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sábado, 30 de agosto de 2025

A Vontade de Deus como condicionamento

A Vontade de Deus como condicionamento

Um dos condicionamentos mais profundos que se enraízam na mente humana, não vem da família, nem da escola, nem da política. Ele vem disfarçado de sagrado, envolto em devoção, sustentado pela promessa de redenção: o condicionamento de que é preciso fazer a vontade de Deus.

Essa frase, repetida em templos, em grupos espiritualistas, livros e tradições, parece, à primeira vista, um chamado elevado, uma entrega à transcendência. Mas, por trás da aparência, há um mecanismo sutil e poderoso de aprisionamento psíquico. Ele atua nas camadas mais íntimas da mente, incutindo culpa, medo e obediência cega. O sujeito, desde cedo, aprende a desconfiar de si mesmo, a suspeitar de seus impulsos, a acreditar que suas escolhas são falhas, pecaminosas ou indignas. O que sobra é a rendição não à vida em sua plenitude, mas a um sistema de controle travestido de divindade.

A fábrica da submissão espiritual

A noção de “fazer a vontade de Deus” sempre foi usada como ferramenta pedagógica e política. Pedagógica porque molda o sujeito desde a infância, ensinando-o que sua autonomia é perigosa, que seus desejos são suspeitos, que seus pensamentos são frágeis diante da grandeza de um ser invisível que o observa em silêncio. Política porque, ao reduzir o sujeito a um servo da vontade divina, torna-se mais fácil transformá-lo em servo das instituições que afirmam representar essa divindade.

A criança que é ensinada a acreditar que desobedecer a Deus é o maior dos pecados carrega consigo uma ferida invisível. Essa ferida a acompanha na adolescência e na vida adulta: uma sensação difusa de inadequação, um medo constante de errar, uma insegurança crônica em relação a suas próprias decisões. Ela cresce acreditando que só é digna se alinhar sua vida a um plano divino que nunca lhe é revelado de fato, mas que é constantemente interpretado por autoridades externas.

O medo como disciplina

O que mantém esse condicionamento vivo não é o amor por Deus, mas o medo da sua ausência. O medo de ser rejeitado, castigado, lançado ao sofrimento eterno. O medo de viver sem direção, de ser apenas um ser humano comum, imperfeito e livre.

Esse medo é cultivado de forma silenciosa. Nas entrelinhas dos sermões, nos olhares de reprovação, nos manuais de conduta espiritual. Ele não precisa ser explicitado em palavras fortes; basta estar implícito na lógica: se você não fizer a vontade de Deus, estará perdido: não terá o despertar espiritual e muito menos uma mensagem para transmitir aos que ainda sofrem. Esse “estar perdido” assume várias faces: condenação eterna, fracasso existencial, vazio interior, exclusão comunitária.

Assim, a psique se habitua a viver sob vigilância constante. Como se houvesse um juiz invisível dentro da mente, analisando cada impulso, cada desejo, cada pensamento. O resultado é uma vida vivida em tensão, em autocensura, em permanente tentativa de adequação a um padrão inalcançável.

A autocastração do sujeito

No fundo, o condicionamento de fazer a vontade de Deus é uma forma de autocastração espiritual. O condicionamento diz: sua vontade não vale nada. Sua inteligência é suspeita. Seu coração é enganoso. Suas paixões são perigosas.

O que se espera do sujeito é uma rendição total a algo que não pode ser verificado. Mas, ao mesmo tempo, essa rendição nunca é suficiente. Não importa o quanto o sujeito se esforce, sempre haverá a sensação de que poderia ter feito mais, de que falhou em algum detalhe, de que não se entregou completamente. Essa culpa constante se torna combustível para as instituições religiosas, que oferecem perdão, absolvição ou direção em troca de submissão contínua.

A consequência é devastadora: o sujeito perde a confiança em si mesmo. Não consegue ouvir sua própria intuição, não reconhece a legitimidade de seus próprios movimentos internos. Vive alienado de sua natureza, porque aprendeu que sua vontade é inimiga de Deus.

A manipulação do sagrado

O mais cruel desse condicionamento é que ele sequestra algo legítimo: a busca pelo estado de ser que transcende todo implante sistêmico, todo condicionamento. O ser humano tem, de fato, uma abertura inata para o mistério, para aquilo que está além da compreensão racional. Há uma sede de absoluto, uma fome de plenitude, um chamado silencioso para algo maior.

Mas essa busca, em vez de ser um caminho de liberdade e descoberta, é canalizada para dentro de uma estrutura de controle. O desejo genuíno de comunhão com o mistério é transformado em obediência a dogmas, em disciplina moral, em servidão a figuras de autoridade. O transcendente é reduzido a uma figura punitiva que precisa ser agradada.

E, assim, o que poderia ser uma experiência de libertação torna-se uma prisão dourada. O ser humano se ajoelha diante de uma imagem que ele mesmo projetou, mas que agora o escraviza.

A violência invisível

Poucos percebem a violência que isso causa. Não é a violência física das guerras ou da repressão política, mas uma violência silenciosa contra o ser anterior a todo implante sistêmico.

O sujeito aprende a se culpar por sentir prazer, por desejar liberdade, por questionar a ordem estabelecida, por querer exercer sua vontade. Aprende a desconfiar de seus próprios pensamentos, como se eles fossem tentações do mal. Aprende a olhar para si mesmo com desconfiança e vergonha. Essa violência não deixa marcas no corpo, mas corrói a estabilidade mental e emocional.

Muitos carregam essa ferida por toda a vida. Alguns tentam abafá-la com uma religiosidade mais intensa, acreditando que quanto mais servirem, quanto mais jejuarem no que diz respeito as suas vontades, mais perto estarão de Deus. Outros tentam fugir, mergulhando em vícios ou em ideologias que prometem uma libertação artificial. Mas a marca da castração espiritual continua ali, operando em silêncio.

A falácia da vontade divina

Se olharmos com clareza, a ideia de que existe uma “vontade de Deus” que precisa ser obedecida é insustentável. Primeiro, porque cada tradição religiosa descreve essa vontade de forma diferente, muitas vezes contraditória. O que é “vontade de Deus” para um muçulmano pode ser heresia para um cristão. O que é “vontade de Deus” para um hindu pode ser blasfêmia para um judeu.

Segundo, porque essa vontade nunca é comunicada diretamente ao sujeito. Ela sempre chega mediada por livros, autoridades, tradições. Ou seja, o que chamamos de “vontade de Deus” é, na prática, a vontade das instituições que dizem representá-lo.

Terceiro, porque a própria ideia de uma vontade divina pressupõe que o ser humano é incapaz de viver em harmonia com a vida por si mesmo. Essa suposição é falsa. A vida, quando observada sem o véu do medo e do condicionamento, tem uma inteligência própria, uma ordem silenciosa que não precisa ser imposta de fora.

O retorno à confiança interior

O caminho de libertação desse condicionamento não está em negar ou não negar Deus e sua vontade. Está em recuperar a confiança na vida que pulsa dentro de nós, na inteligência silenciosa da consciência. Não está na obediência a mandamentos ou passos externos, mas em permitir que a vida se mova em nós sem resistência. É reconhecer que a vida não é inimiga, que nossos impulsos mais profundos não são pecados, que a inteligência do coração é tão sagrada quanto qualquer escritura.

Quando o medo é visto e atravessado, o sujeito descobre que não existe tal coisas como um ser celeste a ser obedecido, que isso é só mais um dos condicionamentos herdados. Que o que existe é uma presença silenciosa que se manifesta em cada instante, que não exige obediência, não pune, não manipula a vontade do sujeito. Ela simplesmente é.

A liberdade além da obediência

A verdadeira espiritualidade começa onde termina o condicionamento da obediência, seja ela terrestre ou celeste. Enquanto o sujeito estiver preocupado em agradar a uma divindade, permanecerá infantilizado, preso à lógica do castigo e da recompensa.

A maturidade da consciência nasce quando o sujeito se torna capaz de viver sem precisar de um supervisor invisível. Quando reconhece que não há separação entre ele e a vida, que não há uma vontade externa a ser obedecida, mas um fluxo a ser vivido.

Essa liberdade não significa anarquia ou egoísmo, como muitos temem. Pelo contrário, quando a mente se liberta do condicionamento, surge uma sensibilidade natural, uma ética espontânea. O sujeito não precisa de mandamentos ou passos espirituais, porque percebe diretamente a interconexão de todas as coisas. Ele age com compaixão não porque teme punição, mas porque vê a unidade da vida.

Conclusão: além do condicionamento

O condicionamento de “ter que buscar e cumprir a vontade de Deus” é uma das prisões mais sofisticadas já inventadas pela mente humana. Ele captura o que há de mais sagrado — a busca pelo mistério — e o transforma em submissão. Ele rouba a confiança interior, implanta culpa e medo, perpetua a dependência das instituições.

Mas esse condicionamento pode ser visto, e ao ser visto, começa a se dissolver. A liberdade não está em obedecer melhor, mas em perceber que não há nada a obedecer. A vida é um mistério que não faz exigências. Esse mistério não impõe condições. O verdadeiro sagrado não se alimenta de servos, mas floresce naqueles que ousam ser livres de qualquer tipo de condicionamento.

A vida não pede submissão. Pede apenas presença lúcida, amorosa e integrativa.


 

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill