A Vontade de Deus como condicionamento
Um dos condicionamentos mais
profundos que se enraízam na mente humana, não vem da família, nem da escola,
nem da política. Ele vem disfarçado de sagrado, envolto em devoção, sustentado
pela promessa de redenção: o condicionamento de que é preciso fazer a vontade
de Deus.
Essa frase, repetida em templos, em
grupos espiritualistas, livros e tradições, parece, à primeira vista, um
chamado elevado, uma entrega à transcendência. Mas, por trás da aparência, há
um mecanismo sutil e poderoso de aprisionamento psíquico. Ele atua nas camadas
mais íntimas da mente, incutindo culpa, medo e obediência cega. O sujeito,
desde cedo, aprende a desconfiar de si mesmo, a suspeitar de seus impulsos, a
acreditar que suas escolhas são falhas, pecaminosas ou indignas. O que sobra é
a rendição não à vida em sua plenitude, mas a um sistema de controle travestido
de divindade.
A fábrica da submissão espiritual
A noção de “fazer a vontade de
Deus” sempre foi usada como ferramenta pedagógica e política. Pedagógica porque
molda o sujeito desde a infância, ensinando-o que sua autonomia é perigosa, que
seus desejos são suspeitos, que seus pensamentos são frágeis diante da grandeza
de um ser invisível que o observa em silêncio. Política porque, ao reduzir o sujeito
a um servo da vontade divina, torna-se mais fácil transformá-lo em servo das
instituições que afirmam representar essa divindade.
A criança que é ensinada a
acreditar que desobedecer a Deus é o maior dos pecados carrega consigo uma
ferida invisível. Essa ferida a acompanha na adolescência e na vida adulta: uma
sensação difusa de inadequação, um medo constante de errar, uma insegurança
crônica em relação a suas próprias decisões. Ela cresce acreditando que só é
digna se alinhar sua vida a um plano divino que nunca lhe é revelado de fato,
mas que é constantemente interpretado por autoridades externas.
O medo como disciplina
O que mantém esse condicionamento
vivo não é o amor por Deus, mas o medo da sua ausência. O medo de ser
rejeitado, castigado, lançado ao sofrimento eterno. O medo de viver sem
direção, de ser apenas um ser humano comum, imperfeito e livre.
Esse medo é cultivado de forma
silenciosa. Nas entrelinhas dos sermões, nos olhares de reprovação, nos manuais
de conduta espiritual. Ele não precisa ser explicitado em palavras fortes;
basta estar implícito na lógica: se você não fizer a vontade de Deus, estará
perdido: não terá o despertar espiritual e muito menos uma mensagem para
transmitir aos que ainda sofrem. Esse “estar perdido” assume várias faces:
condenação eterna, fracasso existencial, vazio interior, exclusão comunitária.
Assim, a psique se habitua a
viver sob vigilância constante. Como se houvesse um juiz invisível dentro da
mente, analisando cada impulso, cada desejo, cada pensamento. O resultado é uma
vida vivida em tensão, em autocensura, em permanente tentativa de adequação a
um padrão inalcançável.
A autocastração do sujeito
No fundo, o condicionamento de
fazer a vontade de Deus é uma forma de autocastração espiritual. O
condicionamento diz: sua vontade não vale nada. Sua inteligência é suspeita.
Seu coração é enganoso. Suas paixões são perigosas.
O que se espera do sujeito é uma
rendição total a algo que não pode ser verificado. Mas, ao mesmo tempo, essa
rendição nunca é suficiente. Não importa o quanto o sujeito se esforce, sempre
haverá a sensação de que poderia ter feito mais, de que falhou em algum
detalhe, de que não se entregou completamente. Essa culpa constante se torna
combustível para as instituições religiosas, que oferecem perdão, absolvição ou
direção em troca de submissão contínua.
A consequência é devastadora: o sujeito
perde a confiança em si mesmo. Não consegue ouvir sua própria intuição, não
reconhece a legitimidade de seus próprios movimentos internos. Vive alienado de
sua natureza, porque aprendeu que sua vontade é inimiga de Deus.
A manipulação do sagrado
O mais cruel desse
condicionamento é que ele sequestra algo legítimo: a busca pelo estado de ser
que transcende todo implante sistêmico, todo condicionamento. O ser humano tem,
de fato, uma abertura inata para o mistério, para aquilo que está além da
compreensão racional. Há uma sede de absoluto, uma fome de plenitude, um
chamado silencioso para algo maior.
Mas essa busca, em vez de ser um
caminho de liberdade e descoberta, é canalizada para dentro de uma estrutura de
controle. O desejo genuíno de comunhão com o mistério é transformado em
obediência a dogmas, em disciplina moral, em servidão a figuras de autoridade.
O transcendente é reduzido a uma figura punitiva que precisa ser agradada.
E, assim, o que poderia ser uma
experiência de libertação torna-se uma prisão dourada. O ser humano se ajoelha
diante de uma imagem que ele mesmo projetou, mas que agora o escraviza.
A violência invisível
Poucos percebem a violência que
isso causa. Não é a violência física das guerras ou da repressão política, mas
uma violência silenciosa contra o ser anterior a todo implante sistêmico.
O sujeito aprende a se culpar por
sentir prazer, por desejar liberdade, por questionar a ordem estabelecida, por
querer exercer sua vontade. Aprende a desconfiar de seus próprios pensamentos,
como se eles fossem tentações do mal. Aprende a olhar para si mesmo com
desconfiança e vergonha. Essa violência não deixa marcas no corpo, mas corrói a
estabilidade mental e emocional.
Muitos carregam essa ferida por
toda a vida. Alguns tentam abafá-la com uma religiosidade mais intensa,
acreditando que quanto mais servirem, quanto mais jejuarem no que diz respeito
as suas vontades, mais perto estarão de Deus. Outros tentam fugir, mergulhando
em vícios ou em ideologias que prometem uma libertação artificial. Mas a marca
da castração espiritual continua ali, operando em silêncio.
A falácia da vontade divina
Se olharmos com clareza, a ideia
de que existe uma “vontade de Deus” que precisa ser obedecida é insustentável.
Primeiro, porque cada tradição religiosa descreve essa vontade de forma
diferente, muitas vezes contraditória. O que é “vontade de Deus” para um
muçulmano pode ser heresia para um cristão. O que é “vontade de Deus” para um
hindu pode ser blasfêmia para um judeu.
Segundo, porque essa vontade
nunca é comunicada diretamente ao sujeito. Ela sempre chega mediada por livros,
autoridades, tradições. Ou seja, o que chamamos de “vontade de Deus” é, na
prática, a vontade das instituições que dizem representá-lo.
Terceiro, porque a própria ideia
de uma vontade divina pressupõe que o ser humano é incapaz de viver em harmonia
com a vida por si mesmo. Essa suposição é falsa. A vida, quando observada sem o
véu do medo e do condicionamento, tem uma inteligência própria, uma ordem
silenciosa que não precisa ser imposta de fora.
O retorno à confiança interior
O caminho de libertação desse
condicionamento não está em negar ou não negar Deus e sua vontade. Está em
recuperar a confiança na vida que pulsa dentro de nós, na inteligência
silenciosa da consciência. Não está na obediência a mandamentos ou passos externos,
mas em permitir que a vida se mova em nós sem resistência. É reconhecer que a
vida não é inimiga, que nossos impulsos mais profundos não são pecados, que a
inteligência do coração é tão sagrada quanto qualquer escritura.
Quando o medo é visto e
atravessado, o sujeito descobre que não existe tal coisas como um ser celeste a
ser obedecido, que isso é só mais um dos condicionamentos herdados. Que o que
existe é uma presença silenciosa que se manifesta em cada instante, que não
exige obediência, não pune, não manipula a vontade do sujeito. Ela simplesmente
é.
A liberdade além da obediência
A verdadeira espiritualidade
começa onde termina o condicionamento da obediência, seja ela terrestre ou
celeste. Enquanto o sujeito estiver preocupado em agradar a uma divindade,
permanecerá infantilizado, preso à lógica do castigo e da recompensa.
A maturidade da consciência nasce
quando o sujeito se torna capaz de viver sem precisar de um supervisor
invisível. Quando reconhece que não há separação entre ele e a vida, que não há
uma vontade externa a ser obedecida, mas um fluxo a ser vivido.
Essa liberdade não significa
anarquia ou egoísmo, como muitos temem. Pelo contrário, quando a mente se
liberta do condicionamento, surge uma sensibilidade natural, uma ética
espontânea. O sujeito não precisa de mandamentos ou passos espirituais, porque
percebe diretamente a interconexão de todas as coisas. Ele age com compaixão
não porque teme punição, mas porque vê a unidade da vida.
Conclusão: além do condicionamento
O condicionamento de “ter que buscar
e cumprir a vontade de Deus” é uma das prisões mais sofisticadas já inventadas
pela mente humana. Ele captura o que há de mais sagrado — a busca pelo mistério
— e o transforma em submissão. Ele rouba a confiança interior, implanta culpa e
medo, perpetua a dependência das instituições.
Mas esse condicionamento pode ser
visto, e ao ser visto, começa a se dissolver. A liberdade não está em obedecer
melhor, mas em perceber que não há nada a obedecer. A vida é um mistério que
não faz exigências. Esse mistério não impõe condições. O verdadeiro sagrado não
se alimenta de servos, mas floresce naqueles que ousam ser livres de qualquer
tipo de condicionamento.
A vida não pede submissão. Pede apenas presença lúcida,
amorosa e integrativa.