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terça-feira, 12 de novembro de 2013

Um olhar sobre nossas relações - I

É possível haver algum relacionamento entre nós quando usamos a nós mesmos para nossa satisfação mútua? Quando você usa outra pessoa para seu conforto, como usa um móvel, você está se relacionando com aquela pessoa? Você está se relacionando com o móvel? Você pode chamá-lo de seu e isso é tudo; mas você não tem um relacionamento com ele. De modo semelhante, quando você usa outra pessoa em seu proveito psicológico ou físico, geralmente chama essa pessoa de sua, você a possui; e a posse é relacionamento? O Estado usa o indivíduo e o chama de seu cidadão; mas ele não tem relacionamento com o indivíduo. Ele simplesmente o usa, como uma ferramenta. Uma ferramente é uma coisa morta, e não pode haver relacionamento com aquilo que está morto. Quando usamos o homem com um propósito, ainda que nobre, nós o queremos com um instrumento, uma coisa morta. Não podemos usar uma coisa viva, então nossa demanda é por coisas mortas. O uso de outro torna aquela pessoa o instrumento morto de nossa satisfação. O relacionamento pode existir apenas entre os vivos, e o uso é um processo de isolamento. É esse processo de isolamento que gera conflito, antagonismo entre o homem e o homem. 
(...)
A existência é relacionamento; existir é estar relacionado. Relacionamento é sociedade. A estrutura de nossa sociedade atual, por se basear no uso mútuo, produz violência, destruição e infelicidade; e se o suposto Estado revolucionário não alterar os fundamentos desse uso, só poderá produzir, talvez um nível diferente, ainda mais conflito, confusão e antagonismo. Enquanto precisarmos psicologicamente um dos outros, e nos usarmos não poderá haver relacionamento. Relacionamento é comunhão; e como poderá haver comunhão se houver exploração? Exploração envolve medo — e o medo, inevitavelmente, leva a todo tipo de ilusões e infelicidade. O conflito só existe na exploração, e não no relacionamento. O conflito, a oposição e a inimizade existem entre nós quando há o uso de outro como um meio de prazer, de realização. Esse conflito, obviamente, não pode ser resolvido pelo uso dele mesmo como um meio para uma meta autoprojetada; e todos os ideais, todas as utopias, são autoprojetados. perceber isso é essencial, pois assim conseguiremos experienciar a verdade de que o conflito em qualquer forma destrói o relacionamento, o entendimento. Só há entendimento quando a mente está silenciosa; e a mente não está silenciosa quando está presa a uma ideologia, dogma ou crença ou quando está associada ao padrão da própria experiência, de suas lembranças. A mente não está silenciosa quando ela é disciplinada, controlada e verificada; essa mente é uma mente morta, está se isolando por meio de várias formas de resistência, criando assim, inevitavelmente, infelicidade para si mesma e para os outros. 

A mente só está silenciosa quando não está presa em pensamentos, que é a rede da própria atividade. Quando a mente está quieta, não tornada quieta, um fator verdadeiro, o amor, toma forma.

Jiddu Krishnamurti

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Observando a exata natureza de nossas relações

Antes de alterar a sociedade, temos de compreender toda a nossa estrutura, a maneira do nosso pensar, a maneira da nossa ação, a natureza das nossas relações com pessoas, ideias e coisas. A revolução na sociedade deve começar com a revolução no nosso próprio pensar e agir. A compreensão de nós mesmos é de importância precípua, se desejamos realizar uma transformação radical na sociedade; e a compreensão de nós mesmos é autoconhecimento. Ora, temos feito do autoconhecimento uma coisa extremamente difícil e remota. As religiões tornaram o autoconhecimento muito místico, abstrato e distante; mas se examinarmos com cuidado, veremos que o autoconhecimento é muito simples e requer, apenas, atenção às relações; e ele é essencial, se desejamos uma revolução fundamental na estrutura da sociedade. Se você, o indivíduo, não compreende as tendências do seu próprio pensamento, e das suas atividades, a mera realização de uma revolução superficial na estrutura exterior da sociedade só criará mais confusão e sofrimento. Se não conhece a si mesmo, se segue outra pessoa, sem conhecer todo o processo do seu próprio pensar e sentir, você será, obviamente, levado a mais confusão e mais desastres. Afinal de contas, a vida é relação, e sem relações não há possibilidade de vida. Não há vida no isolamento, porque o viver é um processo de relações; e as relações não se efetuam com abstrações, mas sim com a propriedade, com pessoas, com ideias. Em suas relações, você vê a si mesmo, tal como é, não importa como seja, se feio ou belo, se sensível ou grosseiro; no espelho das relações você vê com precisão todo problema novo, toda estrutura de si mesmo, tal como é. Porque você julga impossível alterar fundamentalmente as suas relações, procura fugir, intelectual ou misticamente, e essa fuga só criará novos problemas, mais confusão e mais desastres. Mas se, ao invés de fugir, você examinar a sua vida de relação e compreender toda a estrutura dessas relações, terá a possibilidade de ultrapassar aquilo que está muito próximo. Por certo, para ir longe precisamos começar com o que está muito próximo; mas esse começo com o que está próximo é dificílimo para a maioria de nós, porquanto desejamos fugir do que é, do fato do que somos. Sem compreendermos a nós mesmos não podemos ir longe; e nós estamos em relação contínua, visto que não há existência sem relações. A vida de relação, pois, é o imediato, e para ultrapassarmos o imediato precisamos compreender as relações. Mas preferimos examinar o que está muito distante, o que chamamos Deus ou a Verdade, do que promover uma revolução fundamental em nossas relações; e essa fuga para Deus ou para a Verdade é de toda fictícia, irreal. As relações são a única coisa que temos, e sem compreendermos essas relações nunca descobriremos o que é a realidade ou Deus. Assim, para que se realize uma modificação completa da estrutura social, da sociedade, precisa o indivíduo purificar as suas relações, e essa purificação das relações é o começo da sua própria transformação.

Jiddu Krishnamurti — O que estamos buscando?  



quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O chamado amor, não passa de auto-interesse

Questionador: O amor, tal como o conhecemos e vivenciamos, é uma fusão entre duas pessoas, ou entre os membros de um grupo; ele é excludente e há nele tanto a dor como alegria. Quando o senhor diz que o amor é a única solução para os problemas da vida, está dando à palavra uma conotação que dificilmente vivenciamos. Um homem comum como eu pode conhecer o amor no sentido que o senhor lhe dá?

Krishnamurti: Todos podem conhecer o amor, mas só quando são capazes de encarar os fatos com grande clareza, sem resistência, sem justificação, sem a explicação que os destrói — apenas olhe as coisas com muita atenção, observe-as com muita clareza e minuciosamente. Ora, o que é aquilo a que damos o nome de amor? A pessoa que fez a pergunta diz que ele é excludente e que, nele, conhecemos a dor e a alegria. O amor é excludente? Descobriremos quando examinarmos aquilo que denominamos amor, o que o chamado homem comum denomina amor. Não existe o homem comum. Há apenas o homem, que é você e eu. O homem comum é uma entidade fictícia inventada pelos políticos. Há apenas o homem, que é você e eu, que estamos em aflição, com dor, com ansiedade, com medo.

Ora, o que é a nossa vida? Para descobrir o que é o amor, comecemos com o que sabemos. O que é o nosso amor? Em meio à dor e ao prazer, sabemos que ele é excludente, pessoal minha mulher, meus filhos, meu país, meu Deus. Conhecemo-lo como uma chama em meio à fumaça, conhecemo-lo por meio da perda quando o outro se vai. Logo, conhecemos o amor como sensação, não é verdade? Quando dizemos que amamos, conhecemos o ciúme, conhecemos o medo, conhecemos a ansiedade. Quando vocês dizem que amam alguém, tudo isso está envolvido: a inveja, o desejo de possuir, de ter, de dominar, o medo de perder e assim por diante. Tudo isso chamamos de amor, e não conhecemos o amor sem medo, sem invejam, sem posse; simplesmente verbalizamos o estado do amor sem medo; dizendo ser ele impessoal, puro, divino ou Deus sabe mais o que, porém, o fato é que somos ciumentos, somos dominadores, somos possessivos. Só conheceremos esse estado do amor quando o ciúme, a inveja, a possessividade, o domínio, chegarem ao fim; e enquanto possuirmos, jamais amaremos.

A inveja, a posse, o ódio, o desejo de dominar a pessoa ou coisa qualificada de meu, o desejo de possuir e de ser possuído — tudo isso é um processo de pensamento, não? O amor é um processo do pensamento?  O amor é uma coisa da mente? Na realidade, para a maioria de nós, ele é. Não digam que não — é um absurdo fazê-lo. Não neguem o fato de que o seu amor é uma coisa da mente. Ele por certo é; do contrário, vocês não possuiriam, vocês não dominariam, vocês não diriam “é meu”. Como vocês dizem, o amor de vocês é uma coisa da mente; assim, o amor, para vocês, é um processo de pensamento. Vocês podem pensar na pessoa a quem amam, mas pensar na pessoa a quem ama é amor? Quando vocês pensam na pessoa a quem amam? Vocês pensam nela quando ela se foi, quando ela está longe, quando ela os deixou. Mas quando ela não os perturba mais, quando vocês podem dizer “ela é minha”, vocês não têm de pensar nela. Vocês não têm de pensar nos seus móveis; eles são partes de vocês — o que constitui um processo de identificação destinado a evitar que vocês sejam perturbados, a evitar problemas, ansiedade, tristeza. Assim, vocês só sentem falta da pessoa a quem dizem amar quando estão perturbados, quando estão sofrendo; e enquanto possuem a pessoa, vocês não têm de pensar nela, porque na posse não há distúrbio. Mas quando a posse é perturbada, vocês começam a pensar e dizem “eu amo essa pessoa”. Logo, seu amor é uma mera reação da mente, não é? O que significa que o seu amor não passa de uma sensação, e a sensação sem dúvida não é amor. Vocês pensam na pessoa quando vocês estão juntos? Quando vocês possuem, retêm, dominam, controlam, quando podem dizer “ela é minha” ou “ele é meu”, não há problema. E a sociedade, tudo quanto vocês construírem ao redor de si mesmos, os ajuda a possuir para evitar que vocês sejam perturbados, para vocês não pensarem nisso. O pensamento vem quando vocês estão perturbados — e vocês estão fadados a ser perturbados enquanto seu pensamento for aquilo que chamam de amor.

O amor com certeza não é uma coisa da mente. É porque as coisas da mente ocuparam o nosso coração que não temos amor. As coisas da mente são o ciúme, a inveja, a ambição, o desejo de ser alguém, alcançar o sucesso. Essas coisas da mente tomam conta do coração de vocês, e vocês dizem então que amam; mas como podem amar se têm no coração todos esses elementos geradores de confusão? Quando há fumaça, como pode haver uma chama pura? O amor não é uma coisa da mente e é a única solução dos nossos problemas. O amor não é da mente, e o homem que acumulou dinheiro ou conhecimento nunca pode conhecer o amor, pois vive com as coisas da mente; suas atividades são da mente e tudo aquilo que toca ele transforma num problema, numa confusão, numa tortura.

Logo, o que chamamos de nosso amor é uma coisa da mente. Olhem para si mesmos e verão que o que estou dizendo é obviamente verdadeiro; do contrário, nossa vida, nosso casamento, nossos relacionamentos seriam totalmente diferentes; teríamos uma nova sociedade. Ligamo-nos aos outros não por meio de uma fusão, mas de um contrato chamado de amor, casamento. O amor não funde nem ajusta — não é pessoa nem impessoal: é um estado de ser. O homem que deseja fundir-se com algo maior, unir-se a outra pessoa, está evitando a angústia, a confusão; mas a mente ainda se encontra em separação, que significa desintegração. O amor não conhece a fusão nem a difusão; ele não é pessoal nem impessoal; é um estado de ser que a mente não pode encontrar — ela pode descrevê-lo, designá-lo por um termo, nomeá-lo, mas a palavra, a descrição, não é o amor.

Só quando a mente se aquietar conheceremos o amor, e esse estado de quietude não é algo a ser cultivado. Cultivar ainda é ação da mente; a disciplina ainda é produto da mente, e uma mente disciplinada, controlada, subjugada, uma mente que resiste, explica, não pode conhecer o amor. Vocês podem ler, podem escutar o que está sendo dito sobre o amor, mas isso não é o amor. Só quando vocês dão fim às coisas da mente, só quando seu coração está livre das coisas da mente, há amor. E vocês vão então saber o que é amar sem separação, sem distância, sem tempo, sem medo — e isso não está reservado a uns poucos. O amor não conhece hierarquias; há somente amor. Só há os muitos e o um, a exclusão, quando não se ama. Quando se ama, não existe o “você” nem o “eu”. Nesse estado, há apenas uma chama sem fumaça.

Jiddu Krishnamurti — Bombaim, 12/03/1950

domingo, 11 de agosto de 2013

Um olhar sobre o ego, o sexo e as relações

Você provou aquele estado em que não existe "ego", ainda que por alguns segundos, por um dia, ou como seja; e onde está o "ego" está o conflito, o sofrimento, a luta. Por isso, existe o constante desejo de repetição daquele estado livre do "ego". Mas, o problema central é o conflito, em diferentes níveis, e como renunciar ao "ego". Você procura a felicidade, esse estado de isenção do "ego" com todos os seus conflitos, o qual você encontra momentaneamente no ato sexual. Ou você se disciplina, luta, controla, ou mesmo, se destrói pelo refreamento; o que significa que está procurando se libertar do conflito, orque, com a cessação do conflito, há deleite. Se podemos ficar livres do conflito, temos a felicidade em todos os diferentes níveis da existência. 

O que é que faz vir o conflito? Como surge esse conflito, no seu trabalho, nas suas relações, no ensinar, em todas as coisas? Até mesmo quando você escreve um poema, até mesmo quando canta, pinta, existe conflito. Como se origina esse conflito? Ele origina-se do desejo de "vir a ser"? Você pinta, deseja expressar-se pela cor, deseja ser o melhor pintor do mundo. Estuda e se preocupa, e espera que o mundo aplauda a sua arte. Mas, sempre que há o desejo de "vir a ser" "o mais...", tem de haver conflito. É o impulso psicológico que exige "o mais..." O desejo de ser "o mais..." é psicológico; esse desejo existe quando a psique, a mente, está empenhada em "vir a ser", em procurar, em perseguir um determinado fim, um determinado resultado. Quando você deseja ser uma Mahatma, quando deseja ser um santo, quando deseja compreender, quando pratica a virtude, quando tem consciência de classe, como entidade "superior", quando se serve das suas faculdades para o seu próprio engrandecimento — tudo isso, evidentemente, é indício de uma mente interessada no "vir a ser". E, por conseguinte, tanto mais conflito há de existir. Uma mente que está à procura do "mais...", não está consciente do "que é", porquanto vive sempre no "mais" — no que lhe agradaria ser, e nunca no "que é". Enquanto você não dissolver todo o conteúdo daquele conflito, essa libertação do "ego", por meio do sexo (ou de outro fator), continuará a ser um problema medonho. 

Senhor, o "ego" não é uma entidade objetiva que se possa estudar ao microscópio, ou aprender nos livros, ou compreender por meio de citações de palavras de outros, por mais poderosas que sejam tais citações. Ele só pode ser compreendido na vida de relação. Afinal de contas, o conflito existe nas relações, seja nas relações com a propriedade, com uma ideia, com sua esposa, ou com o seu vizinho; e sem se resolver esse conflito fundamental, o apegar-nos a esta única forma de libertação, por meio do sexo, é obviamente um indício de desequilíbrio. É isso, exatamente, o que acontece conosco. Estamos desequilibrados, porque fizemos do sexo a nossa única via de fuga; e a sociedade, a chamada civilização moderna, ajuda-nos nesse sentido. Considere os anúncios, os cinemas, os gestos sugestivos, as posturas, as aparências. 

A maioria de vocês se casaram ainda muito jovens, quando ainda muito poderoso o impulso biológico. Tomaram uma esposa ou um marido, e com essa esposa ou marido vocês têm, de qualquer maneira, de passar o resto da vida. Suas relações são unicamente físicas, e tudo o mais tem de se lhe ajustar.E que acontece, então? Você é, porventura, intelectual, e sua esposa altamente sentimental. Onde está a comunhão com ela? Ou ela é muito prática e você é sonhador, vago, um tanto indiferente. Onde está o seu contato com ela? Você é "super-sexual", ela não; mas você se serve dela, porque tem seus direitos. Como pode haver comunhão entre você e ela, quando você se serve dela? Os casamentos, hoje em dia, estão baseados nessa ideia, nesse impulso; mas começam a surgir contradições e conflitos cada vez mais numerosos, na vida conjugal, e daí o divórcio. 

Esse problema, pois, requer um manejo inteligente, o que significa que temos de alterar toda a base de nossa educação, e isso requer compreensão, não só dos fatos da vida, mas da nossa existência de cada dia; requer, não apenas que se conheça e se compreenda o impulso biológico, o impulso sexual, mas também que se veja a maneira de atender a ele inteligentemente. Mas, na atualidade, não procedemos assim, não é verdade? É um assunto proibido, uma coisa secreta, de que só se fala entre quatro paredes. Na época em que o impulso é mais poderoso, e sem consideração de mais nada, juntamo-nos um ao outro para o resto da vida. Veja o que o indivíduo faz a si próprio e ao outro. 

Como pode o indivíduo intelectual harmonizar-se, comungar, com o sentimental, o pouco inteligente ou o ignorante? Que comunhão pode haver, então, além do sexo? A dificuldade de tudo isso consiste em que o preenchimento do impulso sexual, do impulso biológico, torna necessárias certas regras sociais; por isso, existem as leis relativas ao casamento. Vocês dispõem de todos os meios de possuir aquilo que lhes proporciona prazer, segurança, conforto; mas, o que dá prazer constante embota a mente. Assim como o sofrimento constante insensibiliza a mente, assim também o prazer constante murcha a mente e o coração. 

E como você pode ter amor? Positivamente, o amor não é coisa da mente. O amor não é o mero ato sexual, ou você acha que é? O amor é algo que a mente não pode, de forma nenhuma, conceber. O amor é algo que não se pode formular. E, sem amor, vocês contraem relações, sem amor vocês se casam. E depois, na vida conjugal, "vocês se ajustam um ao outro". Bela frase! Vocês se justam um ao outro, e isso, mais uma vez, é um processo intelectual, não? Ela casou-se com você, mas você é uma repulsiva massa de carnalidade, dominado por suas paixões. Ela é obrigada a conviver com você. Detesta a casa, o ambiente, o horrível de tudo isso, a sua brutalidade, mas diz: "sou casada e tenho de conformar-me com isso". Assim, como meio de autoproteção, ela cede e, com o tempo, começa a dizer "eu te amo". Veja que, quando, pelo desejo de segurança, nós nos conformamos com algo feio, esse feio começa a parecer-nos belo, visto que isso é uma forma de autoproteção; se assim não fosse, seríamos magoados, poderíamos ser totalmente destruídos. Vemos, pois, que p que era feio, horrendo, gradualmente se tornou belo. 

Tal ajustamento é, evidentemente, um processo mental. Todos os ajustamentos o são. Mas o amor, por certo, é incapaz de ajustamento. Vocês o sabem, Senhores, (não é verdade?) que, se amam alguém, não existe "ajustamento". O que há é completa fusão. É só quando não existe amor que começamos a ajustar-nos. E esse ajustamento se chama matrimônio. Daí resulta o fracasso do casamento, porque ele é a própria fonte de conflito, uma batalha entre duas pessoas. Esse problema é extraordinariamente complexo, como todos os problemas, mas esse o é mais, porque se trata de apetites e impulsos grandemente poderosos. 

Nessas condições, uma mente que está apenas a ajustar-se nunca pode ser casta. Uma mente que busca felicidade no sexo, nunca será casta. Embora haja, por momentos, nesse ato, a abdicação do "ego", o esquecimento próprio, o desejo mesmo dessa felicidade, que é produto da mente, faz a mente impura. A castidade só existe quando há amor; sem amor, não há castidade. E o amor não é coisa susceptível de cultivar-se. Só há amor quando há o completo esquecimento de si mesmo, pelo indivíduo, e para que tenha a ventura desse amor, precisa o indivíduo ficar livre, pela compreensão da vida de relação. Então, havendo o amor, tem o ato sexual significação inteiramente diferente. Esse ato não é, então, uma fuga, um hábito. O amor não é um ideal: o amor é um estado. Não pode haver amor onde há "vir a ser". Só onde está o amor está a castidade, a pureza; mas uma mente que "vem a ser" ou tenta "vir a ser" casta, não tem amor. 

Jiddu Krishnamurti — O que te fará feliz?       

Por que tantas pessoas amam coi­sas em vez de pessoas?

Ouvi contar...

O dr. Ahrams foi chamado à loja de Mulla Nasruddin, onde Nasruddin jazia inconsciente. Dr. Abrams cuidou dele por um longo tempo e, finalmente, conseguiu revivê-lo.

“Como você conseguiu beber aquilo, Nasruddin? Você não viu o rótulo na garrafa? Estava escrito ‘veneno’!”

“Vi, doutor”, respondeu Nasruddin, “mas eu não acre­ditei.”

“Por que não?”, perguntou o dr. Abrams.

Nasruddin respondeu: “Porque sempre que acredito em alguém sou enganado”.

Pouco a pouco, as pessoas aprendem a não acreditar, a não confiar, a permanecerem cronicamente em dúvida. E isso ocorre tão vagarosamente, em doses tão pequenas, que você nunca está alerta para o que está acontecendo com você. Quando vê, é tarde demais.

É isso o que as pessoas chamam de experiência. Diz-se que uma pessoa é experiente quando ela perdeu contato com o coração. Dizem então: “Esse é um homem muito experiente, muito esperto, muito astuto; ninguém pode enganá-lo”.

Talvez ninguém possa enganá-lo, mas ele enganou a si mesmo. Ele perdeu tudo aquilo que era valioso; ele perdeu tudo.

Então, um fenômeno muito peculiar acontece: não se pode amar pessoas, porque pessoas podem enganar. Começa-se a amar coisas, então. Como há uma grande necessidade de amar, as pessoas vão buscando substitutos: alguém ama a sua casa, alguém ama o seu carro, alguém ama as suas roupas, alguém ama o seu dinheiro...

É claro, a casa não pode enganá-lo, o amor não corre risco. Você pode amar o carro - um carro é mais confiável do que uma pessoa real. Você pode amar o dinheiro - o dinheiro é uma coisa morta, está sempre sob seu controle. Por que tantas pessoas amam coisas em vez de pessoas? E até mesmo quando, às vezes, amam uma pessoa, elas tentam reduzir a pessoa a uma coisa.

Se você ama uma mulher, você está, de imediato, pronto para reduzi-la tornando-a sua esposa. Você está pronto para reduzi-la a determinado papel: o papel de esposa, mais previsível do que a realidade de uma amada.

Se você ama um homem, você está pronta para possuí-lo como uma coi­sa. Você quer que ele seja seu marido, porque um amante é mais líquido, nunca se sabe... Um marido parece algo mais sólido. Pelo menos, existe a lei, existe o tribunal, existe a polícia, existe o Estado, que dão certa solidez ao marido. Um amante parece ser como um sonho: não tão substancial.

Assim que as pessoas se apaixonam, elas estão prontas para o casamento - tal é o medo do amor. E seja quem for que amemos, começamos a tentar controlar. Esse é o conflito que permanece entre esposas e maridos, mães e filhos, irmãos e irmãs, amigos - quem vai possuir quem? Isso significa: quem vai definir quem, quem vai reduzir quem a uma coisa? Quem será o senhor e quem será o escravo?

Mulla Nasruddin sentou-se, resmungando, para beber; e um amigo lhe disse: “Você parece mal hoje, Mulla. O que houve?”

Nasruddin disse: “Meu psicanalista disse que estou amando o meu guarda-chuva e que essa é a fonte dos meus problemas”.

“Amando seu guarda-chuva?!”

“É. Isso não é ridículo? Ora, eu gosto dele, eu respeito o meu guarda-chuva, gosto da companhia dele. Mas... amor?”

Mas o que mais é amor? Se você aprecia a companhia do seu guarda-chuva, se você o respeita, se você gosta do seu guarda-chuva, o que mais é amor?

Amor é respeito, um tremendo respeito; amor é um gostar profundo; e amor é pura alegria com a presença daquele que você ama. O que mais é amor? Mas as pessoas amam coisas - uma necessidade profunda é, de alguma forma, preenchida por substitutos.

Lembre-se: a primeira calamidade é a pessoa tornar-se orientada-pela-cabeça. A segunda calamidade é a pessoa começar a substituir a necessidade de amor por coisas. Então, você está perdido, perdido na terra desértica. Então, você nunca alcançará o oceano. Então, você simplesmente se dissipará e evaporará. Então, sua vida toda será um puro desperdício.

No momento em que você toma conhecimento de que é isso o que está acontecendo, mude o fluxo: faça todos os esforços para contatar novamente o coração. É isso o que os bauls chamam de amor - refazer o contato com o coração para desfazer o que foi feito a você pela sociedade.

Osho, em "Vida, Amor e Riso"

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A relação é o espelho que nos permite ver a nós mesmos

Estamos mantendo uma conversa, como dois amigos que estão passeando por um caminho arborizado com abundancia de sombras e cantos de pássaros, e agora estão sentados juntos e conversam sobre todo problema da existência, que é muito complexo. Não estamos nos convencendo mutuamente a respeito de algum tema, não tratamos de persuadir nem de sobrepor-nos um ao outro mediante argumentos ou apegando-nos dogmaticamente às próprias opiniões e preconceitos; mas vamos olhar juntos ao mundo tal como ele é, e também olharemos o mundo que existe dentro de nós.

Muitos volumes tem sido escrito a respeito do mundo exterior e o meio ambiente, a sociedade, a política, a economia e muito mais, porém pouquíssimos tem chegado ao extremo de descobrir o que realmente somos, ou seja, descobrir por que os seres humanos se comportam do modo como fazem, matando-se uns aos outros, constantemente angustiados, seguindo alguma pessoa, alguma autoridade, algum livro, algum ideal, sem ter uma verdadeira relação com seus amigos, suas esposas, seus maridos e seus filhos; descobrir por que os seres humanos, depois de tantos milênios, tem chegado a ser tão vulgares, tão cruéis, tão completamente desprovidos de afeto, de consideração, de atenção perante os outros, negando todo o processo do que consideram que é o amor.

Exteriormente, o homem tem vivido em meio de guerras durante milhares e milhares de anos. Agora estamos tratando de deter a guerra nuclear, porém, jamais deteremos as guerras. Não tem havido em nenhuma parte do mundo manifestações publicas para colocar fim as guerras, senão que há manifestações contra determinadas guerras, e estas guerras tem continuado; as pessoas são exploradas, oprimidas, e o opressor se converte em oprimido. Este é o ciclo da existência humana com sua dor, sua solidão, sua grande sensação de desalento, sua ansiedade crescente, sua total falta de segurança. Não temos relação com a sociedade nem com nossos seres mais íntimos, uma relação sem disputas, sem conflitos, sem rinhas, sem angústias e tudo isto. Este é o mundo em que vivemos e ao que, estou seguro, vocês conhecem muito bem.

Como dissemos ontem, devemos olhar as atividades do pensamento, porque vivemos a base de pensamentos. Todas as nossas ações se baseiam no pensamento, todos os nossos esforços deliberados tem por base o pensamento: nossas meditações, nossos cultos, nossas orações. O pensamento tem produzido a divisão das nacionalidades que dão origem as guerras, a divisão das religiões, como a judia, a árabe, a muçulmana, a cristã, a hindu, a budista, etc. O pensamento tem dividido o mundo não somente geograficamente, senão também no psicológico, no interno. O homem está fragmentado, dividido não só no nível psicológico mecânico de sua existência, senão também em suas ocupações. Se você é um professor, tem seu próprio pequeno circulo e vive dentro desse circulo. Se é um homem de negócios, se ocupa de fazer dinheiro, se é um político, vive dentro dessa área. E se é uma pessoa religiosa no sentido aceito da palavra, com a prática de diversas formas de rituais, meditações, com a veneração de algum ídolo e coisa assim, então também vive uma vida fragmentada. Cada fragmento tem sua própria energia, sua própria capacidade, sua própria disciplina, e cada curso de ação julga um papel extraordinário em contradição com outro curso. Vocês devem conhecer tudo isto. Esta divisão, tanto externamente, geograficamente, como no religioso, no nacional e na relação que existe entre você mesmo e outro ser humano, é um desperdício enorme de energia. É um conflito que dissipa nossa energia nas disputas, dividindo-nos, fazendo que cada qual persiga o seu, suas próprias aspirações, que exija sua própria segurança pessoal, etc. Toda ação necessita de energia, todo pensar necessita energia. Esta energia que se fragmenta de um modo constante, implica num desgaste energético. Quando uma energia contradiz outra, quando uma ação contradiz ação , dizer uma coisa e fazer outra, o qual é, obviamente, uma aceitação hipócrita da vida, há desperdício de energia. Todas essas atividades devem, por força, condicionar a mente, o cérebro. Estamos condicionados a ser hindus, budistas, muçulmanos, cristão, com todas as superstições e crenças que isso implica. Estamos condicionados, a respeito disso não cabe nenhuma duvida. Não podemos argumentar que não estamos condicionados: o estamos, religiosamente, politicamente, geograficamente. Até que não estejamos livres do condicionamento, livres das atividades do pensar que cria grandes problemas, esses problemas não poderão ser resolvidos. Necessita-se de um instrumento novo para resolver os problemas humanos. A medida que avançamos vamos conversar sobre isso, porém não lhe corresponde a quem lhes fala, dizer qual é a nova qualidade desse instrumento; cada um tem que descobri-lo por si mesmo. Por isso que devemos pensar juntos, de ser possível. Isso requer que vocês e quem lhes fala sintamos, averiguemos, examinemos, questionemos, coloquemos em dúvida todas estas coisas que o homem tem produzido, todas as coisas que temos criado como barreiras entre uns e outros. Como seres humanos que vivemos nesta formosa terra que é lentamente destruída, que é nossa terra, não a terra inglesa, não a terra norte-americana, temos que viver inteligentemente, ditosamente; porem, pelo que parece, isso não é possível porque estamos condicionados. Este condicionamento é como o de um computador: estamos programados. Programados para ser hindus, muçulmanos, cristãos, católicos, protestantes. O mundo cristão tem sido programado durante mil anos, e o cérebro tem se condicionado, por causa desse programa, como um computador. Assim, nossos cérebros estão condicionados, e nos perguntamos se de algum modo é possível livrar-se desse condicionamento. A menos que estejamos total, completamente livres dessa limitação, não tem sentido o mero inquirir ou averiguar em que consiste esse novo instrumento que não é o pensar.

Em primeiro lugar, você deve começar muito próximo para ir muito longe. Nós queremos chegar muito longe sem dar o primeiro passo, e quem sabe o primeiro passo seja o último passo. Estamos nos compreendendo um ao outro, estamos nos comunicando ou estou falando só para mim mesmo? Se estou falando para mim mesmo, posso fazê-lo em minha própria casa. Porém, se estamos falando, se estamos sustentando uma conversação, essa conversação tem um significado quando ambos nos encontramos no mesmo nível, com a mesma intensidade e ao mesmo tempo. Isso é amor. Essa é a verdadeira e profunda amizade. Para mim, está não é uma conferencia no sentido usado da palavra. Juntos tratamos de examinar e resolver os problemas humanos. Isso requer muitíssima investigação, porque os problemas humanos são muito, muito complexos. Você deve possuir a qualidade da paciência, a qual não pertence ao tempo. Todos estamos impacientes por progredir: “Diga-me rapidamente isto ou aquilo”, porem se tem paciência, ou seja, se não estão tratando de obter algo, de alcançar algum fim, alguma meta, então investigam passo a passo.

Como dizíamos, estamos programados. Nosso cérebro é um processo mecânico. Nosso pensamento é um processo de caráter material, e esse pensamento tem sido condicionado para pensar como budista, hindu, cristão e assim sucessivamente. De modo que nosso cérebro está condicionado. É possível liberar-se desse condicionamento? Estão os que dizem que isso não é possível, porque perguntam: Como pode ser que um cérebro, que tem sido condicionado durante tantos séculos e séculos, esse condicionamento seja eliminado de maneira tão completa que o cérebro humano seja prístino, original, e esteja dotado de uma capacidade infinita? Muitas pessoas afirmam isto e se satisfazem com a mera modificação do condicionamento. Porém, dizemos que este condicionamento pode ser examinado, observado e que é possível se libertar completamente dele. Para descobrir por nós mesmos se isso é possível ou não, devemos investigar nossa relação.

A relação é o espelho em que vemos a nós mesmos tal como somos. Toda vida é um movimento em relação. Não existe nada vivente sobre a Terra que não esteja relacionada com uma outra coisa. Mesmo o ermitão, um homem que anda solitário, segue em relação com o passado e com aqueles que lhe rodeiam. Não é possível escapar da relação. Nessa relação, que é o espelho que nos permite ver a nós mesmos, podemos descobrir o que somos, nossas reações, nossos preconceitos e temores, as depressões e ansiedades, a solidão, a dor, a autopiedade, a angústia. Também podemos descobrir se amamos ou se não há tal coisa como o amor. Portanto, examinemos este problema da relação, porque a relação é a base do amor. É a única coisa que agora temos entre nós. Se você não pode descobrir a verdadeira relação, se vive sua própria e estreita vida particular, aparte de sua esposa, se deu marido, etc., essa existência isolada produz sua própria destruição.

A relação é a coisa mais extraordinariamente importante que há na vida. Se não compreendemos essa relação, não poderemos criar uma nova sociedade. Vamos investigar muito detidamente o que é a relação, por que os seres humanos, durante toda sua larga existência como tal, jamais tem tido uma relação sem o sentimento possessivo, sem opressão, sem apego, contradição, etc. Por que existe sempre esta divisão: homem e mulher, nós e eles? Vamos examinar juntos. Este exame pode ser intelectual, ou seja, meramente verbal, porém, tal compreensão intelectual não possui nenhum valor. É tão somente uma ideia, um conceito; porem se podemos considerar nossa relação como algo total, então, talvez possamos ver a profundidade, a beleza, e a qualidade da relação. De acordo, senhores? Podemos prosseguir? Nos perguntamos qual é, de fato, a relação que agora temos um com o outro, não a relação teórica, romântica ou idealista, todas irreais, senão a factual, a relação cotidiana que tem entre si o homem e a mulher. Estão absolutamente relacionados? Existe a relação biológica; essa relação é sexual, prazerosa. É possessão, apego, diversas formas de mutua posse violenta.

Que é o apego? Por que temos uma necessidade tão tremenda de apego? Que implica o apego? Por que nos apegamos? Quando estamos apegados a qualquer coisa, sempre há medo, medo de perder aquilo a que se apega. Há sempre o sentimento de insegurança. Por favor, observem-no em si mesmos. Sempre existe um sentido de separação. Estou apegado a minha esposa. Me apego a ela porque me dá prazer sexual, o prazer de sua companhia. Vocês conhecem tudo isso sem que eu o diga. Estou, pois, apegado a ela, o que quer dizer que estou ciumento, atemorizado. Onde há ciúmes, há ódio. E o amor é apego? Esse é um aspecto a ser observado em nossa relação.

Então, em nossa relação cada um tem criado, através dos anos, uma imagem com respeito ao outro. Essas imagens que ele e ela tem criado, constituem a relação. Podem dormir juntos, porém, o fato é que cada um tem uma imagem um do outro, e nessa relação entre imagens, como pode haver uma relação verdadeira, factual com o outro? Todos, desde a infância, temos formado imagens a respeito de nós mesmos e dos demais. Esta pergunta que nos formulamos é muito, muito seria: podemos viver sem uma só imagem em nossa relação? Por certo, todos vocês tem uma imagem de quem lhes fala, não é assim? Obviamente, a tem. Por que? Vocês não o conhecem, de fato não o conhecem. Ele se senta em um estrado e fala, porem, vocês não se relacionam com ele, porque tem a seu respeito uma imagem. Tem criado uma imagem dele e tem suas próprias imagens pessoais a respeito de si mesmos. Tem inumeráveis imagens dos políticos, dos homens de negócios, do guru, disto e daquilo. Pode-se viver profundamente sem uma só imagem? A imagem pode ser uma conclusão a respeito de nossa esposa, uma representação mental, uma imagem sexual; pode ser a imagem de um vinculo melhor e assim sucessivamente. Por que os seres humanos temos imagens em absoluto? Por favor, formulem-se esta pergunta. Quando tem uma imagem um do outro, essa imagem lhes transmite uma sensação de segurança.

O amor não é pensamento. O amor não é desejo, não é prazer, não é o movimento de imagens; e enquanto se tenha imagens do outro, não há amor. E nos perguntamos: é possível viver uma vida sem uma só imagem? Então estão relacionados um com o outro. Tal como ocorre hoje em dia, é igual como se fossem duas linhas paralelas que jamais se encontram, exceto sexualmente. Um homem vai a oficina, é ambicioso, ávido, invejoso, procura alcançar uma posição no mundo dos negócios, no mundo religioso, no profissional; e a mulher moderna também vai a oficina, e ambos se encontram no lar para fazerem filhos. E surge todo o problema da responsabilidade, o problema da educação, da total indiferença. Não importa a vocês o que depois possam ser os seus filhos, o que possa acontecer-lhes. Querem que sejam como vocês: um casamento seguro, uma casa, um bom emprego, etc. Correto? Esta é nossa vida, nossa vida cotidiana, e é realmente uma vida deplorável. Por conseguinte, si se perguntam por que os seres humanos vivem a base de imagens – todos os seus deuses são imagens, o deus cristão, o deus muçulmano, o deus de vocês -, verão que estas são criadas pelo pensamento, e o pensamento é inseguro, temeroso. Não há segurança nas coisas produzidas pelo pensamento. É possível, então, nos libertar-nos de nosso condicionamento na relação? Ou seja, observar atenta, minuciosa e persistentemente, no espelho da relação, quais são nossas reações, se são mecânicas, se são produto do hábito, da tradição. Nesse espelho descobrimos realmente o que somos. Em conseqüência, a relação é extraordinariamente importante.

Temos que investigar o que é observar. Como observam, no espelho da relação, o que são realmente? Que significa observar? Esta é, em verdade, outra coisa importante que temos de descobrir. Que significa olhar? Quando olhamos uma árvore, que é a cosia mais bela, mais elegante que há sobre a Terra, como a olham? A olharam alguma vez, olharam alguma vez a Lua Nova, o encontro da Lua Nova, tão delicada, tão pura, tão jovem? Alguma vez a olharam? Podem olhá-la sem usar a plavra “lua”? Tudo isto, lhes interessa realmente? Continuarei, como um rio que prossegue seu curso. Vocês estão sentados na orla do rio e o contemplam, porém, jamais chegam a ser o rio, por que nunca participam do rio, nunca se unem a beleza do movimento que não tem principio nem fim. Assim que, por favor, considerem o que é observar.

Quando observam uma árvore, ou a Lua, algo exterior a vocês, sempre usam a palavra “arvore”, “Lua”. Podem olhar a Lua, a árvore, sem nomeá-los, sem o conteúdo da palavra, sem identificar a palavra com a árvore, com a coisa? Agora bem, podem olhar a esposa, o marido, os filhos, sem as palavras, que os identificam, sem as imagens? Já o tentaram alguma vez? Quando observam sem uma palavra, sem um nome, sem a forma que tem criado a respeito dele ou dela, nessa observação não há um centro do qual estejam observando. Descubram o que ocorre então. A palavra é pensamento. O pensamento, se origina na memória. Temos, pois, a memória, a palavra, o pensamento, a imagem que interfere entre si mesmo e o outro. Correto? Porém não há pensamento que olhe, que observe, pensamaento no sentido de palavra, de conteúdo e significado da palavra. Então, nessa observação não há um centro como o “eu” que olha o “tu”. Só assim há uma verdadeira relação com o outro. Nela existe qualidade de aprender, uma qualidade de incontestável sensibilidade e beleza.

Jiddu Krishnamurti - A mente que não mede
Madrás, Índia, 26 de dezembro de 1982

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Só pode haver relação no total abandono do “eu”


Nesta tarde, talvez possamos considerar (não intelectual­mente, porém realmente, com nosso coração, nossa mente, todo o nosso ser), talvez possamos dispensar toda a atenção à questão das relações, não só entre os homens, mas também à relação do homem com a natureza, com o universo, com tudo o que vive. Porém, como já observamos, a sociedade nos está fazendo, e nós estamos ficando cada vez mais mecânicos, superficiais, insensíveis, indiferentes. Uma horrível matança está ocorrendo no Extremo Oriente e nos mantemos relativamente despreocupa­dos. Alcançamos grande prosperidade, mas essa prosperidade nos está destruindo, porque nos estamos tornando indiferentes e indolentes, porque nos mecanizamos, perdendo a estreita relação com todos os homens e todos os entes vivos; e parece-me impor­tantíssimo fazermos esta pergunta: Que é relação — se de fato alguma relação existe — e que lugar compete, nessa relação, ao amor, ao pensamento e ao prazer?

(...) Que é nossa vida, que exige relações profundas, seja com a esposa, o marido, os filhos, a família, seja com a comunidade ou outra entidade qualquer? (...) Temos um problema imenso, que é o de compreender a existência, de aprender a viver. E,       como disse­mos, viver é relação, não há viver se não estamos em relação. E, como a maioria de nós não se acha em relação, no sentido mais profundo da palavra, tentamos identificar-nos com alguma coisa — com a nação, com um dado sistema ou filosofia, ou certo dogma ou crença.               É isto que se observa no mundo: a identificação de cada indivíduo com alguma coisa — com a família ou com sua própria pessoa — e eu não sei o que significa “identificar-se consigo mesmo”.

Esta existência fragmentária, separativa, leva inevitavelmente a várias formas de violência.(...) “Ser respeitável” é ser moral em conformidade com uma coisa deveras imoral. Em tais condições, há alguma espécie de relação? Relação significa estar em con­tato, profundamente, fundamentalmente, com a natureza, com outro ente humano — estar em relação, não de sangue, como membro de uma família, ou como marido e mulher, pois isso difi­cilmente pode chamar-se “estar em relação”. (...) Quase todos nós temos imagens acerca de nós mesmos e a imagem de outrem; temos tais imagens, nas relações.(...) quando conhecemos uma pessoa intimamente, dela já formamos uma imagem; a própria intimidade implica a imagem que tendes da pessoa (...) E há a imagem da sociedade, e as imagens que temos acerca de Deus, da verdade, de tudo.

Como se origina essa imagem? E, se ela existe — e ela existe, pode-se dizer, em todas as pessoas — como é então possível haver qualquer relação real? Relação significa estar profundamente em contato um com outro. Dessa relação pode nascer a cooperação, o trabalhar juntos, fazer coisas juntos. Mas, se há alguma imagem — eu com uma imagem de vós, e vós com uma imagem de mim — que relação pode haver, a não ser a relação de uma ideia, de um símbolo, de certa memória, que se torna a imagem? Estão essas imagens em relação, e é nisso que consistem as relações? Pode haver amor, no verda­deiro sentido desta palavra(...), pode haver efetivamente esse sentimento de amor quando as relações são pura­mente conceituais, entre imagens, e não relações reais? Só pode haver relação entre os entes humanos quando aceitamos o que é, e não o que deveria ser. Estamos sempre vivendo no mundo das fórmulas, dos conceitos, que são imagens do pensamento. Pode, pois, o pensamento, o intelecto, estabelecer relações cor­retas? Pode a mente, o cérebro, com todos os seus instrumentos de autoproteção(...) pode esse cérebro, que é inteiramente reação da memória e do pensa­mento, estabelecer relações corretas entre os seres humanos? Que lugar compete à imagem, ao pensamento, nas relações? Há realmente lugar para eles?

(...) se perdestes a relação com a natureza, como podeis estar em relação com o homem? Quanto mais vivemos na cidade, tanto menos estamos em contato com a natureza. Quando saís a passear, num domingo, olhais as árvores e dizeis “Que bonitas!” e retornais à vossa vida de rotina, dentro de gavetas, chamadas casas ou apartamentos. Estais perdendo a relação com a natureza. Prova-o o fato de visitardes os museus e passardes uma manha inteira a contemplar quadros — abstrações de “o que é” — o que demonstra que perdestes realmente, totalmente, o contato e a relação com a natureza. Quadros, con­certos, estátuas, tornaram-se de enorme importância, e nunca olhais uma árvore, um pássaro, o esplendor de uma nuvem.

Ora, que são relações? Temos, de fato, alguma espécie de relação? Vivemos tão fechados, tão absorvidos em proteger-nos, que nossas relações se tornaram apenas superficiais, sensuais, aprazíveis. Se nos examinarmos em silêncio(...), se observarmos a nós mes­mos tais como realmente somos, talvez possamos descobrir o quanto estamos a isolar-nos todos os dias, a erguer em torno de nós muralhas de defesa, de medo. Olhar a nós mesmos é mais importante e de maior necessidade do que nos observarmos de acordo com um especialista. Se vos olhais de acordo com Jung ou Freud, ou Buda, ou outrem, estais a olhar-vos com olhos alheios. Estamos sempre fazendo isto; para olhar, já não dispomos de nossos próprios olhos, e eis porque estamos perdendo a beleza que há em olhar.

Pois bem; quando vos olhais diretamente, não descobris que vossas atividades diárias (vossos pensamentos, vossas am­bições, vossa agressividade, vossa constante ânsia de ser amado e de amar, a constante tortura do medo, a agonia do isolamento), não descobris que essas coisas são fortemente separativas e causa­doras de profundo isolamento? E, nesse profundo isolamento, que relação podeis ter com outro, com esse outro que também se isola com sua ambição, sua avidez, sua avareza, sua ânsia de domínio, de posse, de poder, etc.? Eis, pois, duas enti­dades chamadas entes humanos a viverem em seu próprio isola­mento, a gerarem filhos, etc., mas sempre no isolamento. E a cooperação entre essas duas entidades isoladas torna-se mecâ­nica; alguma cooperação, entretanto, é necessária entre eles, para que possam viver, ter família, trabalhar num escritório ou numa fábrica, mas eles permanecem sempre entidades isoladas, com suas crenças e dogmas, suas nacionalidades(...). O isolamento, portanto, é, essencialmente, o fator do estado de “não relação”. E nas pseudo-relações desse isolamento o prazer se torna da máxima importância.

(...)Se nossa relação é produto do prazer sexual, ou do prazer derivado da família, da propriedade, do domínio, do controle, do medo de nos vermos desprotegidos, privados de segurança interior e, por conseguinte, sempre a buscar o prazer — então que lugar com­pete ao prazer nas relações? A exigência de prazer destrói todas as relações, sejam sexuais, sejam de outra espécie. E, se bem observarmos, veremos que todos os nossos chamados “valores morais” baseiam-se no prazer, embora o disfarcemos com a “virtuosa” moralidade de nossa respeitável sociedade.

Assim, quando nos interrogamos, quando olhamos fundo em nós mesmos, percebemos essa atividade de auto-isolamento, esse “eu”, esse “ego”, a erguer defesas em torno de si, e essas próprias defesas são o “eu”. Este “eu” é isolamento, é ele que produz fragmentos, que produz o “olhar” que se fragmenta em pensador e pensamento. (...) É ou não é um fato que estamos vivendo na dependência de uma imagem, de uma fórmula, de um fragmento que nos está isolando? Não foi por causa desse isolamento que o medo, com sua dor e prazer (produtos do pensamento), se tornou existente? Tenta então aquela imagem identificar-se com algo que seja permanente, com Deus, com a verdade, com a nação, a bandeira, etc.

Assim, se o pensamento é velho (e ele é sempre velho e, por conseguinte, nunca é livre), como pode ele compreender as relações? As relações estão sempre no presente vivo (não no passado morto, da memória, das lembranças, do prazer e da dor), as relações estão ativas agora; “estar em relação” significa justamente isso. Ao olhardes para outra pessoa com olhos cheios de afeição, de amor, estabelece-se uma relação ime­diata. Quando sois capaz de olhar uma nuvem com olhos que a estão vendo pela primeira vez, há então uma relação profunda. Mas, se o pensamento se intromete, então essa relação se converte em imagem. Assim, pergunta-se: Que é o amor? O amor é prazer? O amor é desejo? É o amor a lembrança de uma mul­tiplicidade de coisas que formastes e conservastes — a respeito de vossa esposa, de vosso marido, de vosso próximo, da socie­dade, da comunidade, de vosso Deus? Pode-se chamar a isso amor?

Se o amor é produto do pensamento (como de fato é, na maioria dos casos), então esse amor está fechado entre cercas, emaranhado na rede do ciúme, da inveja, do desejo de dominar, de possuir e ser possuído, da ânsia de ser amado e de amar. Pode, então, haver amor a um e amor a todos? Se amo um, destruo o amor para com outros? E como, para a maioria de nós, o amor é prazer, companhia, conforto, segregação na família e o sentimento de segurança que nela se encontra existe, aí, realmente amor? Pode um homem que está acorrentado à fa­mília amar o seu próximo? Podeis discorrer teoricamente acerca do amor, ir à igreja para amar a Deus (o que quer que isso signifique) e, no dia seguinte, ir para o trabalho e destruir o vosso próximo — porque estais em competição com ele, ambicio­nando o seu cargo, as suas posses, e desejando melhorar a vós mesmos, comparando-vos com ele. Assim, quando, dentro em vós existe essa atividade, da manhã à noite, e mesmo durante o sono em sonhos, podeis estar em relação? Ou relação é coisa de todo diferente?

Só pode haver relação quando há total abandono do “eu”, do “ego”. Quando não existe “eu”, estais então em relação; nesta, não há separação de espécie alguma. Provavelmente, nunca experimentamos esse estado de total negação (não intelectual, porém real), de total cessação do “eu”. E talvez seja esse estado que a maioria de nós está buscando, sexualmente ou pela identi­ficação com uma coisa superior. Todavia, esse processo de identificação com uma coisa superior deriva do pensamento; e o pensamento é sempre velho (como o “eu”, o “ego”, ele pertence ao passado).(...) Como é possível abandonar de todo esse processo isolante, esse processo que se centraliza no “eu”? Como é possível isso? (...) Como pode o “eu”, cujas atividades diárias são motivadas pelo medo, pela ansiedade, pelo desespero, a tristeza, a confusão e a esperança — como pode esse “eu” que se separa de outro pela identificação com Deus, com seu condicionamento, sua sociedade, suas atividades morais e sociais, com o Estado — morrer, desaparecer, para que o ente humano possa estar em relação? Porque, se não estamos em relação, iremos viver em guerra uns com os outros. Poderá não haver matança mútua, porque isso se está tornando muito perigoso, a não ser, talvez, em terras muito longínquas. Como podemos viver de modo que não haja separação, de modo que possamos cooperar realmente?

Há tanta coisa por fazer neste mundo — acabar com a pobreza, viver com felicidade, viver deleitosamente em vez de viver na agonia e no medo, edificar uma sociedade de espécie com­pletamente diferente, com uma moralidade superior. Isso, porém, só se tornará possível quando a moralidade da atual sociedade for totalmente negada. Há tanto que fazer, e que não poderá ser feito enquanto estiver em funcionamento o processo de isolamento. Falamos do “eu”, do “meu”, e do “outro”; “o outro” está do outro lado do muro, e o “eu” e o “meu” deste lado. Como pode, pois, essa essência da resistência, que é o “eu”, ser totalmente abandonada? Porque esta é realmente a questão mais importante, em todas as relações — já que percebemos que a relação entre imagens não é relação nenhuma e que, quando existe tal qualidade de relação, há necessariamente conflito e estamos sempre em guerra uns com os outros.

(...)Vós tendes vivido num espaço criado pelo “eu” (um espaço limitadíssimo). O espaço que o “eu” criou entre uma pessoa e outra (o processo de isolamento), é esse o único espaço que conhecemos, o espaço entre ele próprio e a circunfe­rência (a fronteira que o pensamento criou). Nesse espaço é que vivemos; nele há divisão. Dizeis: “Se abandono a mim mesmo, ou se abandono o centro que é o “eu”, ficarei vivendo num vácuo.” Mas, já alguma vez abandonastes o “eu”, de fato, real­mente, de modo que dele não tenha ficado nenhum resquício? Já vivestes neste mundo nesse estado de espírito — no vosso tra­balho, com vossa esposa ou marido? Se alguma vez já vivestes assim, deveis saber que há um estado de relação em que o “eu” não existe, um estado que não é utópico, que não é coisa sonhada ou experiência mística, irracional, porém um estado possível: viver numa dimensão em que todos os entes humanos estejam relacionados.

Mas essa possibilidade só existe se compreendemos o que é o amor. E, para existirmos, para vivermos nesse estado, temos de compreender o prazer (sustentado pelo pensamento) e todo o seu mecanismo. Então, se poderá ver instantaneamente todo o complicado mecanismo que construímos para nós mesmos e em redor de nós. Não há necessidade de percorrermos todo o pro­cesso analítico, ponto por ponto. Toda análise é fragmentária e, por essa porta, não virá resposta nenhuma.

Existe este imenso e complexo problema da existência, com seus temores, ansiedades, esperanças, passageira felicidade e alegrias, mas a análise não pode resolvê-lo. O que o resolverá é abarcá-lo, no seu todo, num rápido lance de olhos. Só podemos compreender uma coisa quando a olhamos (não com o olhar prolongado, exercitado, do artista, do cientista ou do homem que se exercitou para “olhar”), só podemos compreender uma coisa quando a olhamos com toda a atenção, quando a vemos, em seu conjunto, num relance de olhos. E, assim, vos sentireis livres. Estareis então fora do tempo. O tempo se deterá e, por conseguinte, terá fim o sofrer. O homem entregue à amargura ou ao medo não está em relação. Como pode um homem ambicioso de poder estar em relação? Ele poderá ter família, dormir com sua mulher, mas não está em relação. Quem compete com outro não está em nenhuma relação. E toda a nossa estrutura social, com sua moralidade, se baseia na competição. Achar-se em relação, fundamental e essencialmente, significa a cessação do “eu”, gerador da separação e do sofrimento.


Krishnamurti – 25 de abril de 1968 – Onde está a bem-aventurança

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Pode o pensamento, estabelecer corretos relacionamentos?

Como já observamos, a sociedade está nos fazendo, e nós estamos ficando cada vez mais mecânicos, superficiais, insensíveis, indiferentes. Uma horrível matança está ocorrendo no Extremo Oriente e nos mantemos relativamente despreocupados  Alcançamos grande prosperidade, mas essa prosperidade está nos destruindo, porque estamos nos tornando indiferentes e indolentes, porque nos mecanizamos, perdendo a estreita relação com todos os homens e todos os entes vivos; e parece-me importantíssimo fazermos esta pergunta: Que é relação — se de fato alguma relação existe — e que lugar compete, nessa relação, ao amor, ao pensamento e ao prazer?

(...) Consideremos esta questão da relação, questão realmente importantíssima, porque viver é estar em relação; e, considerando-a, indaguemos o que significa viver. Que é nossa vida, que exige relações profunda, seja com a esposa, o marido, os filhos, a família, seja com a comunidade ou outra entidade qualquer? Ao tratarmos desta questão, não podemos considerá-la fragmentariamente, porque, se tomamos uma única seção, uma única parte da totalidade da existência e procuramos resolver só essa parte, a questão não fica de modo nenhum resolvida. (...)Assim, pergunto se podemos, pelo menos por esta tarde (e espero por todo o resto de nossa vida) observar a vida sem estarmos fragmentados — como católicos, protestantes, especialistas do Zen, ou seguidores de determinado guru, determinado Mestre, coisa absurda e pueril. Temos um problema imenso, que é o de compreender a existência, de aprender a viver. E, como dissemos  viver é relação, não há viver se não estamos em relação. E, como a maioria de nós não se acha em relação, no sentido mais profundo da palavra, tentamos identificar-nos com alguma coisa — com a nação, com um dado sistema ou filosofia, ou certo dogma ou crença. É isto que se observa no mundo: a identificação de cada indivíduo com alguma coisa — com a família ou com sua própria pessoa — e eu não sei o que significa "identificar-se consigo mesmo".

Esta existência fragmentária, separativa, leva inevitavelmente a várias formas de violência. Assim, se pudéssemos dispensar atenção ao problema das relações, teríamos talvez a possibilidade de resolver as iniquidades sociais, as injustiças, a imoralidade e aquela coisa terrífica chamada "respeitabilidade", que o homem sempre cultivou. "Ser respeitável" é ser moral em conformidade com uma coisa verdadeiramente imoral. Em tais condições, há alguma espécie de relação? Relação significa estar em contato  profundamente, fundamentalmente, com a natureza, com outro ente humano — estar em relação, não de sangue, como membro de uma família, ou como marido e mulher, pois isso dificilmente pode chamar-se "estar em relação". Para compreender a natureza desta questão, temos de considerar outro ponto, ou seja o mecanismo da formação de imagens, da criação de uma ideia, de um símbolo. Quase todos nós temos imagens acerca de nós mesmos e a imagem de outrem; temos tais imagens, nas relações. Tendes vossa imagem do orador, e o orador, como não vos conhece, não tem imagem nenhuma de vós. Mas, quando conhecemos uma pessoa intimamente, dela já formamos uma imagem; a própria intimidade implica a imagem que tendes da pessoa — a esposa tem uma imagem do marido, e este tem uma imagem dela. E há a imagem da sociedade, e as imagens que temos acerca de Deus, da verdade, de tudo.

Como se origina essa imagem? E, se ela existe — e ela existe, pode-se dizer, em todas as pessoas — como é então possível haver qualquer relação real? Relação significa estar profundamente em contato um com outro. Dessa relação pode nascer a cooperação, o trabalhar juntos, fazer coisas juntos. Mas, se há alguma imagem — eu com uma imagem de vós, e vós com uma imagem de mim — que relação pode haver, a não ser a relação de uma ideia, de um símbolo, de uma certa memória, que se torna a imagem? Estão essas imagens em relação, e é nisso que consistem as relações? Pode haver amor, no verdadeiro sentido desta palavra (não em conformidade com os sacerdotes  ou em conformidade com os teólogos, ou em conformidade com os comunistas ou esta ou aquela pessoa), pode haver efetivamente esse sentimento de amor quando as relações são puramente conceituais, entre imagens, e não relações reais? Só pode haver relação entre os entes humanos quando aceitamos o que é, e não o que deveria ser. Estamos sempre vivendo no mundo das fórmulas, dos conceitos, que são imagens do pensamento. Pode, pois, o pensamento, o intelecto, estabelecer relações corretas  Pode a mente, o cérebro, com todos os seus instrumentos de autoproteção, formados através de milhões de anos — pode esse cérebro, que é inteiramente reação da memória e do pensamento  estabelecer relações corretas entre os seres humanos? Que lugar compete à imagem, ao pensamento, nas relações? Há realmente lugar para eles?

(...)Ora, que são relações? Temos, de fato, alguma espécie de relação? Vivemos tão fechados, tão absorvidos em proteger-nos, que nossas relações se tornaram apenas superficiais, sensuais, aprazíveis. Se nos examinarmos em silêncio (não de acordo com Freud ou Jung ou outro especialista), se observarmos a nós mesmos tais como realmente somos, talvez possamos descobrir o quanto estamos a isolar-nos todos os dias, a erguer em torno de nós muralhas de defesa, de medo. Olhar a nós mesmos é mais importante e de maior necessidade do que nos observarmos de acordo com um especialista. Se vos olhais de acordo com Jung ou Freud, ou Buda, ou outrem, estais a olhar-vos com olhos alheios. Isso estamos sempre fazendo; para olhar, já não dispomos de nossos próprios olhos, e eis porque estamos perdendo a beleza que há em olhar.

Pois bem; quando vos olhais diretamente, não descobris que vossas atividades diárias (vossos pensamentos, vossas ambições  vossa agressividade, vossa constante ânsia de ser amado e de amar, a constante tortura do medo, a agonia do isolamento), não descobris que essas coisas são fortemente separativas e causadoras de profundo isolamento? E, nesse profundo isolamento, que relação podeis ter com outro, com esse outro que também se isola com sua ambição, sua avidez, sua avareza, sua ânsia de domínio, de posse, de poder, etc.? Eis, pois, duas entidades chamadas entes humanos a viverem em seu próprio isolamento, a gerarem filhos, etc., mas sempre no isolamento. E a cooperação entre essas duas entidades isoladas torna-se mecânica; alguma cooperação, entretanto, é necessária entre eles, para que possam viver, ter família, trabalhar num escritório ou numa fábrica mas eles permanecem sempre entidades isoladas, com suas crenças e dogmas, suas nacionalidades — bem conheceis todas as coisas de que o homem se cerca para isolar-se dos demais  O isolamento, portanto, é, essencialmente, o fator do estado de "não relação". E nas pseudo-relações desse isolamento, o prazer se torna da máxima importância.

Pode-se ver como, em todo o mundo, o prazer se está tornando cada vez mais exigente, mais insistente, porque todo prazer — se o observais atentamente — é um processo de isolamento; e esta questão do prazer precisa ser examinada no contexto das relações. O prazer é produto do pensamento, não? Houve prazer numa coisa que ontem experimentastes, na beleza ou na percepção sensitiva, ou no excitamento dos sentidos ou do sexo. Pensais nessas coisas, formais uma imagem daquele prazer ontem experimentado  Eis como o pensamento sustenta e dá nutrição à coisa que ontem chamastes deleitável. E, assim, o pensamento exige, hoje, a continuação daquele prazer. Quanto mais pensais na experiência que tivestes e que por um momento vos deleitou, tanto mais o pensamento lhe dá continuidade, na forma de prazer e de desejo. E que relação tem isso com a questão fundamental da existência humana: Como estamos relacionados? Se nossa relação é produto do prazer sexual, ou do prazer derivado da família, da propriedade, do domínio, do controle, do medo de nos vermos desprotegidos, privados de segurança interior e, por conseguinte, sempre a buscar o prazer — então que lugar compete ao prazer nas relações? A exigência de prazer destrói todas as relações, sejam sexuais, sejam de outra espécie. E, se bem observarmos, veremos que todos os nossos chamados "valores morais" baseiam-se no prazer, embora o disfarcemos com a "virtuosa" moralidade de nossa respeitável sociedade.

Assim, quando nos interrogamos, quando olhamos fundo em nós mesmos, percebemos essa atividade de auto-isolamento, esse "eu", esse "ego", a erguer defesas em torno de si, e essas próprias defesas são o "eu". Este "eu" é isolamento, é ele que produz fragmentos, que produz o "olhar" que se fragmenta em pensador e pensamento. Assim, que lugar compete ao prazer, que é produto de uma lembrança sustentada e nutrida pelo pensamento — o pensamento que é sempre velho, e nunca livre? Que tem a ver esse pensamento, que concentrou sua existência no prazer, com as relações? Fazei a vós mesmos esta pergunta, não vos limiteis a ouvir as palavras deste orador — que amanhã já não estará aqui. Vós tendes de viver vossa própria vida e por conseguinte, o orador é inteiramente sem importância. O importante é fazerdes a vós mesmos estas perguntas, e, para fazê-las, deveis ser ardorosos, estar inteiramente dedicados à investigação. Porque só ao manifestardes esse ardor, essa determinação, estais vivendo, só quando sois profundamente aplicados, a vida desabrocha, tem significado, tem beleza. Deveis interrogar-vos: É ou não é um fato que estamos vivendo na dependência de uma imagem, de uma fórmula, de um fragmento que nos está isolando? Não foi por causa desse isolamento que o medo, com sua dor e prazer (produtos do pensamento), se tornou existente? Tenta então aquela imagem identificar-se com algo que seja permanente  com Deus, com a verdade, com a nação, a bandeira, etc.

Assim, se o pensamento é velho (e ele é sempre velho e, por conseguinte, nunca é livre), como pode ele compreender as relações? As relações estão sempre no presente, no presente vivo (não no passado morto, da memória, das lembranças, do prazer e da dor), as relações estão ativas agora; "estar em relação" significa justamente isso. Ao olhardes para outra pessoa com olhos cheios de afeição, de amor, estabelece-se uma relação imediata (...) Mas, se o pensamento se intromete, então essa relação se converte em imagem. Assim, pergunta-se: Que é o amor? O amor é prazer? O amor é desejo? É o amor a lembrança de uma multiplicidade de coisas que formastes e conservastes — a respeito de vossa esposa, de vosso marido, de vosso próximo, da sociedade  da comunidade, de vosso Deus? Pode-se chamar a isso amor?

Se o amor é produto do pensamento (como de fato é, na maioria dos casos), então esse amor está fechado entre cercas, emaranhado na rede do ciúme, da inveja, do desejo de dominar, de possuir e ser possuído, da ânsia de ser amado e de amar. Pode, então, haver amor a um e amor a todos? Se amo um, destruo o amor para com outros? E como, para a maioria de nós, o amor é prazer, companhia, conforto, segregação na família e o sentimento de segurança que nela se encontra — existe, aí, realmente amor? Pode um homem que está acorrentado à família amar o seu próximo? Podeis discorrer teoricamente acerca do amor, ir à igreja para amar a Deus (o que quer que isso signifique) e, no dia seguinte, ir para o trabalho e destruir o vosso próximo — porque estais em competição com ele, ambicionando o seu cargo, as suas posses, e desejando melhorar a vós mesmos, comparando-vos com ele. Assim, quando, dentro em vós existe essa atividade, da manhã à noite, e mesmo durante o sono, em sonhos, podeis estar em relação? Ou relação é coisa de todo diferente?

Só pode haver relação quando há total abandono do "eu", do "ego". Quando não existe "eu", estais então em relação; nesta, não há separação de espécie alguma. Provavelmente, nunca experimentamos esse estado de total negação (não intelectual, porém real), de total cessação do "eu". E talvez seja esse estado que a maioria de nós está buscando, sexualmente ou pela identificação com uma coisa superior. Todavia, esse processo de identificação com uma coisa superior deriva do pensamento; e o pensamento é sempre velho (como o "eu", o "ego", ele pertence ao passado). Apresenta-se, assim, a questão: Como é possível abandonar de todo esse processo isolante, esse processo que se centraliza no "eu"? Como é possível isso? (...)Como pode o "eu", cujas atividades diárias são motivadas pelo medo, pela ansiedade, pelo desespero, a tristeza, a confusão e a esperança — como pode esse "eu" que se separa de outro pela identificação com Deus, com seu condicionamento, sua sociedade, suas atividades morais e sociais, com o Estado — morrer, desaparecer, para que o ente humano possa estar em relação? Porque, se não estamos em relação, iremos viver em guerra uns com os outros. Poderá não haver matança mútua, porque isso se está tornando muito perigoso, a não ser, talvez, em terras muito longínquas. Como podemos viver de modo que não haja separação, de modo que possamos cooperar realmente?

Há tanta coisa por fazer neste mundo — acabar com a pobreza, viver com felicidade, viver deleitosamente em vez de viver na agonia e no medo, edificar uma sociedade de espécie completamente diferente, com uma moralidade superior. Isso, porém, só se tornará possível quando a moralidade da atual sociedade for totalmente negada. Há tanto que fazer, e que não poderá ser feito enquanto estiver em funcionamento o processo de isolamento  Falamos do "eu", do "meu", e do "outro"; "o outro" está do outro lado do muro, e o "eu" e o "meu" deste lado. Como pode, pois, essa essência da resistência, que é o "eu" ser totalmente abandonada? Porque esta é realmente a questão mais importante, em todas as relações — já que percebemos que a relação entre imagens não é relação nenhuma e que, quando existe tal qualidade de relação, há necessariamente conflito e estamos sempre em guerra uns com os outros.

(...)Não sei se já vistes o que significa ter uma mente totalmente vazia. Vós tendes vivido num espaço criado pelo "eu" (um espaço limitadíssimo). O espaço que o "eu" (o processo de isolamento) criou entre uma pessoa e outra, é esse o único espaço que conhecemos, o espaço entre ele próprio e a circunferência (a fronteira que o pensamento criou). Nesse espaço é que vivemos; nele há divisão. Dizeis: "Se abandono a mim mesmo, ou se abandono o centro que é o "eu", ficarei vivendo num vácuo." Mas, já alguma vez abandonastes o "eu", de fato, realmente  de modo que dele não tenha ficado nenhum resquício? Já vivestes neste mundo nesse estado de espírito — no vosso trabalho  com vossa esposa ou marido? Se alguma vez já vivestes assim, deveis saber que há um estado de relação em que o "eu" não existe, um estado que não é utópico, que não é coisa sonhada ou experiência mística, irracional, porém um estado possível: viver numa dimensão em que todos os entes humanos estejam relacionados.

Mas essa possibilidade só existe se compreendemos o que é o amor. E, para existirmos, para vivermos nesse estado, temos de compreender o prazer (sustentado pelo pensamento) e todo o seu mecanismo. Então, se poderá ver instantaneamente todo o complicado mecanismo que construímos para nós mesmos e em redor de nós. Não há necessidade de percorrermos todo o processo analítico, ponto por ponto. Toda análise é fragmentária e, por essa porta, não virá resposta nenhuma.

Existe este imenso e complexo problema da existência, com seus temores, ansiedades, esperanças, passageira felicidade e alegrias, mas a análise não pode resolvê-lo. O que o resolverá é abarcá-lo, no seu todo, num rápido lance de olhos. Só podemos compreender uma coisa quando a olhamos (não com o olhar prolongado  exercitado, do artista, do cientista ou do homem que se exercitou para "olhar"), só podemos compreender uma coisa quando a olhamos com toda a atenção, quando a vemos, em seu conjunto, num relance de olhos. E, assim, vos sentireis livres. Estareis então fora do tempo. O tempo se deterá e, por conseguinte, terá fim o sofrer. O homem entregue à amargura ou ao medo não está em relação. Como pode um homem ambicioso de poder estar em relação? Ele poderá ter família, dormir com sua mulher, mas não está em relação. Quem compete com outro não está em nenhuma relação. E toda a nossa estrutura social, com sua moralidade, se baseia na competição. Achar-se em relação, fundamental e essencialmente, significa a cessação do “eu”, gerador de separação e do sofrimento.

Krishnamurti — 25 de abril de 1968 – Onde está a Bem-aventurança

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill