Existe essa coisa complexa chamada EU, com seus antagonismos, temores, esperanças, aspirações, ambições, avidez — essa totalidade que é o EU. Posso olhá-lo de maneira tão completa que, instantaneamente, o compreenda em seu todo? Afinal de contas, o que é a verdade? O percebimento da verdade, o sentimento do que é a verdade, com sua beleza, seu amor — como se pode alcançá-lo? Só se pode ver a verdade quando a mente não está fragmentada, quando se vê a totalidade. Quando vedes a totalidade de "vós mesmos", não apenas tais e tais fragmentos, porém a totalidade de vosso ser — vedes a verdade e compreendeis todo o complexo conjunto.
Pode um indivíduo olhar a si próprio tão completa e atentamente, que a totalidade dele próprio lhe seja revelada num instante? Em geral somos incapazes disso, porque nunca nos aplicamos seriamente ao problema, nunca olhamos para nós mesmos — nunca! Culpamos a outros, buscamos explicações para as coisas, ou temos medo de olhar-nos, etc. — nunca olhamos para nós mesmos, para nos vermos exatamente como somos. Só podeis olhar totalmente quando aplicais toda a atenção. Nessa atenção não há medo, porque quando olhamos com toda a nossa mente, corpo, nervos, olhos, ouvidos, tudo, não há lugar para o medo, para a contradição, para o conflito. Após vos terdes olhado dessa maneira profunda, estais então apto a penetrar mais fundo ainda. Não digo "mais fundo" em sentido comparativo. Pensamos sempre de modo comparativo — profundidade e superficialidade, felicidade e infelicidade; estamos sempre a medir. Quando digo "Preciso penetrar profundamente. ou mais profundamente, em mim mesmo" — esse "mais profundamente" é um termo comparativo. Ora, existem em nós estados tais como "superficial" e "profundo"? Quando digo "Minha mente é superficial, vulgar, estreita, limitada" — porque sei que ela é vulgar, estreita e limitada? É porque comparei minha mente com vossa mente, que é mais brilhante, dotada de mais capacidade, mais inteligência, que é mais vigilante, etc. Então, comparando, posso dizer: "Minha mente é superficial, minha mente é vulgar". Mas, posso conhecer a minha vulgaridade sem comparação? Sei que sinto fome agora, porque ontem senti fome, ou sei que estou com fome sem nenhuma comparação com a fome que ontem senti? Assim, quando empregamos as palavras "mais profundamente", não estamos pensando em termos comparativos, não estamos comparando.
A mente que está sempre a comparar, sempre a medir, criará sempre ilusões. Se me estou medindo por vós, que sois arguto, mais inteligente, estou a esforçar-me para igualar-vos negando a mim mesmo, tal como sou, e estou criando uma ilusão. Assim, ao compreender que as comparações, de qualquer espécie, só levam a maior ilusão e maior aflição, ou que quando me identifico com qualquer coisa maior — o Estado, o Salvador, uma ideologia — ao compreender que esse pensar comparativo só conduz a mais ajustamentos e, por conseguinte, a um conflito maior, abandono-o de todo. Minha mente já não está então a buscar, a tatear, a indagar, a questionar, a exigir, a esperar (o que não significa que esteja satisfeita com as coisas como são) — já não tem então nenhuma "imaginação" (ato ou faculdade de formar imagens). Pode ela então mover-se numa dimensão totalmente diferente. A dimensão em que estamos vivendo nossa vida de cada dia, a dor, o prazer e o medo que nos tem condicionado a mente e limitado a sua natureza, tudo isso desapareceu de todo. Há então alegria, que é coisa totalmente diferente do prazer. O prazer é criado pelo pensamento, que também cria o medo. Mas, o deleitamento, a verdadeira alegria, o sentimento de bem-aventurança, não é resultado do pensamento. A mente funciona então numa dimensão em que não há conflito, não há sentimento de "diferença", de dualidade.
Verbalmente, só podemos chegar até este ponto; o que existe além não pode ser posto em palavras, porquanto as palavras não representam a coisa real. Compreendei — a árvore real não é a palavra "árvore"; a palavra é diferente do fato. Até este ponto, pode-se descrever, explicar, mas as palavras ou as explicações não podem "abrir a porta". O que abrirá a porta é o percebimento diário, a atenção constante. Percebimento, sem escolha, do que se está passando interiormente, da maneira como falamos, do que dizemos, da maneira como andamos, do que pensamos; percebimento diário de tudo isso. É como limpar um aposento a fim de mantê-lo em boa ordem; mas, manter o aposento em boa ordem é coisa sem importância; é importante num sentido e completamente sem importância noutro sentido. Deve haver ordem no aposento, mas a ordem não abrirá a janela. O que abrirá a janela, a porta, não é vossa volição, nem vosso desejo. Não se pode chamar "a outra coisa". O que se pode fazer é só conservar o aposento em ordem, quer dizer, ser virtuoso (mas não da virtude ou moralidade de uma certa sociedade, da virtude que sempre espera alguma coisa) por amor à virtude, ser são, racional, ordenado. Então, talvez, se tendes sorte, a janela se abrirá e as auras entrarão. Isso poderá não acontecer, pois depende de vosso estado mental e esse estado só pode ser compreendido por vós mesmo, observando-o, porém nunca tentando moldá-lo, quer dizer, observando-o sem escolha. Mediante esse percebimento sem escolha, a porta talvez se abra e conhecereis aquela dimensão na qual não há conflito, não há tempo — conhecereis aquilo que jamais se pode expressar em palavras.
(...) Aparte: parece-me que só podemos ver através de palavras.
Krishnamurti: Vós compreendeis através das palavras? Naturalmente nós nos servimos de palavras para fins de comunicação, para que possais falar comigo e eu falar convosco; mas isto não significa escravização à palavra. Percebeis como estamos escravizados às palavras? As palavras "inglês", "russo", "Deus", "amor" — não somos escravos delas? E se sois escravos de palavras, como podeis compreender a natureza total do amor, que há de ser necessariamente uma coisa extraordinária? Todo o universo está contido no significado desta palavra.
Mas, infelizmente, somos escravos das palavras e estamos tentando alcançar algo que se acha além dos limites verbais. Extirpar. destroçar as palavras e ficar livre delas — isso dá invulgar percebimento, vitalidade, vigor. É necessário tempo para nos libertarmos das palavras? Dizeis "preciso refletir primeiro" ou "preciso exercitar o percebimento" ou "vou ler Bertrand Russel"? Ou vedes deveras que a mente escrava da palavra é incapaz de olhar, de observar, sentir, ver? — e esta própria clareza, esta própria verdade não destrói a escravidão?
Pergunta: Poder-se-ia ver, por um instante, e logo a mente interferir?
Krishnamurti: Vedes, por um instante, que o nacionalismo é venenoso e, logo a seguir, nele recaís?
Percebemos realmente que somos escravos das palavras? O comunista é escravo das palavras "Marx", "Stalin", etc. E o chamado cristão é escravo do símbolo, da Cruz, e do respectivo jogo sutil de palavras. Ide a Roma, ide a qualquer parte do mundo, e o que se encontra é sempre a palavra.
E talvez sejamos também escravos da palavra "mente". Adoramos a mente, e nossa educação consiste em cultivá-la. E, por certo, o que estamos tentando descobrir é a totalidade de alguma coisa que não é a palavra: o sentimento que abarca a totalidade, sem a barreira das palavras.
Krishnamurti — Como viver neste mundo