência, mesmo que fugaz, todo o resto perde a consistência que antes parecia absoluta.

...

O ser humano vive, desde o nascimento, submerso num oceano invisível de condicionamentos. Ele aprende a falar, a pensar, a se mover, a interpretar, a desejar, a temer — tudo dentro de um molde já estabelecido muito antes de sua chegada. A família, a cultura, a religião, a escola, os rituais sociais, as narrativas coletivas, tudo converge para dar forma a uma entidade chamada “eu”. Esse “eu”, no entanto, não é o ser em si, mas apenas um personagem feito de memórias, hábitos e reações. O problema é que o personagem acredita ser o todo, e essa crença cria uma bolha impenetrável, onde tudo é interpretado através das lentes do condicionamento.

Dentro desse estado limitado, não há como ver a farsa de maneira plena. É como tentar enxergar a água enquanto ainda se está totalmente mergulhado nela. O condicionado toma a si mesmo como referência última: suas alegrias e tristezas, suas convicções e incertezas, suas esperanças e medos. Tudo isso é vivido com intensidade, mas não passa de uma repetição. Mesmo quando acredita estar se rebelando contra o sistema, geralmente o faz dentro das alternativas já previstas pelo mesmo sistema. O condicionamento tem a astúcia de incluir também o “inimigo do condicionamento” dentro de seu cardápio. Assim, a sensação de liberdade é, em grande parte, apenas um disfarce de prisão.

E, no entanto, algo em nós não se contenta. Há momentos em que a engrenagem falha. Às vezes, por meio de uma crise iniciática profunda — uma depressão, uma perda irreparável, uma falência das certezas mais íntimas — o indivíduo se vê despido de suas proteções. O que antes oferecia chão desaparece. O que antes era identidade dissolve. Outras vezes, é um instante de silêncio, um pôr do sol, um encontro inesperado com a morte ou com a intensidade do amor, que abre uma fenda no automatismo. Nessas brechas, surge um vislumbre do que não é condicionado.

Esse vislumbre não pode ser fabricado pela vontade. Ele acontece. Não é resultado de técnicas, nem de repetições, nem de disciplina. Pode ser provocado indiretamente, quando a mente chega a um ponto de exaustão em suas tentativas de controlar a vida, mas o salto em si é sempre graça. É um relâmpago que ilumina, ainda que por segundos, a prisão inteira. Nesse instante, o ser percebe que a vida não se reduz aos conceitos, que o “eu” é apenas uma construção passageira, que há algo respirando além de toda narrativa.

O impacto desse relâmpago é devastador. O que antes parecia sólido — os valores sociais, as opiniões religiosas, as certezas morais — de repente revela sua fragilidade. O mundo inteiro aparece como uma trama de crenças compartilhadas, mas não como verdade absoluta. O indivíduo se vê diante do abismo: “Se não sou esse ‘eu’ condicionado, quem sou? Se tudo isso é construção, o que permanece quando as construções caem?” Essa pergunta não é intelectual, é existencial. Ela corrói por dentro.

É nesse ponto que o falso personagem, essa máquina de sobrevivência psicológica, reage com toda a sua força. Ele sabe que está em risco. E por isso, imediatamente, tenta sequestrar o vislumbre. Uma das estratégias é transformar a experiência em lembrança especial: “Eu tive uma experiência espiritual extraordinária.” Nesse instante, o incondicionado já foi recapturado e embalado dentro do condicionado. Outra estratégia é criar uma nova identidade: “Sou alguém que viu além”, “Sou diferente dos demais”, “Sou iluminado em potencial”. Mais uma vez, a prisão muda de decoração, mas continua a ser prisão.

O falso personagem também pode reagir com medo. O contato com o incondicionado é, ao mesmo tempo, libertador e aterrador. Libertador porque mostra que nada nos aprisiona de fato. Aterrador porque mostra que o “eu”, ao qual nos agarrávamos, não tem substância real. Esse terror pode ser tão grande que o indivíduo corre de volta para suas antigas crenças, agarrando-se a elas como se agarrasse um salva-vidas. Ele prefere voltar à ilusão confortável do conhecido a suportar o abismo do desconhecido.

A farsa do estado condicionado só se revela por contraste. Quem nunca provou o ar puro não sabe que estava sufocado. Quem nunca saiu da caverna não percebe as sombras como sombras; acredita que são a realidade em si. Por isso, a maior parte da humanidade continua a viver integralmente no ciclo do condicionamento, sem suspeitar. E mesmo os que suspeitam, se não experimentaram o não-condicionado, acabam transformando sua suspeita em teoria, filosofia ou espiritualidade dogmática — que, no fim, continuam sendo apenas prolongamentos da prisão.

O que muda tudo é a experiência direta, ainda que breve. Um silêncio que não é forçado, mas acontece. Uma clareza que não é construída, mas irrompe. Uma ausência de centro psicológico que, por alguns instantes, mostra que a vida é plena em si, sem a mediação do “eu”. Esse instante não pode ser repetido sob comando, e qualquer tentativa de repeti-lo já o transforma em memória condicionada. Mas, uma vez experimentado, ele deixa uma marca impossível de apagar. O indivíduo pode até retornar ao jogo social, às crenças, às práticas espirituais, mas no fundo sabe que algo maior existe além de tudo isso.

E aqui surge outro perigo: a tentativa de transformar o relâmpago em sistema. Muitos que tiveram vislumbres autênticos criaram métodos, tradições, programações com sequência de passos espirituais, comunidades, tentando organizar aquilo que, por natureza, é inorganizado. E ao fazerem isso, acabaram traindo a essência da experiência. Porque o incondicionado não pode ser ensinado como técnica, não pode ser programado, não pode ser vendido como curso, não pode ser acumulado como patrimônio. Ele é sempre novo, sempre fresco, sempre fora do alcance da memória.

O caminho não está em fabricar a experiência, mas em desfazer os obstáculos que impedem sua irrupção. Esses obstáculos são os condicionamentos que se colam à mente: o medo, o desejo de controle, a identificação com papéis, a compulsão por segurança, os apegos e falsas dependências. Quando esses movimentos são observados sem julgamento e sem fuga, algo neles se dissolve. E, no vazio que fica, o incondicionado, com sua lucidez amorosa e integrativa e com sua capacidade de amor impessoal, pode se estabilizar — não como conquista, mas como revelação.

Esse processo, no entanto, exige coragem para atravessar o que chamamos de “abismo do terror”. Porque ele não promete garantias, não oferece certezas, não sustenta identidades. Ele arranca o chão sob os pés. Ele destrói as muletas psicológicas. Ele deixa o indivíduo nu diante do mistério da existência. E quase ninguém está disposto a esse grau de exposição. Por isso, a maioria se contenta com substitutos: dogmas confortáveis, técnicas espirituais, promessas de salvação futura. Esses substitutos mantêm a sensação de busca, mas neutralizam a possibilidade de encontro.

Quando a fenda se abre e o incondicionado se revela, ainda que brevemente, a vida nunca mais é a mesma. O indivíduo pode resistir, pode tentar esquecer, pode se esconder nas velhas estruturas. Mas o gosto do ar puro não se apaga. Ele sabe que a prisão é prisão. Ele sabe que as crenças são construções. Ele sabe que o “eu” é um fantasma. E esse saber — não intelectual, mas existencial — já é o início de um processo irreversível.

A travessia que se segue é longa e cheia de armadilhas. O falso personagem não desaparece de uma vez; ele se reinventa, se adapta, cria novas ilusões. A cada passo, ele tenta capturar o frescor do incondicionado e transformá-lo em memória, método ou identidade. Mas a vigilância atenta, a observação silenciosa, a recusa de se prender a qualquer forma, permitem que o contato com o real se aprofunde. E assim, pouco a pouco, o estado condicionado vai perdendo sua tirania.

No fim, não se trata de alcançar algo, mas de deixar cair o que nunca foi real. Não se trata de conquistar o incondicionado, mas de perceber que ele sempre esteve presente, encoberto pelos véus do condicionamento. A fenda inicial é apenas um lembrete. O trabalho é não permitir que o falso personagem transforme esse lembrete em mais uma prisão.

O paradoxo permanece: sem experienciar o incondicionado, não é possível perceber a farsa do condicionado; mas para experienciar o incondicionado, é preciso deixar que o condicionado, em algum momento, entre em colapso. Esse colapso pode vir como crise, dor, fracasso, vazio. Ele é muitas vezes sentido como morte. E, de certo modo, é morte: a morte do “eu” como centro absoluto. Mas é também o nascimento daquilo que sempre esteve vivo além das máscaras e da forçosa representação de papéis.

E quando isso acontece, mesmo que por um instante, a farsa se expõe. E, uma vez vista, já não pode ser totalmente acreditada.

 

 

 

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill