Em última análise, a coisa que chamamos “eu”, o “ego”, é a entidade que está acumulando experiência. É essa a entidade que luta incessantemente? (…) Se você escutar devidamente, verá como, em presença da Verdade, acontece uma coisa extraordinária, a desintegração do “eu” e, em conseqüência, a possibilidade de uma mente nova, mente que estará de fato experimentando o que é verdadeiro, sendo ela própria, por conseguinte, a Verdade. (1)
A mente que compreende, que percebe a verdade relativa ao “vir-a-ser”, ao ser, a verdade relativa ao acumular - essa é uma mente tranqüila; e a mente tranqüila pode experimentar sem se corromper. E pode então, nessa tranqüilidade, penetrar mais fundo, (…) naquele estado maravilhoso que nenhuma mente consciente ou disciplinada (…) pode atingir. Deus, a Verdade, não pode ser acumulado - Ele é de momento a momento. (2)
(…) Todavia, esse “eu” está constantemente se afirmando, traduzindo toda experiência, (…) reação, (…) movimento do pensar em conformidade com seu próprio centro. O “eu”, o “ego” é fonte de conflito e dor, de luta perene por vir a ser, realizar, alcançar; e, enquanto não percebermos esse fato, a nossa mente, por mais hábil, sutil e ilustrada que seja, só haverá de criar mais problemas e (…) sofrimentos. Assim, pois, aqueles dentre nós que tiverem intenções realmente sérias, devem evidentemente orientar a sua indagação no sentido de descobrir se esse “eu” pode chegar a um fim. (3)
Uma vez cônscia da totalidade desse processo do “eu”, na sua atividade, que deve a mente fazer? Só com a renovação (…), a revolução - não pela evolução, ou pelo “vir-a-ser” do “eu”, mas pela completa extinção do “eu” - só assim o novo se apresenta. O processo do tempo não pode trazer-nos o novo, pois o tempo não é o caminho da criação. (4)
Porque, o que constitui o tempo é a ocupação da nossa mente com a memória, e a capacidade de distinguir diferentes lembranças. E é possível à mente permanecer fora do tempo, fora do conhecimento, que é memória, que é experiência, palavra, símbolo? Pode a mente estar livre de tudo isso e, por conseguinte, fora do tempo? Não há então, no centro, uma revolução, uma transformação fundamental? Porque então a mente já não está lutando por alcançar um resultado, acumular, chegar a um fim. Então não há mais temor. A mente, em si mesma, é o desconhecido; (…) é o novo, “o não-contaminado”. Por conseguinte, é o Real, o incorruptível independente do tempo. (5)
(…) Mas, por certo, o que muito nos interessa é descobrir a verdade acerca dessa coisa que chamamos de “eu”, desse centro que é a causa do conflito, bem como averiguar se existe a possibilidade de dissolver esse centro. (…) Mas podemos, de certo, averiguar se a mente pode ser livre, se pode achar-se naquele estado de “não saber”, em que não esteja preocupada com acumulações e “projeções” do seu próprio saber. (…) O que se precisa fazer é só vigiar a si mesmo, penetrar nos arcanos da mente, observar as tendências do “eu”, em sua atividade de acumulação e projeção. (6)
Pergunta: Como pode deter-se a ação do “eu”?
Krishnamurti: Só poderá deter-se se o virdes em atividade. Se o virdes em ação, ou seja, no estado de relação, esse ver será o fim do “eu”. Esse ver, não só é uma ação não condicionada, mas também atua no condicionamento. (7)
Como poderá o “eu”, o “ego” - que constitui todo o processo do nosso pensar - terminar, cessar? (…) Nessas condições, enquanto cada um de nós - pela compreensão do processo integral das relações, que nos são como um espelho - não descobrir a si mesmo (…); enquanto não estiver cônscio de todo o processo do “eu” - o que é autoconhecimento - tem muito pouca significação a nossa luta. (8)
(…) Devemos pôr de lado todas essas coisas e chegar-nos ao problema central, que é: “Como dissolver o “eu”, que nos prende ao tempo, e no qual não existe nem amor nem compaixão? Só é possível passarmos além, depois que a nossa mente não mais se dividir em pensador e pensamento. Quando pensador e pensamento são uma só unidade, só então há silêncio (…) em que não há fabricação de imagens, nem a expectativa de “mais” experiência. Nesse silêncio (…) há uma revolução psicológica criadora. (9)
Pode o “eu”, em algum tempo, libertar-se da auto-escravização e suas ilusões? Não deve o “eu” deixar de existir, para que tenha existência o “sem nome”? E esse lutar constante pelo alvo final não tem apenas o efeito de dar mais força ao “eu” (…)? Vós lutais pelo alvo final, outro anda atrás das coisas mundanas; (10)
(…) O homem que está observando o perpassar das suas experiências, lembranças, conhecimentos, sem a eles se prender, esse homem não aspira à virtude; não está acumulando. E quando a mente já não está acumulando, quando a mente está desperta para todo o processo da consciência, com todas as suas lembranças e seus motivos inconscientes, todos os impulsos de gerações, de séculos, deixando tudo isso passar por ela sem a prender - não se acha então a mente fora do tempo? A mente que, embora consciente das experiências, não se prende a nenhuma delas, já não está livre da rede do tempo? (11)
Nada dissolverá o “eu” enquanto a mente estiver diligenciando dissolvê-lo, uma vez que a mente é incapaz de arrasar as barreiras, as muralhas que ela própria criou. Mas, quando estou cônscio de toda essa complexa estrutura do “eu , que é o passado em cada movimento, através do presente, para o futuro; quando estou cônscio de tudo que se passa tanto interior como exteriormente, tanto oculta como abertamente - quando estou de todo cônscio de tudo isso, então, a mente, que criou as barreiras, no seu desejo de sentir-se segura, permanente, no seu desejo de continuidade, se torna extraordinariamente tranqüila, inativa; e só então apresenta-se a possibilidade de dissolução do “eu”. (12)
Assim, o que importa não é como ficar livre do orgulho, mas sim compreender o “eu”; e o “eu” é muito insidioso. (…) Portanto, enquanto existir esse centro do “eu”, o fato de uma pessoa ser orgulhosa ou reputadamente humilde será de pequeníssima significação. Serão apenas diferentes casacos para vestir. Quando um dado casaco me atrai, visto-o; e no ano seguinte, de acordo com minhas fantasias, desejos, visto outro. (13)
O que vocês têm de entender é como esse “eu” aparece. O “eu” surge por meio das várias formas da sensação de realização. Isso não quer dizer que vocês não devam agir; mas a sensação de que vocês estão agindo, (…) realizando, de que (…) precisam abandonar o orgulho, precisa ser entendida (14)
Vocês precisam compreender a estrutura do “eu”. Precisam tomar consciência de seu próprio pensar (…) observar como tratam o criado, os pais, o professor; (…) como consideram os que estão acima de vocês e os que estão abaixo de vocês, aqueles que vocês respeitam e aqueles que vocês desprezam. Tudo isso revela os processos do “eu”. Entendendo os processos do “eu”, há a libertação do “eu”. (…) (15)
(…) Mas será tão difícil assim o estudo do “eu”? Será necessária a ajuda de outra pessoa, por mais adiantado, elevado que seja o nível (…)? Ninguém, por certo, pode ensinar-nos a compreender o “eu”. Cabe-nos descobrir o processo total do “eu”; mas para isso requer-se espontaneidade. Não podemos impor-nos uma disciplina, um modo de operar; só podemos estar cônscios de instante a instante, de cada movimento do pensamento, de cada sentimento, na vida de relação (16)
Enquanto houver um padrão de pensamento, a contradição continuará a existir; e, para eliminar o padrão e, assim, a contradição, torna-se necessário o autoconhecimento. (…) O “eu” precisa ser compreendido, na nossa linguagem diária, na maneira como pensamos e como consideramos o nosso semelhante. Se pudermos estar cônscios de cada pensamento, de cada sentimento, momento a momento, veremos que, na vida de relação, compreenderemos as peculiaridades e tendências do “eu”. Só então podemos ter aquela tranqüilidade da mente, (…) ver surgir a realidade final. (17)
Há compreensão do “eu”, e liberdade, só quando posso olhá-lo completa e integralmente, como um todo; e isso só posso fazer quando, sem justificar, sem condenar, sem reprimir, compreendo na íntegra o processo de toda a atividade do desejo, (…) porque o pensamento não é diferente do desejo. Se posso assim compreender, terei a possibilidade de transcender as restrições do “eu”.(18)
Assim sendo, o que me parece importante é essa investigação do “eu” de “mim”, para se conhecer o “eu” tal qual é, com suas ambições, invejas, exigências agressivas, falácias, divisão em “superior” e “inferior” - de tal maneira que não só seja revelada a mente consciente, mas também a inconsciente (…); o conhecimento da totalidade do “eu” significa o seu fim. (19)
Se houver correta compreensão do fato de que não pode existir verdadeiro discernimento enquanto persistir a vontade de desejo, essa mesma compreensão faz com que o processo do “eu” chegue a ser destruído. Não existe outro ou mais alto “eu” que destrua o processo do “eu”; nenhum ambiente e nenhuma divindade pode acabar com esse processo. Porém, a própria percepção do processo do “eu”, o discernimento de sua insensatez, de sua natureza transitória, é que o destrói. (20)
(…) Há uma atividade diferente que não procede do “ego” e que cumpre ser encontrada. Uma inteligência diferente é necessária para compreender o Atemporal, pois é só este que nos pode libertar de nossas lutas e sofrimentos (…) A inteligência que agora possuímos é produto do desejo de satisfação e segurança, material ou espiritual; é resultado da cupidez; (…) da auto-identificação. Tal inteligência é incapaz de compreender o Real. (21)
(…) Só depois de cessar a atividade do “ego”, da memória, apresenta-se uma consciência totalmente diferente, a respeito da qual toda especulação é somente estorvo. O esforço que visa à expansão é sempre atividade do “ego”, cuja consciência quer crescer, “vir a ser”. Essa consciência prende-se ao tempo e por isso não se encontra, nela, o Atemporal. (22)
O que podemos perceber é, somente, que estamos fechados, que a atividade da vontade é resistência e que o próprio desejo de alcançar vigilância passiva é um obstáculo a mais. (…) Estar atento para as atividades egocêntricas é anulá-las; (…) A vigilância passiva só nos vem quando tranqüila a mente-coração. Nessa tranqüilidade, vem o Real à existência. (23)
(…) O problema, pois, é este: pode a mente, que é resultado do tempo, a mente que é o “eu”, o “ego”, ainda que muito lhe agrade dividir-se em “eu” superior e “eu” inferior, observador e coisa observada - pode o “eu”, cuja consciência, no seu todo, é resultado da acumulação de experiência, de memória, de conhecimentos, findar sem o desejarmos? (24)
E pode essa mente, que pertence ao tempo e não tem relação nenhuma com a Verdade (…) deter-se instantaneamente, para que possa existir a outra mente, o outro “estado de ser”, a mente que experimenta a Realidade e é, por conseguinte, ela própria o Real? (25)
Em momentos de intensa criação, de grande beleza, há uma tranqüilidade absoluta; em tais momentos verifica-se uma ausência completa do “ego” e de todos os seus conflitos; é essa negação - a forma suprema do pensar-sentir - que é essencial para alcançarmos o estado de potência criadora. (26)
(1) O Problema da Revolução Total, pág. 120
(2) O Problema da Revolução Total, pág. 121
(3) Percepção Criadora, pág. 54
(4) A Primeira e Última Liberdade, 1ª ed., pág. 125
(5) Poder e Realização, pág. 73)
(6) A Renovação da Mente, pág. 25
(7) A Luz que não se Apaga, pág. 131
(8) O Problema da Revolução Total, pág. 25-26)
(9) Claridade na Ação, pág. 145
(10) Reflexões sobre a Vida, 1ª ed., pág. 128
(11) Poder e Realização, pág. 72
(12) Claridade na Ação, pág. 90-91
(13) O Verdadeiro Objetivo da Vida, pág. 88
(14) O Verdadeiro Objetivo da Vida, pág. 88
(15) O Verdadeiro Objetivo da Vida, pág. 88
(16) Viver sem Confusão, pág. 35-36
(17) Por que não te Satisfaz a Vida, pág. 40
(18) Quando o Pensamento Cessa, pág. 64-65
(19) Transformação Fundamental, p .60
(20) Palestras em Nova York, Eddington, Madras, 1936, pág. 56)
(21) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 215-216)
(22) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 200)
(23) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 214
(24) Poder e Realização, pág. 71
(25) Poder e Realização, pág. 71
(26) (O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 88)