Fora educado no estrangeiro —
disse ele — tendo ocupado importante cargo público; mas, havia mais de vinte
anos, abandonado o emprego e as coisas do mundo, para passar os restantes dias
de sua vida em meditação.
“Pratiquei vários métodos de meditação” continuou, “até adquirir
perfeito controle dos meus pensamentos e daí me advirem certos poderes e o domínio
de mim mesmo. Entretanto, um amigo meu me levou a uma de suas conferências, em
que, respondendo a uma pergunta sobre meditação, você disse que, como
geralmente é praticada, a meditação é uma espécie de auto-hipnose, uma maneira
de cultivar os nossos próprios desejos, ‘projetados’ e requintados. Isso me impressionou parecendo-me tão verdadeiro que tratei de arranjar esta
entrevista com você; e, considerando que à meditação dediquei a minha vida, espero que
possamos apreciar este assunto com certa profundidade.
Gostaria de começar explicando um pouco como decorreu o meu
desenvolvimento. De tudo o que tinha lido, compreendi que era necessário
tornar-me senhor absoluto dos meus pensamentos. Isso me foi extremamente
difícil. A concentração nas minhas funções oficiais era coisa muito diferente
do firmar a mente e subjugar o inteiro ‘processo’ do pensamento. De acordo com
os livros, era necessário segurar nas mãos todas as rédeas do pensamento
controlado. Não era possível aguçar o pensamento para penetrar as nossas
múltiplas ilusões, se não pudéssemos controlá-lo e dirigi-lo; foi esta, pois,
a minha primeira tarefa.”
Peço permissão para perguntar,
sem interromper o seu relato: O controle do pensamento é a primeira tarefa?
“Ouvi o que disse em sua palestra a respeito da concentração, mas, se me
permite, desejo descrever-lhe, o mais extensamente possível, a minha experiência,
para depois apreciar certos pontos de vista com ela relacionados."
Como quiser, senhor.
“Logo de início me senti insatisfeito com minha ocupação, e foi-me
relativamente fácil abandonar uma carreira de futuro. Li muitos e muitos livros
sobre a meditação e a contemplação, inclusive os escritos por vários místicos,
tanto daqui como do Ocidente, e pareceu-me óbvio que o controle do pensamento
era a coisa mais importante de todas. Isso exigiu esforço considerável e
perseverante, propósito firme. À medida que me adiantava na meditação, fui
tendo experiências numerosas, visões de Krishna, do Cristo e de alguns santos
hindus. Tornei-me clarividente e comecei a ler os pensamentos das pessoas,
adquirindo ainda outros poderes. Fui prosseguindo, de experiência em
experiência, de uma visão, com seu significado simbólico, para outra, do
desespero à mais alta bem-aventurança. Sentia o orgulho de um conquistador, do
homem que se tornou senhor de si mesmo. O asceticismo ou domínio de si mesmo,
confere um sentimento de poder e gera vaidade, força e confiança em si mesmo.
Tudo isso me fora dado de mão cheia. Embora ouvisse falar de você, durante
muitos anos, o orgulho que eu sentia pelo que conseguira realizar, me impedia
de vir ouvi-lo; mas meu amigo, outro sannyasi
como eu, insistiu comigo para vir, e o que ouvi me causou perturbação! Eis em
poucas palavras a minha história, no tocante à meditação.
Na sua palestra, você disse que a mente tem de transcender toda a experiência,
pois, do contrário, se vê aprisionada em suas próprias ‘projeções’, em seus
próprios desejos e aspirações, e causou-me profunda surpresa verificar que
minha mente se achava enredada precisamente nessas coisas. Uma vez cônscia
desse fato, de que maneira pode a mente demolir as paredes da prisão que ela
mesma construiu ao redor de si? Estes vinte e tantos anos foram completamente perdidos?
Foi tudo apenas uma mera viagem pelo reino da ilusão?”
A ação que se deveria compreender
poderá ficar para considerarmos mais adiante; tratemos, por ora, se está de
acordo, do controle do pensamento. É necessário esse controle? É benéfico ou
nocivo? Vários instrutores religiosos têm recomendado o controle do pensamento
como passo preliminar, mas eles têm razão? Quem é esse “controlador”? Ele não
faz parte desse mesmo pensamento a que procura controlar? Poderá considerar-se
uma entidade separada, diferente do pensamento, mas não é ele produto do
pensamento? Ora, sem dúvida, o controle supõe ação coercitiva da vontade, para
subjugar, reprimir, dominar, para levantar resistência contra o que não é
desejado. Em todo esse processo há um vasto e doloroso conflito, não é verdade?
Pode algum bem resultar do conflito?
A concentração, na meditação, é
uma forma de automelhoramento egoístico, encarecendo a ação dentro dos limites
do “eu”, do “ego”, de “mim”. A concentração é um processo de estreitamento do
pensar. Uma criança se absorve em seu brinquedo. O brinquedo, a imagem, o
símbolo, a palavra, detêm incansáveis divagações da mente, e tal absorção se
chama concentração. A mente é invadida pela imagem, pelo objeto, exterior e
interior. A imagem, o objeto, se torna então da mais alta importância, e não a
compreensão da própria mente. A concentração numa coisa é relativamente fácil.
O brinquedo, com efeito, absorve a mente, mas não a liberta, para explorar,
para descobrir o que existe — se alguma coisa existe — além de suas próprias
fronteiras.
“O que você diz é tão diferente daquilo que lemos ou que nos ensinaram
e, todavia, é evidentemente verdadeiro, e começo a compreender a significação
do controle. Mas como pode a mente tronar-se livre, sem disciplinamento?”
A repressão não constitui os
passos que levam à liberdade. O primeiro passo para a libertação é a
compreensão do cativeiro. A disciplina molda a conduta e ajusta o pensamento ao
padrão desejado, mas, sem a compreensão do desejo, o mero controle ou
disciplina perturba o pensamento; entretanto, por outro lado, quando há
percebimento dos movimentos do desejo, esse percebimento traz clareza e ordem.
Afinal, senhor, concentração é ação do desejo. Um homem de negócios se
concentra, porque seu desejo é acumular riquezas ou poderes, e quando um outro
se concentra, em meditação, esse também está desejando uma perfeição,
recompensa. Ambos estão ambicionando sucesso, que lhes confere confiança em si
mesmo e sentimento de segurança. Não é exato isso?
“Compreendo o que está explicando, senhor”.
A compreensão apenas verbal, que
é apreensão intelectual do que se ouve, tem pouco valor, não acha? O fator
libertador não é, em tempo algum, mera compreensão verbal, mas o percebimento
da verdade ou falsidade da coisa. Se podemos compreender o significado da
concentração e perceber o falso como falso, dá-se então a libertação do desejo
de realizar, de “experimentar”, “vir a ser”. Daí resulta atenção, coisa toda
diferente da concentração. Concentração supõe processo dual, escolha, esforço,
não é verdade? Há o “produtor de esforço” e o fim para o qual se faz o esforço.
Nessas condições, a concentração fortalece o “eu”, o “ego”, que é o “produtor
de esforço”, o conquistador, o virtuoso. Mas, na atenção, essa atividade dual
não existe; está ausente o “experimentador”, a entidade que acumula, armazena e
repete. Nesse estado de atenção, deixou de existir o conflito inerente ao esforço
de realização e o medo de ser mal sucedido.
“Mas, infelizmente, nem todos somos dotados desse poder de atenção”.
Isso não é um dote, uma
recompensa, coisa comprada mediante disciplina, exercícios, etc. Isso nasce com
a compreensão do desejo, que é autoconhecimento. Esse estado de atenção é “o
bom”, é ausência do “eu”.
“Todos os meus esforços e disciplinas de muitos anos foram então inúteis
e nenhum valor têm? No mesmo instante em que faço esta pergunta, estou
começando a perceber a verdade relativa à questão. Vejo agora que durante mais
de vinte anos estive seguindo um caminho que tinha de levar, inevitavelmente, a
uma prisão por mim mesmo criada e na qual tenho vivido, “experimentado” e
sofrido. Chorar o passado é favorecer o “eu”, e é necessário começar de novo, com
uma intenção diferente. Mas — e todas aquelas visões e experiências? São também
falsas, sem valor algum?”
A mente, senhor, não é um vasto
repositório de todas as experiências, visões e pensamentos do homem? A mente é
o resultado de muitos milhares de anos de tradições e experiências. É capaz de
invenções fantásticas, desde as mais simples às mais complexas. É capaz de
extraordinárias alucinações, e vastas percepções. As experiências e esperanças,
as ânsias, as alegrias e os conhecimentos acumulados, tanto do grupo como
indivíduo, tudo está lá, depositado nas camadas mais profundas da consciência,
e é possível ressuscitar as experiências, visões, etc., herdadas ou adquiridas.
Dizem que certas drogas podem produzir uma lucidez, uma visão de grandes
profundidades e alturas, libertar a mente de suas agitações, conferindo-lhe
grande energia e acuidade. Mas é necessário a mente atravessar esses ocultos e
sombrios corredores, para alcançar a luz? E quando por qualquer desses meios
ela encontra luz, é a luz do Eterno? Ou é a luz do “conhecido”, da coisa
reconhecida, produto da busca, da luta, da esperança? É necessário passar por
esse fastidioso “processo” para se achar o imensurável? Pode-se deixar de lado
tudo isso e chegar àquilo que se pode chamar amor? Já que tivesse visões,
poderes, etc., o que diz, senhor?
“Enquanto duravam, eu naturalmente os julgava importantes e
significativos; conferiam-me um grato sentimento de poder, uma certa felicidade
em agradáveis realizações. À chegada desses poderes, ganha-se uma grande
confiança em si mesmo, um sentimento de autodomínio, que dão um orgulho
desmedido. Agora, depois desta nossa conversa, não tenho certeza nenhuma de que
essas visões, etc., sejam tão significativas para mim, como dantes. Parecem
ter caído para o segundo plano, na luz de minha compreensão.”
É necessário passar por todas
essas experiências? São elas necessárias, para abrir a porta do Eterno? Não
podem ser deixadas de lado? O essencial, afinal de contas, é o
autoconhecimento, que faz nascer a mente tranquila. A mente tranquila não é
produto da vontade, da disciplina, das várias práticas destinadas a subjugar o
desejo. Todas essas práticas e disciplinas só têm o efeito de fortalecer o “eu”,
e a virtude se torna então um outro rochedo, sobre o qual o “eu” pode edificar
a sua morada de importância e respeitabilidade. A mente precisa estar vazia do “conhecido”,
para que se torne existente o incognoscível. Se não se compreendem as
atividades do “eu”, a virtude começa por vestir a capa da importância. O
movimento do “eu”, com sua vontade e desejo, suas buscas e acumulações, tem de
cessar inteiramente. Só então se tornará existente o atemporal. O atemporal não
pode ser chamado ou atraído. A mente que procura atrair o Real por meio de
várias práticas e disciplinas, por meio de preces e atitudes, só pode receber
suas próprias e agradáveis “projeções”, que não são o Real.
“Percebo agora, depois de tantos anos de asceticismo, disciplina e
automortificação, que minha mente está cativa na prisão que ela própria
construiu, e que as paredes dessa prisão precisam ser demolidas. Como pôr mãos
à obra?”
O próprio percebimento de que
elas precisam desaparecer é suficiente. Toda ação, visando a demoli-las, põe em
movimento o desejo de realização, ganho, fazendo, portanto, nascer o conflito
dos opostos, o “experimentador” e a “experiência”, a entidade que busca e a
coisa buscada. Perceber o falso como falso é, em si, suficiente, porquanto esse
próprio percebimento liberta a mente do falso.
Jiddu Krishnamurti — Reflexões sobre a vida