As ideias são pensamento
organizado, e o pensamento organizado não resolve nossos profundos problemas
psicológicos. O que elimina realmente os nossos problemas é o encará-los, não
através do crivo do pensamento, porém, entrando direta e vitalmente em contato
com eles, percebendo e sentindo realmente o fato. Se posso empregar a
expressão, devemos estar emocionalmente — não sentimentalmente, porém,
emocionalmente — em contato com o fato. Se confiarmos no pensamento, por mais
engenhoso, por mais bem organizado, por mais erudito, lógico, são, racional que
seja, nossos problemas psicológicos nunca serão resolvidos. Porque, como estive
salientando outro doa, é o pensamento que cria todos os nossos problemas; e o
homem que realmente deseja penetrar esta questão da morte, em vez de evitá-la
(a questão) deve descobrir por si mesmo como o pensamento cria o tempo, e como
o pensamento também nos impede de compreender o significado, a importância e a
profundeza da morte.
(...) Para compreender o medo, precisamos
compreender o tempo. Não me refiro ao tempo medido pelo relógio, ao tempo
cronológico; este é bastante simples, mecânico, e nele não há muito para
compreender. Refiro-me ao tempo psicológico: o recordar os muitos dias
passados, todas as coisas que conhecemos, sentimos, gozamos, recolhemos e
armazenamos na memória. A lembrança do passado molda-nos o presente, o qual,
por sua vez, se projeta no futuro. Todo esse processo é tempo psicológico, no
qual está aprisionado o pensamento. O pensamento é o resultado de ontem,
atravessando o dia de hoje, para amanhã. O pensamento sobre o futuro está
condicionado pelo presente, o qual, a seu turno, está condicionado pelo
passado.
O passado constitui-se das coisas
que a mente consciente aprendeu na escola, nos empregos que exerceu, do
conhecimento técnico que adquiriu, etc., e tudo isso faz parte do processo
mecânico da lembrança; mas ele é também constituído de conhecimento
psicológico, isto é, das coisas que o indivíduo experimentou e guardou, das
lembranças que estão ocultas nas profundezas do inconsciente. Para a maioria de
nós falta tempo para investigar o inconsciente, pois estamos sempre muito
ocupados, completamente entregues a nossas atividades diárias; assim sendo, o
inconsciente transmite-nos várias sugestões e mensagens, na forma de sonhos, e
esses sonhos requerem interpretação.
Tudo isso — tanto o processo consciente
como o inconsciente — é tempo psicológico: tempo como conhecimento, tempo como experiência,
tempo como distância entre o que é e o que deveria ser, tempo como
meio de "chegar", lograr êxito, de preencher-se, de "vir a
ser". A mente consciente é moldada pelo inconsciente; e é muito difícil
compreender os secretos motivos, intenções e compulsões do inconsciente, porque
não somos capazes de conseguir acesso ao inconsciente pelo esforço consciente.
É negativamente que devemos abeira-nos dele, e não pelo processo positivo da
análise. O analista está condicionado pelas suas lembranças; e seu método
positivo de abeirar-se de uma coisa que ele não conhece e de cuja existência não
está plenamente consciente, é muito pouco significativo.
(...) O homem que deseja saber o
que significa morrer, que deseja realmente experimentar, conhecer o seu pleno
significado, deve estar consciente da morte em vida, isto é, deve morrer todos
os dias. Fisicamente, não podeis morrer todos os dias, embora a todos os
momentos se esteja verificando alteração fisiológica. Refiro-me ao morrer
psicológico, interior. As coisas que temos acumulado como experiência,
conhecimentos, os prazeres e as dores que conhecemos — morrer para tudo isso.
Mas, como sabeis, a maioria de
nós não deseja morrer, porque estamos satisfeitos com o nosso viver. E nosso
viver é muito feio; é mesquinho, invejoso, uma luta constante. Nosso viver é
uma tortura, com esporádicos clarões de alegria que logo se tornam memória,
apenas; e a morte é-nos também uma tortura. Mas a morte real é o morrer
psicológico para tudo o que conhecemos — isto é, sermos capazes de enfrentar o
amanhã, sem saber o que é o amanhã. Não estou enunciando uma teoria ou crença
fantástica. A maior parte das pessoas temem a morte e, por isso, creem na
reencarnação, na ressurreição, ou estão apegadas a uma outra forma de crença.
Mas ao homem que realmente deseja descobrir o que é a morte, a crença não
interessa. Crer, meramente, é falta de maturidade. Para descobrirmos o que é a
morte, devemos saber morrer psicologicamente.
Não sei se já tentastes alguma
vez morrer para algo que vos seja muito caro e vos proporcione prazer — morrer
para isso, não como raciocínio, não como uma convicção ou propósito — morrer,
simplesmente, para isso, como uma folha que cai da árvore. Se souberdes morrer
dessa maneira, cada dia, cada minuto, conhecereis então o término do tempo
psicológico. E parece-me que, para a mente amadurecida, a mente verdadeiramente
desejosa de investigar, a morte, nesse sentido, é muito importante. Porque
investigar não é procurar com um motivo. Não podeis descobrir o que é
verdadeiro, se tendes um motivo, ou se estais condicionado por uma crença, por
um dogma. Deveis morrer para tudo isso: morrer para a sociedade, para a
religião organizada, para as várias formas de segurança a que a mente está
apegada.
Afinal de contas, as crenças e os
dogmas oferecem segurança psicológica. Vemos que o mundo se acha num estado de
confusão total; nesta universal confusão, tudo está se transformando muito rapidamente.
Em face de tudo isso, desejamos algo duradouro, permanente e, por isso, nos
apegamos a uma crença, um ideal, um dogma, a uma dada forma de segurança
psicológica; e isso nos impede de descobrir realmente o que é verdadeiro.
Para descobrir o que é novo, a
ele deveis chegar-vos com uma mente "inocente", uma mente fresca,
jovem, não contaminada pela sociedade. A sociedade é a estrutura psicológica da
inveja, da avidez, da ambição, do poder, do prestígio; e para descobrir o que é
verdadeiro, a pessoa precisa morrer para toda essa estrutura, não teoricamente,
não abstratamente, porém morrer realmente para a inveja, a perseguição do mais.
Enquanto houver essa perseguição do mais, em qualquer forma, não poderá
haver compreensão do imenso significado da morte. Todos sabemos que mais cedo
ou mais tarde morreremos fisicamente, que o tempo passa, e a morte nos
alcançará no caminho; e, porque temos medo, inventamos teorias, coordenamos
ideias a respeito da morte, racionalizando-a. Mas isso não é compreender a
morte.
Afinal, com a morte não se
discute; não podemos pedir-lhe que nos dê mais um dia de vida. Ela é decisiva,
inexorável. E não é possível morrer para a inveja da mesma maneira, sem
discutir, sem perguntar o que vos acontecerá amanhã, se morrerdes para a inveja ou ambição? Isso, em
verdade, significa compreender o inteiro processo do tempo psicológico.
Sempre estamos pensando em termos
relativos ao futuro, planejando para o amanhã, psicologicamente. Não estou
falando sobre o planejar a vida prática; isso é coisa completamente diferente.
Mas, psicologicamente, desejamos ser alguma coisa amanhã. A mente sagaz se
ocupa com o que ela foi e o que irá ser, e toda a nossa vida é edificada sobre
essa base. Somos o resultado de nossas "memórias", e memória é tempo
psicológico. Mas é possível morrermos, sem esforço, facilmente, para todo esse
processo?
Todos quereis morrer para algo
que vos é doloroso — e isso é relativamente fácil. Mas eu falo do morrer para
algo que vos dá muito prazer, um forte sentimento de riqueza íntima. Se
morrerdes para a lembrança de uma experiência estimulante, morrerdes para as
vossas "visões", vossas esperanças e preenchimentos, ver-vos-eis
frente a frente com um extraordinário sentimento de solidão, sem nada terdes em
que vos amparardes. Igrejas, livros, instrutores, sistemas de filosofia — em
nada disso confiareis mais, o que está muito certo; porque se
depositardes confiança em qualquer dessas coisas, estareis com medo, sereis
ainda invejoso, ávido, ambicioso, sequioso de poder.
Infelizmente, quando em nada mais
confiamos, tornamo-nos em geral amargurados, satíricos, superficiais, e vivemos
então, simplesmente, de dia para dia, dizendo que tanto basta. Mas, por mais
filosófica que a mente seja, o que daí resulta é uma vida muito superficial,
muito medíocre.
Não sei se já alguma vez
tentastes ou experimentastes isto: morrer, sem esforço, para tudo o que
conheceis, morrer, não superficialmente, porém, realmente, sem perguntardes o
que acontecerá amanhã. Se puderdes fazê-lo, encontrar-vos-eis com um
extraordinário sentimento de solidão, um estado de negatividade, no qual não existirá
amanhã — e, se experimentardes esse estado até o fim, vereis que não é um
estado de fúnebre desespero; pelo contrário.
Afinal de contas, vivemos em
maioria terrivelmente sós. Podeis exercer uma ocupação interessante, ter
família e dinheiro em abundância, ter os vastos conhecimentos de uma mente
culta; mas, se quando vos encontrardes a sós, puderdes por de parte tudo isso,
conhecereis aquele extraordinário sentimento de solidão.
Mas, vedes, nesse momento ficamos
muito assustados; nunca "experimentamos" esse estado até o fim, para
descobrir o que ele é. Tratamos de ligar o rádio, ler um livro, tagarelar com
os amigos, ir à igreja, ao cinema, ou ao botequim — pois tudo isso está no
mesmo nível, constituindo meios de fuga. Deus é uma fuga estimulante,
exatamente como a bebida. Quando a mente está a fugir, não há muita diferença
entre Deus e a bebida. Sociologicamente, talvez não seja bom beber; mas fugir
para Deus tem também seus inconvenientes.
Assim, para compreendera morte,
não verbal ou teoricamente, porém experimentá-la realmente, é preciso morrer
para o ontem, para todas as suas lembranças, as feridas psicológicas, a
lisonja, o insulto, a mesquinhez, a inveja — é preciso morrer para tudo
isso, quer dizer, morrer para si mesmo. Porque tudo isso é
o que somos. E vereis então, se chegardes até ai, que existe uma solidão que
não é isolamento. Solidão e isolamento são duas coisas diferentes. Mas não
podeis alcançar a solidão, se não experimentardes
até o fim e não compreenderdes esse estado de isolamento, em que as relações
nada mais significam. Vossas relações com esposa, marido, filho, filha, amigos,
emprego — nenhuma delas já nenhum significado tem ao sentirdes que estais
completamente só. Estou certo de que alguns de vocês já experimentastes esse
estado. E quando fordes capazes de experimentá-lo até o fim e ultrapassá-lo,
quando não vos assustar a palavra "só", quando estiverdes mortos para
todas as coisas que conheceis, e a sociedade tiver deixado de influenciar-vos,
conhecereis então "a outra coisa". A
sociedade só poderá influenciar-vos enquanto a ela pertencerdes psicologicamente.
A sociedade nenhuma influência pode exercer sobre vós, depois de cortardes o
laço psicológico que a ela vos vincula. Então estareis livre das garras da
moralidade e respeitabilidade social. Mas o experimentar desse estado de
solidão, até o fim, sem procurar fugir nem verbalizar
— e isso significa "ficar com ele", completamente —
isso requer uma grande soma de energia... Essa energia não contaminada é a solidão
que deveis alcançar; e, dessa negação, desse vazio total, surge a criação.
Ora, sem dúvida, toda criação se
verifica no vazio, e não quando a mente está cheia. A morte só tem significação
ao morrerdes para todas as vossas vaidades, superficialidades, todas as vossas
inumeráveis lembranças. Apresenta-se então, algo que transcende o tempo, algo
que não podereis alcançar se sentirdes medo, se estiverdes apegado a crenças,
se estiverdes nas malhas do sofrimento.
Krishnamurti — O homem e seus
desejos em conflito - ICK