Em uma de suas recentes conferências na Europa, Krishnamurti externou-se pela seguinte forma: “A Verdade não oferece consolos”. Nesta frase tersa, acha-se registrado um fato que se refere, assim me parece, ao desengano e vacuidade corrosivos que o ensino de Krishnamurti trouxe a muitos corações. Nos dias em que muitos de nós esperavam pela vinda do Instrutor do Mundo, imaginávamos que ele, não somente instruiria a humanidade, porém ainda a consolaria dos seus males. Ele ia ser o Consolador do Mundo, ao mesmo tempo que o Instrutor do Mundo. Quando qualquer mal tombava sobre nós, quer fosse individualmente, quer sobre o mundo, dizíamos a nós próprios: “quando ele vier, tomará sobre si nossos fardos e nos aliviará das nossos tristezas”. No Cristianismo tornou-se-nos familiar a concepção da redenção por intermédio de outrem, o pensamento de um salvador sobre quem poderíamos deitar o fardo, não somente de nossas culpas, como de nossas angústias. Aqueles que tinham a Krishnamurti como Instrutor do Mundo naturalmente esperavam dele o desempenho deste papel de confortador. E que fácil teria sido tudo para nós se ele tal fizesse! Que felizes teríamos sido se nossas expectativas houvessem sido correspondidas e ele houvesse confirmado as nossas caras crenças em vez de as despedaçar! Imaginávamos que viria falar-nos ainda de Deus, que animaria nossa confiança nas deidades por nós mesmos criadas. Ele, porém, nos ensina a andar em amor com a Vida, aquela que cria os deuses e os homens.
Pensávamos que ele nos viria falar do plano de Deus para com os homens e a maneira pela qual poderíamos cooperar nesse plano e encaminhar nossas vidas individuais, de acordo com os seus éditos. Ele, porém, nos vem dizer que a Vida não tem plano, que não existe Ser algum sobre-humano a encaminhar os nossos destinos, que não existe determinismo nem fado. Afirma que o homem é absolutamente livre e que sua liberdade é sua limitação. Que o homem é o seu próprio guia, o seu próprio regente e que não pode buscar a outrem para sua salvação.
Tínhamos a esperança de nos tornarmos discípulos seus, de seguirmos uma regra de vida que ele para nós ordenasse e assim viéssemos a ser poupados do incômodo de evoluir por nós próprios. Estávamos preparados para seguir e obedecer, para trabalhar em seu serviço e atrair outros para o rebanho de sua instituição. Ele porém não quer discípulos, não estatui regras, diz que instituição alguma de ordem espiritual pode conduzir o homem à Verdade, a qual é matéria de pura percepção individual. Não nos pede trabalhos; não solicita conversões para o seu rebanho porque não possui rebanho. Somente diz que cheguemos a “Ser”, que nos libertemos deste cativeiro de limitação, por meio da intrepidez, do desapego que conduz ao apercebimento e à intuição que é a própria Vida.
Não encontramos em Krishnamurti nada do que esperávamos e isto conduziu, quer a um profundo desengano e desilusão, quer a uma profunda e justificada alegria. A alegria surgiu no coração daqueles que sentem que ali está o verdadeiro Instrutor que não se aterroriza de ferir, que não se curva por maneira alguma à fraqueza e à credulidade humanas, que não oferece propinas nem recompensas.
O desapontamento e a desilusão surgiram só nos corações daqueles que se sentem atraiçoados, seja pelo Instrutor que não é o que esperaram que fosse, seja por aqueles que os conduziram a aguardar um outro Instrutor que não Krishnamurti.
Muitas pessoas, no entanto, alimentam sentimentos errôneos. Tendo vivido vidas muito ativas em várias instituições, assistindo sempre a reuniões e a serviços, falando, escrevendo, organizando, Krishnamurti abriu-lhes agora os olhos para a futilidade de tais atividades e eles não podem mais prosseguí-las com qualquer espécie de convicção; apesar disso, acham difícil viver sem elas. Não sabem mais o que pensar ou fazer e acham a vida vazia e desolada.
Afirma-se por vezes, que aqueles que encontraram conforto em outros esquemas de pensamento o encontram agora também nas idéias de Krishnamurti. Eu não posso formar ideia de que alguém haja encontrado “conforto” em qualquer dos aspectos do ensino de Krishnamurti. Inspiração, estimulo, força, coragem, isso sim, porém, conforto, não. Toda a minha vida fui uma grande pesquisadora do conforto, por haver tido muitos temores e sempre ter sido capaz de sublimar esses temores, procurando refúgio em crenças que vejo agora serem ilusórias. É imensamente confortante o acreditar em um Deus que é pai, amigo e guia, que perpetuamente se preocupa com as tristezas e dificuldades dos indivíduos, porém, como Deus se encontrava de certo modo distante e inspirava terror, eu o substituí pelo Cristo, meu amante e amigo. Eu estive “enamorada” de Jesus toda a minha juventude. Eu o conduzia, por assim dizer, pela mão, em todos os meus infantis aborrecimentos. Com a idade de dezessete anos sentia-me muito mais feliz em orar no meu aposento do que em fazer frente a um mundo no qual me sentia atormentada pelo acanhamento. Jesus era meu refúgio contra um mundo ao qual não podia enfrentar. Ulteriormente, porém, quando vim para a Teosofia, substitui Cristo pelo Mestre. Isto conduziu meu refúgio um passo além na direção da realidade humana.
É muito confortador o pertencer a uma igreja ou a uma sociedade onde todos pensam da mesma forma e o sermos sustentados em todas as nossas ilusões pelas crenças de outros seres humanos. É imensamente confortador para a nossa vaidade, que nos torna sempre um joguete em um mundo de tumulto, o sentirmo-nos “eleitos”. É muito agradável ser “salvo”, desde que haja bastante pessoas a se “danarem”; muito agradável “andar e conversar com Deus”, ao passo que a maioria dos indivíduos só podem andar e palestrar com os homens. É ainda mais lisonjeante o saber ou que nos digam que, embora no mundo sejamos apenas uma pessoa muito vulgar, sem muita capacidade ou virtude evidente, nos planos superiores se é um grande ego, um ser espiritual esplêndido.
Uma vez mais, que confortadores são os vários consolos que se referem à morte e à sua angústia implícita! O céu — não por completo sem inferno —, a reencarnação, o espiritismo: poder-se acreditar seja em que teoria for que mais nos conforte.
Não existe lugar para nenhuma destas ilusões confortadoras nos ensinos de Krishnamurti. Ele fala de uma coisa única, de uma só — a busca da Verdade; e a “Verdade não oferece consolos”. Assim, pois, o primeiro passo ao longo deste caminho é o nos despojarmos das ilusões. É o que Krishnamurti nos propele a fazer em todas as suas palestras; pois que mais do que isso significa a análise critica de nossos pensamentos, emoções e ações? E não é fácil, especialmente a uma geração por tal maneira envolta em ilusões como a nossa o tem sido, o tornar-se rude ao rasgar os envoltórios da alma. Produz feridas o abandonar crenças que nos tem suavizado e confortado, mesmo que se haja reconhecido sua vacuidade. É duro como nada mais o é, estar-se internamente ativo e externamente ocioso, quando toda a nossa vida temos estado a fazer o inverso do que devêramos.
Quando se fica nu, tiritando em um cimo árido da montanha, é difícil não olhar por vezes para trás, para os vales verdejantes e macios que estão lá em baixo. É em momentos tais que volvemos sobre Krishnamurti a nossa ânsia quase desesperada para que ele reconheça as nossas dificuldades e resolva pelo menos um de nossos problemas de maneira a que nos proporcione paz. E sua resposta é: “A Verdade não traz consolos e eu falo somente da Verdade”.
Vem-me à memória um símile que pode servir para mostrar a situação tal como a vejo: quando outro dia o Professor Picard e seu companheiro subiram dez milhas em balão, passaram para além das nuvens, para o claro espaço azul. Se então os houvessem inquirido acerca dos problemas que nos preocupam do lado de cá das nuvens, que resposta útil nos poderiam eles dar? Para eles, então nada mais existia que o céu azul sem nuvens.
Assim, pois, quando vamos a Krishnamurti e lhe perguntamos como poderemos solver nossos problemas humanos, como havemos de defrontar-nos com o amor e o ódio, com a fome e a saciedade, com a morte e o além, responde-nos ele: “realizai a Verdade, libertando-vos da consciência-do-ego e verificareis que todos esses problemas terão cessado de existir”. Podemos viajar a qualquer distância sobre o solo, em sentido horizontal e continuaremos a estar ainda na região do sol e da sombra, alternando-se, na região das nuvens e dos céus límpidos. Se, porém, mudarmos nossa direção e passarmos através as nuvens, verticalmente, chegaremos ao azul eterno do espaço.
Krishnamurti não nega a existência de nossos problemas, nega, porém, o valor das soluções por nós propostas, pois que elas apenas perpetuam a causa que conduz a todo o sofrimento.
Muitas pessoas hão sido perturbadas e se têm sentido angustiadas pelo repúdio aparente de Krishnamurti no que se refere ao fato da reencarnação, e ainda pelos seus últimos enunciados a respeito. Em parte alguma disse ele que a reencarnação é cousa que não exista, porém insiste em afirmar que a reencarnação nada mais sendo que o prolongamento do ego através do tempo, não pode, de forma alguma, curar-nos das tristezas que se originam da existência dessa individualidade separada a que denominamos ego. Continuidade alguma através do tempo e do espaço pode conduzir o homem a essa Verdade que é integridade (completeness) para além do tempo e do espaço. Portanto, o conforto que desejamos encontrar mediante a ideia da reencarnação é puramente ilusório.
Krishnamurti nos diz que “tudo isto é tão simples” — e como tal deve apresentar-se ao homem que encontrou a Verdade. Não pode, porém, ser tão simples ou fácil, para o homem que se encontra emaranhado nas complexidades, o libertar-se de tais embaraços. Uma geração que tem sido encaminhada pela autoridade, consolada pelas ilusões, tecida pelos temores, não acha simples ou fácil permanecer solitária sobre um cimo de montanha fazendo face aos ilimitados espaços da Verdade, isolada e intrépida. À medida que pusermos à prova nossa força, nossos temores se desvanecerão e nossa coragem surgirá e abençoaremos, então, a mão que nos desemaranhou das ilusões, mesmo que o processo haja sido penoso.
À medida que os nossos temores se esvaecem, nosso anseio pelo conforto desaparecerá também. Se quisermos consolos, eles abundam nas várias religiões e filosofias do mundo; se pretendermos a Verdade, lancemos fora o anseio de conforto, pois que “a Verdade não oferece consolos”.
Boletim da Estrella - nº 9 - setembro/1931
Por Lady Emily Lutyens