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terça-feira, 13 de agosto de 2013

As sociedades e organizações espirituais são coisas vãs

Pergunta: Passei os dez melhores anos de minha vida na prisão, por causa de atividades políticas que me ofereciam grandes coisas. Agora, é a desilusão, e me sinto inteiramente consumido. O que devo fazer?

Krishnamurti: Outros podem não passar dez anos na prisão, mas passam um ou dois anos no encalço de esperanças enganosas, dedicados a falsas atividades, fazendo alguma coisa a que se entregaram de corpo e alma, para, no fim, verem que é tudo em vão. Assim temos procedido, não é verdade? Segue um homem um determinado caminho, um determinado plano de ação, na esperança, de que ele produza grandes coisas, na esperança de que beneficie os entes humanos, liberte os entes humanos, nas esperança de que, no final, reinará a compaixão e o amor; e a isso ele dedica a sua vida. Entretanto, um belo dia, descobre que essa coisa é inteiramente vã, isto é, que a causa para a qual viveu não tem mais significação alguma; e o homem fica, emocionalmente, consumido. Não conhecem casos assim? Não são um desses casos? Não estão na mesma situação? Não passaram por essa experiência, não sabe, que estavam seguindo o caminho do Mestre, do iniciador, político ou religioso, que lhes prometia um ideal pela revolução — ideal a que dedicaram seu zelo e energia, dedicaram suas vidas e, no final de tudo, se veem desiludidos e consumidos, emocionalmente? Trabalham por uma causa e depois a abandonam. Mas logo vem outro indivíduo, tolo e ignorante, ocupar a vaga de vocês. Continua ele a obra, alimentando aquele jogo inútil. E, se se consome, abandona-o. Mas outro virá substituí-lo. E prossegue o movimento de estultice, em nome da religião, da política, de Deus, da paz — não importa como o chamem. Surge outro problema: Como evitar que os tolos venham empenhar-se na mesma batalha vã, sem utilidade, sem significação?

As sociedades, as organizações são coisas vãs, principalmente as religiosas. Assim, que devem fazer, quando se veem consumidos? Perderam a elasticidade. Estão envelhecendo. Todas as cosias pelas quais lutaram não têm significação alguma. E, então, ou se tornam cínicos e amargurados, ou ficam como um inútil pedaço de carvão, jogado num canto, no isolamento. Isso é um fato evidente, não? Sabemos tudo isso, há centenas de exemplos; talvez sejam um deles. Que deve fazer uma pessoa que se acha nesse estado? Pode o que está morto ser ressuscitado? Pode o que é vão, que é falso, dar seu alento ao falso? Pode o que está morto voltar subitamente à vida, ver o que fez, dedicar-se ao real, e renovar-se? Tal é o problema, não é? Posso eu, que dediquei a maior parte da minha vida para uma coisa vazia de significação — significação profunda, eterna — posso eu, que perdi aquele estado, que me consumi inteiramente, encontrar de novo a vida, recuperar o meu zelo? Creio que sim.

Se quando me vejo inteiramente consumido, se quando compreendo que lutei em vão, em vez de ficar amargurado, eu perceber o significado daquilo que fiz, perceber que andei no encalço de um ideal, e que o ideal sempre destrói — porque o ideal não tem significação alguma, o ideal é sempre autoprojeção, o ideal é adiamento, o ideal me impede de compreender o que é, impede-me de compreender o todo; se eu puder estar tranquilo, sem ser traído noutra direção; se reconhecer todo o processo daquilo que fiz e perceber o que foi que me levou a esperanças falsas e despertou em mim toda a sorte de ambições; se puder perceber esse fato, sem fazer nenhum movimento noutra direção, seja de justificação, seja de condenação; se puder permanecer com "ele", viver com "ele", tenho então a possibilidade de reviver, não é verdade? Porque a mente se dedicou a uma coisa da qual esperava resultados, utopias, maravilhas. Etc. Se a mente reconhece o que fez, há renovação, não acham? Se sei que fiz uma coisa má, uma coisa falsa, se estou cônscio disso, se o compreendo, então, certamente, essa própria compreensão é luz, é o novo.

Mas a maioria de nós não têm paciência ou sabedoria, ou capacidade de reconhecer silenciosamente o que praticou, sem sentir amargura. Tudo o que sei é que gastei minha vida em vão, e agora aspiro a uma vida nova. Estou ansioso por agarrar a coisa nova. Se tenho essa ânsia de agarrar, então estou de novo perdido. Porque, então, aí está o guru, o guia político, a promessa de utopia, para novamente me arrastar. E assim vejo-me novamente envolvido no mesmo processo de antes. Mas reconhecer esse processo é ser paciente, é estar cônscio, é saber o que fiz, e não tentar mais nada. Isso exige muita sabedoria. É preciso muita afeição para saber que não vou mais participar de nenhuma dessas coisas. Não importa aonde eu seja levado, mas não quero mais fazer aquilo. Quando assim procedemos, quando nos achamos naquele estado, garanto-lhes que há então renovação, que há um novo começo. Mas preciso ter cuidado para que minha mente não crie uma nova ilusão, uma nova esperança.

Jiddu Krishnamurti — 20 de janeiro de 1952 – Quando o pensamento cessa

A busca de segurança impede o despertar da inteligência

Interrogante: Todos nós, os teosofistas, estamos fundamentalmente interessados na Verdade e no Amor, tanto como você está. Você não podia ter ficado na nossa Sociedade, ajudando-nos, em vez de se separar de nós e fazer-nos acusações?

Krishnamurti: Em primeiro lugar, muitos de vocês estão achando isso divertido; outros estão um tanto quanto agitados, outros apreensivos. Não o estão sentido? Vamos investigar.

Fundamentalmente, estamos, vocês e eu, procurando a mesma coisa? Pode-se procurar a Verdade no seio de uma organização qualquer? Vocês podem colocar um rótulo em vocês, e procurar a verdade? Podem ser hinduístas e dizer: "Estou procurando a verdade?" Porque, então, o que estão procurando não é a Verdade, mas a confirmação de uma crença. Podem pertencer a qualquer a qualquer organização, a qualquer grupo espiritual, e procurar a Verdade? Pode-se achar a Verdade coletivamente? Conhecem o amor, quando acreditam? Não sabem que quando acreditam fortemente em alguma coisa e eu acredito no contrário, não existe amor entre nós? Quando acreditam em certos princípios hierárquicos e em certas autoridades, e eu não creio, pensam que existe comunhão entre nós? Quando toda a estrutura de pensar de vocês é o futuro, o vir-a-ser por meio da virtude, quando vão ser alguém no futuro, quando o processo do pensar de vocês está baseado na autoridade e em princípios hierárquicos, pensam que existe amor entre nós? Vocês podem se servir de mim, por conveniência, e eu servir-me de vocês, por conveniência. Mas isso não é amor. Vejamos com clareza. Não se agitem a respeito destas questões. Não as compreenderão, se se agitarem por causa delas.

Para descobrir se realmente estão em busca da Verdade e do amor, devem investigar, não acham? Se investigassem, se descobrissem, interiormente, e, portanto, agissem, exteriormente, o que aconteceria? Ficariam fora da sociedade (da vossa sociedade Teosófica) não é verdade? Se duvidassem de suas crenças, não estariam de fora? — Enquanto houver sociedades e organizações, — as chamadas organizações espirituais com "direitos adquiridos", na propriedade, na crença, no saber — as pessoas a elas pertencentes, evidentemente não estão em busca da verdade. Podem dizer que estão. Cabe-lhes, pois, averiguar se estamos, fundamentalmente, buscando a mesma coisa. Vocês podem ver a verdade por intermédio de um Mestre, por intermédio de guru? Pensem bem nisso, senhores. É problema de vocês. Pode-se descobrir a verdade através do tempo, no vir-a-ser alguma coisa? Pode-se descobrir a verdade por intermédio do Mestre, do discípulo, do guru? Que podem eles dizer-lhes, fundamentalmente? Só podem aconselhar-lhes a dissolver o "eu". Estão fazendo isso? Se não estão, então, evidentemente, não estão procurando a verdade. Não sou eu que estou dizendo-lhes que não estão procurando a verdade, mas p fato é que se dizem: "Vou ser alguém", se ocupam uma posição de autoridade espiritual, não podem estar em busca da verdade. Sou muito claro, a respeito desses assuntos e não estou procurando persuadir-lhes a aceitar ou rejeitar — o que seria estupidez. Não posso fazer-lhes acusações, como diz o interrogante. Apesar de me ouvirem há vinte anos, continuam com suas crenças; porque é uma coisa muito reconfortante sabermos que temos quem cuide de nós, que temos mensageiros especiais para o futuro, que irão ser algo belo, agora, no final dos tempos. Assim continuarão, porque possuem os seus "direitos adquiridos, suas propriedades, seus empregos, crenças e conhecimentos. Não duvidam deles. A mesma coisa acontece no mundo inteiro. Não é só este ou aquele grupo de indivíduos, mas todos os grupos — católicos, protestantes, comunistas, capitalistas — se encontram nas mesmas condições. Todos têm os seus direitos adquiridos. O homem que é verdadeiramente revolucionário, que interiormente está percebendo a verdade sobre todas essas coisas, esse homem achará a Verdade. Saberá o que é o amor, não numa data futura, porque isso nenhum valor tem. Quando um homem tem fome, quer comer agora e não amanhã. Mas vocês possuem cômodas teorias, sobre o tempo, sobre o correr do tempo, a que estão presos. Por conseguinte, onde está a ligação, onde está a relação entre vocês e eu, ou entre vocês e aquilo que estão tentando descobrir? E, no entanto, todos falam de amor, de fraternidade, e tudo o que fazem é o contrário. É um fato evidente, senhores, que no momento em que há organização, há necessariamente intrigas para a conquista de postos, de autoridade; conhecem bem isso.

Assim, o necessário não é que eu lhes acuse ou que vocês me acusem e me expulsem. O problema não é este. É claro que precisam repelir um homem que lhes diz que aquilo que acreditam, o que fazem é errado; ou, interiormente, deveriam fazer, porque eu digo que me oponho àquilo que desejam. Se realmente desejam procurar, se realmente desejam achar a Verdade e o amor, deve haver unidade de propósitos, abandono completo de todos os seus direitos adquiridos; o que significa que devem ficar interiormente vazios, pobres, sem estar buscando, sem estar conquistando posições de autoridade, como expoentes ou portadores de mensagens dos Mestres. Precisam estar despojados de tudo. Como, entretanto, não desejam isso, naturalmente adquirem rótulos, crenças e várias formas de segurança. Senhores, não rejeitem o que digo; averiguem se de fato estão — como dizem — fundamentalmente em busca da Verdade. Tenho minhas dúvidas. Duvido, realmente, quando lhes ouço dizer "estou em busca da Verdade". Não podem procurar a Verdade, porque a busca de vocês é uma projeção de si mesmos, de seus próprios desejos; o "experimentar" de vocês dessa projeção é uma experiência que desejam. Mas quando não estão buscando, quando a mente se acha quieta e serena, sem nenhum desejo, nenhum motivo, nenhuma compulsão, verão então que vem o êxtase. Para que o êxtase venha, precisam estar despojados de tudo, vazios, sós. A maioria das pessoas ingressa em tais organizações porque são gregárias, porque elas são grêmios e o ingressar em grêmios tem suas vantagens, socialmente falando. Pensam que irão achar a Verdade, enquanto estão em busca de conforto, de satisfação, de segurança social? Não, senhores; devem ficar sós, sem arrimo algum, sem amigos, sem guru, sem esperança, interiormente despidos tudo, vazios. Só então, assim como se pode encher uma taça vazia, pode o vazio interior encher-se com aquilo que é eterno.


Jiddu Krishnamurti — 20 de janeiro de 1952 – Quando o pensamento cessa
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segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Pode a mente libertar-se do vício da crença?

Como disse, é de fato um problema interessantíssimo essa questão da crença e do conhecimento. Que papel extraordinário ela tem em nossa vida! Quantas crenças temos! É certo que quanto mais sagaz, quanto mais culta, quanto mais espiritual é uma pessoa (se posso usar tal expressão) — tanto menor é a sua capacidade de compreender. Os selvagens têm inúmeras superstições, mesmo no mundo moderno. Os mais refletidos, os mais despertos, os mais alertados são talvez os que menos creem. Isso acontece, porque a crença amarra, a crença isola — como se vê no mundo inteiro: no mundo econômico e no mundo político, e bem assim no chamado mundo espiritual. Vocês acreditam que há Deus, e eu talvez creia que não existe Deus; ou acreditam no poder absoluto por parte do Estado de todas as coisas e de todos os indivíduos, e eu creio na inciativa privada, etc., etc.; acreditam que só existe um Salvador e que por meio dele alcançarão o alvo, e eu não creio em tal coisa. Desse modo, vocês com suas crenças e eu com a minha estamos querendo impor-nos um ao outro. Entretanto, ambos falamos de amor, falamos de paz, da unidade do gênero humano, de uma só vida — o que não significa absolutamente nada; porque, na realidade, a própria crença é um processo de isolamento. Vocês são brâmanes, e eu sou não-brâmane; você são cristãos e eu muçulmano, e assim por diante. Vocês falam de fraternidade, e eu também falo da mesma fraternidade, de amor, de paz. Na realidade, estamos separados, desunidos. O homem que deseja a paz e deseja um mundo novo, um mundo feliz, não pode por certo isolar-se por meio de qualquer espécie de crença. Isso está claro? Pode ser apenas um enunciado verbal; mas se penetrarem o seu significado, a sua validade e sua verdade, ele atuará. 

Vemos que sempre há um processo de desejo em ação, tem de haver o processo de isolamento por meio da crença; porque, é evidente, vocês acreditam com o fim de se sentirem seguros, econômica, espiritual, e interiormente também. Não me refiro às pessoas que creem por motivos econômicos; tais pessoas foram criadas para viver na dependência de suas profissões, e por isso permanecerão católicos, hindus — seja o que for — enquanto existir esse emprego para elas. Tão pouco estamos estamos tratando das pessoas que se apegam a uma crença por conveniência. Talvez a maioria de vocês, aqui presentes, estejam nesse caso. Por conveniência, cremos em certas coisas. Colocando de lado essas razões econômicas, vocês devem entrar mais fundo na questão. Considerem as pessoas que creem firmemente em alguma coisa de ordem econômica, social, ou espiritual; o processo que está na base dessa crença é o desejo psicológico de segurança. Não é verdade? Há também o desejo de continuar a existir. Não estamos aqui considerando se há ou não há continuidade; estamos apenas tratando desse impulso, dessa força constante que nos força a acreditar. O homem amante da paz, o homem que deseja realmente compreender todo o processo da existência humana, não pode estar amarrado por uma crença. Significa isso que ele percebe o seu desejo, que atua no sentido de alcançar a segurança. Por favor, não passem para o outro lado dizendo: "Você está pregando a não-Religião". Não é este, absolutamente, o meu propósito. O meu propósito é fazer-lhes ver que enquanto não compreendermos o processo do desejo, sob a forma de crença, haverá disputas, conflitos, há de haver sofrimento, e o homem estará contra o homem, como vemos acontecer todos os dias. Se, estando bem vigilante, percebo que aquele processo assume a forma de crença — que é uma expressão da ânsia de segurança interior — se percebo isso, o meu problema não é mais se devo acreditar nisto ou naquilo, mas, sim, que devo libertar-me do desejo de estar em segurança. Pode a mente ficar livre dele? Este é o problema, e não no que acreditar ou quanto acreditar. Isso são simples expressões de ânsia interior de estar em segurança psicológica, de estar certo a respeito de alguma coisa, quando todas as coisas estão incertas no mundo. 

Pode a mente, a mente consciente, pode a personalidade estar livre desse desejo de segurança? Desejamos estar em segurança, e por isso necessitamos a ajuda de nossos bem imóveis, nossa propriedade e nossa família. Desejamos estar em segurança interior e também espiritual, erguendo muralhas de crença, que denotam a nossa ânsia de certeza. Podem vocês, como indivíduos, ficarem livres desse impulso, dessa ânsia de segurança, manifestada no desejo de acreditar em alguma coisa? Se não estamos livres de tudo isso, somos uma fonte de discórdia; não somos agentes da paz; não temos amor em nossos corações. A crença destrói tudo isso, como se pode observar em nossa vida cotidiana. Posso ver a mim mesmo, quando estou preso nesse processo de desejo, manifestado no apego a uma crença? Pode a mente libertar-se dele? Deve a mente ficar livre da crença e, não, procurar um substituto para ela. Vocês não podem responder "sim" ou "não" a esta questão; podem dar uma resposta positiva se possuem a intenção de ficar livre da crença. Chegam então, inevitavelmente, ao ponto em que começam a buscar o meio de se libertarem da necessidade de segurança. Evidentemente, não há segurança interior que seja contínua — como gostam de acreditar. Vocês gostam de acreditar que há um Deus que cuida muito solicitamente de suas pequeninas coisas... a quem vocês devem procurar, o que devem fazer, como devem proceder. Ora, isso, evidentemente, é uma maneira infantil de pensar. Vocês pensam que o Pai Supremo está velando por cada um de nós. Isso não passa de projeção do próprio gosto pessoal de vocês. Não é evidentemente verdadeiro. A verdade tem de ser coisa inteiramente diferente. Encontrar essa verdade que não é um projeção do gosto de vocês, tal é o nosso propósito em todas estas discussões e palestras. Se vocês sentem verdadeiro ardor, no esforço por descobrirem o que é a Verdade, deve ficar bem claro para vocês que a mente mutilada, amarrada, enredada pela crença, não pode dar um passo, sequer, para a frente. 

(...)Nosso problema, portanto, tal como o vejo, é o seguinte: "estou amarrado, dominado pela crença, pelo conhecimento; é possível para a mente ficar livre do ontem e das crenças adquiridas através do processo do ontem?" Compreendem a questão? É possível a mim, como indivíduo, e a vocês, como indivíduos, viver nesta sociedade e ao mesmo tempo estarmos livres das crenças em que fomos criados? É possível para a mente libertar-se de todo aquele conhecimento, de toda aquela autoridade? Por favor, senhores, deem um pouco de atenção a este ponto, porque eu o julgo importantíssimo — se realmente sentem empenho em examinar o problema da crença e do conhecimento. Lemos as várias escrituras, os vários livros religiosos. Eles já descreveram minuciosamente o que se deve fazer, como se atinge o alvo, o que é o alvo, e o que é Deus. Todos vocês sabem de cor e os têm seguido. Isso é o conhecimento de vocês, é o que adquiriram, o que aprenderam; e continuam por esse caminho. É claro que obterão aquilo que desejam alcançar, aquilo que veem. Mas será a realidade? Não será a projeção do próprio conhecimento de vocês? — Não é a realidade. É possível perceberem isso com clareza agora — não amanhã, mas agora — e dizerem "percebo a verdade disso" — e não mais lhe darem atenção, de modo que a mente de vocês não continue tolhida por esse processo de imaginação, de projeção, de ver a coisa como desejam que ela seja. 

De modo idêntico, é a mente capaz de libertar-se da crença? Só estarão livres dela quando compreenderem a natureza íntima das causas que lhes fazem se apegar a ela, quando compreenderem não apenas os motivos conscientes, mas também os motivos inconscientes que lhes fazem crer. Afinal de contas, não somos apenas uma entidade superficial, funcionando no nível consciente.  Vocês podem descobrir as atividades mais profundas, conscientes e inconscientes, se concederem a oportunidade para a mente inconsciente, visto que esta reage com muito mais presteza do que a mente consciente. Se escutam — como espero que estejam escutando — o que estou dizendo, a mente inconsciente de vocês deve estar reagindo. Enquanto a mente consciente de vocês está pensando, escutando, observando tranquilamente, a mente inconsciente está muito ativa, muito mais vigilante, muito mais receptiva; ela deve, portanto, ter uma resposta para dar. Pode a mente que foi subjugada, intimidade, forçada, compelida a acreditar, pode a mente em tais condições ser livre para pensar? Pode ela der de maneira nova e afastar o processo de isolamento entre nós? Por favor, não digam que a crença une as pessoas. Ela não une. Isso é um fato evidente, não é? Nenhuma religião organizada o tem conseguido. Olhem a vocês mesmos, neste país. Estão unidos? Bem sabem que não estão. Estão divididos em tantos pequenos partidos, tantas classes; vocês conhecem as inumeráveis divisões; o mesmo acontece no Ocidente. O processo é o mesmo no mundo inteiro: cristãos destruindo cristãos, assassinando-se por ninharias, transportando gente para os campos de concentração... os horrores da guerra. A crença, pois, não une as pessoas. É uma coisa evidente. Se isso está claro, se é verdadeiro e o percebem, cumpre então compreende-lo. A dificuldade está em que a maioria de vocês não o vê, porque somos incapazes de fazer frente àquela insegurança interior, àquele sentimento de "estar só". Queremos algo em que nos apoiar, seja o Estado, seja a classe, seja o nacionalismo, seja um Mestre, um Salvador, ou qualquer coisa a que nos apegar. Ao perceber a falsidade disso, a mente é capaz, pode ser temporariamente, por um segundo, capaz de perceber a verdade a esse respeito, e quando vê que ela é excessiva, volta. Mas o perceber temporariamente é suficiente; porque acontece então uma coisa extraordinária. O inconsciente continua funcionando, ainda que o consciente rejeite. Nesse segundo não ocorre nenhum progresso; mas esse segundo é a única coisa, e produzirá os seus resultados ainda que a mente consciente esteja lutando contra ele. 

Nossa questão, pois, é esta: É possível a mente estar livre do conhecimento e da crença? Não é a mente constituída de conhecimento e crença? Estão entendendo bem? A estrutura da mente não é a crença e o conhecimento? A crença e o conhecimento são os processos do conhecimento, o centro da mente. O processo se fecha, o processo é consciente. Pode, pois, a mente ficar livre de sua própria estrutura? Entendem o que quero dizer? A mente não é assim como a conhecemos.

(...) Pode a mente deixar de existir? Tal é o problema. A mente, tal como a conhecemos, é sustentada pela crença, ela tem desejo, impulso de segurança, conhecimento e força acumulada. E se, com toda essa força e superioridade, o indivíduo não pode pensar por si mesmo, não é possível a paz neste mundo. Podem falar a respeito, podem organizar partidos políticos, fazer proclamações do alto das casas; mas não podem ter paz; porque na mente se acha a própria base que cria a contradição, que isola e separa. 

(...) O homem amante da paz, o homem sincero, não pode isolar-se e ao mesmo tempo falar em fraternidade e de paz. Isso é mero jogo político ou religioso, e denota sempre interesse de consecução, ambição... O homem que sente real empenho a esse respeito, que deseja descobrir, tem de fazer frente ao problema do conhecimento e da crença; tem de penetrar a sua significação, descobrir todo o processo do desejo em funcionamento, do desejo de estar em segurança, do desejo de certeza. 

Jiddu Krishnamurti — Quando o pensamento cessa         

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O que é mais importante: a vida material ou a espiritual?

É necessário diferenciarmos entre a experiência produzida pela crença e o experimentar direto. A crença, obviamente, é prejudicial ao experimentar. É só pelo direto experimentar, e não pela crença, que se pode achar a realidade de qualquer coisa. A crença é desnecessária, ao passo que o experimentar é essencial, acima de tudo num mundo onde existem tantas contradições, tantos especialistas, cada um a preconizar a sua solução própria. Nós, a gente comum, precisamos descobrir a verdade relativa a toda esta confusão e toda esta angústia. E, por isso, faz-se necessário indagarmos se a crença é essencial e se ela nos ajuda a conhecer, a experimentar, a realidade. 

Ora bem, o mundo, como sabemos, está dividido em dois campos: o dos que creem que a vida material é de essencial importância — a existência material da sociedade, a alteração do ambiente, o recondicionamento do homem ao ambiente — e o dos que acreditam ser a vida espiritual de primordial importância. A extrema esquerda crê na modificação e transformação do ambiente; e há os que creem que a vida espiritual do homem é que tem fundamental importância. 

Pois bem: cabe-nos, a vocês e a mim, descobrir a verdade a esse respeito. De acordo com essa verdade, será correta a nossa vida. Os especialistas dizem que o ambiente tem a preferência, e há os que dizem que o espírito tem a preferência, e a vocês e a mim é imperativo descobrir a verdade a tal respeito. Não é questão de crença, uma vez que a crença não tem validade com relação à experiência. A que devemos atribuir importância, ao ambiente ou à vida espiritual? E como iremos, vocês e eu, descobrir a verdade sobre isto? Não será por meio de leituras intermináveis; não será pelo seguirmos os especialistas da esquerda ou da direita; não será pelo seguirmos aqueles que acreditam ser a vida material da sociedade de primordial importância; não será ainda pelo estudo de todos os seus livros, de toda a sua ciência especializada, nem pelo seguirmos aqueles que acreditam na primazia da vida espiritual e todos os seus escritos. A crença, simplesmente, neste ou naquele, não é, por certo, encontrar a verdade contida na questão. 

Todavia, a maioria de nós estamos envolvidos pela crença, estamos incertos. Ora pensamos de um modo, ora de outro. Nunca estamos certos; estamos tão confusos como os especialistas, na sua certeza. Não podemos aceitar nada como certo, não podemos seguir a um ou a outro, porquanto tanto um como o outro nos levam à confusão, visto que a aceitação de qualquer autoridade, em tais questões, é, evidentemente, prejudicial à sociedade. A influência dos guias é um fator de degeneração da sociedade; entretanto, tanto vocês como eu, colhidos que estamos entre os dois campos e sem saber o que fazer, precisamos descobrir qual é a verdade contida na questão, e isso sem nos ajuntarmos a especialista algum. 

E como colocaremos mãos à obra? Senhor, esta é uma das questões fundamentais da atualidade. Há os que aplicam todas as suas energias, todas as suas capacidades, toda a sua força e pensamento à alteração do ambiente, o qual esperam que por fim venha a transformar o indivíduo; e há os que preferem apelar, cada vez mais, para a crença, para a ortodoxia, para a religião organizada, e assim por diante. Esses dois grupos estão em guerra um com o outro, e a nós cabe decidir, não decidir sobre qual partido devemos tomar, já que não se trata de tomar partido, mas precisamos estar certos da verdade relativa a essas coisas. 

Igualmente, não podemos, evidentemente, ficar na dependência de nossos preconceitos, uma vez que estes não nos mostram a verdade a tal respeito. Se você foi "condicionado" num ambiente religioso, dirá que o espírito tem a preferência. Outro, educado diferentemente, dirá que a existência material da sociedade é que tem primordial importância.

Pois bem: como poderemos, vocês e eu, que somos pessoas comuns, que não contamos com acumulados conhecimentos, com teorias, demonstrações, provas históricas — como poderemos descobrir a verdade relativa a tudo isso? Não é esta uma importantíssima questão? Pois de tal descoberta depende a nossa futura responsabilidade de ação. Não é, pois, uma questão de crença; a crença é também uma forma de "condicionamento" e ela não nos ajudará a achar a verdade relativa a questão. 

Assim sendo, para encontrarmos essa verdade, não é necessário, em primeiro lugar, estarmos livres de nossa educação religiosa, bem como de nossa educação materialista? Significa isso que não podemos, meramente aceitar; precisamos estar livres do "condicionamento" que nos faz pensar que a existência material da sociedade tem importância primária, bem como do "condicionamento" que nos faz acreditar que a vida espiritual é de importância básica. Precisamos estar livres das duas coisas, a fim de acharmos a verdade a respeito de ambas. Isso é, sem dúvida, bem evidente, não acham? Para se encontrar a verdade relativa a alguma coisa, é preciso que a examinemos de maneira nova, original, sem preconceito algum. 

Está visto, pois, que, para acharmos a verdade relativa a essas coisas, é necessário que nos libertemos de nosso lastro de ideias e experiência, de nosso ambiente. Será isso possível? Isto é, vivemos somente de pão? Ou existe outro fator, que molde o exterior, o ambiente, em conformidade com nosso estado psicológico? E o encontrar-se a verdade relativa a essa questão é de principal importância para toda pessoa responsável e sincera, porquanto daí depende sua ação, a para achar a verdade, é necessário que o indivíduo estude a si próprio, e que esteja consciente de si mesmo quando em ação. O aspecto material da sociedade tem o papel principal em nossa vida? O ambiente desempenha o papel mais importante em nossa vida? Para a maioria de nós, não há dúvida que sim. É o ambiente que molda os nossos pensamentos e sentimentos? E onde é que começa a chamada vida espiritual, e onde acaba a influência do ambiente? Certamente, para verificá-lo, é necessário que o indivíduo estude as suas próprias ações, seus próprios pensamentos e sentimentos. Em outras palavras, é preciso o autoconhecimento — não o conhecimento que se encontra num livro, que se colhe em várias fontes, mas o conhecimento do viver diário de vocês, dia a dia, momento a momento, o conhecimento do "ego", em qualquer nível que seja encontrado. 

Vemos, pois, que a verdade relativa a essa questão está na compreensão de si mesmos, em relação com o ambiente, em relação com uma ideia, que se chama espírito. É isso? 

Conforme já apreciamos em nossas discussões de ontem e dos dias precedente, a vida é uma questão de relação. O viver, o existir implica relação; e é somente na vida de relação, no compreender a vida de relação, que começamos a descobrir a verdade relativa a esta questão: se a vida material é de primordial importância, ou não. Temos, portanto, de descobrir essa verdade, de entrar em contato com ela, pela compreensão da vida de relação, e não apenas apegando-nos a uma crença. E essa descoberta, essa experiência, nos dará então a realidade contida nessas duas coisas. 

Assim, pois, o autoconhecimento é de importância básica para o descobrimento da verdade, significando isto que o indivíduo precisa estar consciente de cada pensamento e de cada sentimento, e perceber de onde procedem essas reações; e só é possível estar consciente com claridade e amplitude, se não houver condenação nem justificação. Isto é, se estamos conscientes de um pensamento, de um sentimento, e o seguirmos de princípio a fim, sem condenação, poderemos então perceber se se trata de reação ao ambiente ou, simplesmente, de reação a uma exigência material, ou ainda, se o pensamento provém de uma fonte diferente. 

Assim, pelo percebimento sem condenação nem justificação começaremos a compreender a nós mesmos — que somos as várias reações a diferentes estímulos, reações ao ambiente, que significa relações. Por conseguinte, a vida de relação, ou, antes, a compreensão da vida de relação, assume grande importância — nossas relações com a propriedade, nossas relações com as pessoas, nossas relações com ideias — e esse movimento de relações não pode ser compreendido se existe qualquer tendência à condenação ou à justificação. Se desejam compreender uma coisa, é claro que não devem condená-la. Se desejam compreender um filho, cabe a vocês estudá-lo, observá-lo, estudar seus diferentes estados de ânimo, estudá-lo quando brinca, etc. De igual maneira, precisamos estudar a nós mesmos, a todos os momentos, e só podemos estudar a nós mesmos quando não há condenação; mas é extremamente difícil não condenar, porquanto a condenação ou a comparação representa uma fuga do "que é"; e para se estudar o "que é" requer-se uma extraordinária vigilância mental e essa vigilância amortece, quando se deixa prender pela comparação, pela condenação. Condenar não é compreender, estejam certos disso. É tão mais fácil condenar uma criança ou uma pessoa do que compreender tal pessoa! Para se compreender a pessoa, é necessário atenção, interesse. 

Nosso problema, portanto, é a compreensão de nós mesmos, tal como somos, visto que cada um de nós é não só o ambiente, mas algo mais. Esse "algo mais" não resulta de crença. Precisamos descobri-lo, experimenta-lo diretamente, e a crença é um empecilho à direta experiência

Precisamos, pois, considerar a nós mesmos exatamente como somos e estudar a nós mesmos tais como somos; e esse estudo só pode ser feito no estado de relação, e não no isolamento.

Jiddu Krishnamurti — O que te fará feliz? 
23 de janeiro de 1949            

quinta-feira, 4 de julho de 2013

A crença prensa a consciência

Fundamentalmente, um dos fatores de inimizade entre homens é a “crença”, e a crença cria “projeções”. Desejo alguma espécie de segurança, na vida; tenho dinheiro, tenho posição; quero, porém, uma segurança maior. Por conseguinte, “projeto” da minha mente o desejo, a ânsia que me impele a buscar segurança numa “super-ideia”, num “super-homem”, em “super-visões” ou “super-conclusões”. Crio, pois, em virtude do meu próprio desejo, a ideia de segurança, a ideia da existência ou não-existência de Deus; e minha mente se apega a essa ideia. É, pois, minha crença que me proporciona o sentimento de segurança, de certeza; digo que ela é minha inspiração; chamo-a de “minha”, porque você está separado de mim pela sua crença. Gradualmente, em consequência de tudo isso, surge a discórdia, o antagonismo... Por conseguinte, a crença, o desejo da mente de sentir-se segura, numa conclusão, numa convicção, é uma das causas da inimizade.

Krishnamurti — Autoconhecimento — A Base da Sabedoria 


domingo, 26 de maio de 2013

Você acredita em Deus?

Pergunta: Você acredita em Deus?

Krishnamurti: É fácil fazer perguntas, e é muito importante saber fazer perguntas corretas. Na pergunta em apreço, as palavras “crer” e “Deus” me parecem muito contraditórias. O homem que simplesmente crê em Deus nunca saberá o que é Deus, porque sua crença é uma forma de condicionamento — e isso é bastante óbvio. No cristianismo, vocês são ensinados desde pequeninos a crer em Deus e, portanto, vossa mente está condicionada desde o começo. Nos países comunistas, a crença em Deus é considerada puro disparate, e isso lhes causa horror. Vocês desejam convertê-los, e eles desejam lhes converter. Eles condicionaram sua mente para não crer, e vocês os chamam “os sem Deus”, enquanto vocês se consideram como tementes a Deus, etc. Não vejo, porém, muita diferença entre vocês e eles. Vocês podem frequentar a igreja, rezar, ouvir sermões, ou executar certos ritos, e aí encontrarem um certo estímulo; mas nada disso, por certo, constitui a experiência do “desconhecido”. E pode a mente experimentar o desconhecido, qualquer que seja o nome que lhe dermos — pois o nome não tem importância? Essa é que é a questão — e não a de crer ou de não crer em Deus?

Pode-se ver que nenhuma forma de condicionamento libertará a mente, em tempo algum; e que só a mente livre pode descobrir, experimentar. O experimentar é uma coisa muito estranha. No momento em que vocês sabem que estão experimentando, cessa a experiência. No momento em que sei que sou feliz, já não sou feliz. Para se experimentar aquela realidade imensurável, o “experimentador” deverá morrer. O “experimentador” é um resultado do conhecido, de muitos séculos de memória cultivada; ele é um acúmulo das coisas que experimentou. E, assim, quando diz: “Preciso experimentar a realidade”, e se torna cônscio dessa experiência, então o que ele experimentar não é a realidade, porém, uma projeção de seu próprio passado, seu próprio condicionamento.

Por isso é tão importante compreender que “pensador” e “pensamento”, ou “experimentador” e “experiência”, são uma só coisa; não são coisas diferentes. Quando existe um “experimentador” separado da “experiência”, aquele está, então, sempre buscando mais experiência; mas, cada experiência é sempre uma “projeção” dele próprio.

A realidade, pois, o estado atemporal, não pode ser encontrado pela mera verbalização ou aceitação, ou pela repetição do que se ouviu dizer — pois isso é absurdo.  Para descobrir, realmente, é necessário compreender a fundo essa questão do “experimentador”. Enquanto existir “eu” a desejar experimentar, não haverá experiência da Realidade. Eis porque o “experimentador” — a entidade que busca a Deus, que crê em Deus, que ora a Deus — deve deixar de existir, completamente. Só então surgirá aquela Realidade imensurável.

Krishnamurti — Verdade Libertadora — ICK  — 25 de junho de 1956

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Por que a mente se apega a crenças, conceitos e dogmas?

A mente repleta de conhecimentos, crenças, teorias, não está, por certo, livre para investigar o verdadeiro. Mas, se pudermos compreender e dissolver o condicionamento, os preconceitos e dogmas que nos estão enevoando a mente, talvez então esta se torne livre para descobrir, pois, assim, a própria verdade atuará sobre o problema, em vez de ficar a mente lutando por uma solução por meio de seu próprio condicionamento — que não pode leva-la a parte alguma.
Eis porque acho muito importante saber escutar. Pouquíssimos de nós somos capazes de escutar verdadeiramente; pouquíssimos dentre nós ouvimos ou vemos as coisas com verdadeira clareza, porque tudo o que observamos ou ouvimos é imediatamente interpretado, traduzido pela mente, de acordo com nossas próprias ideias e peculiar temperamento. Pensamos estar compreendendo, mas não estamos, por certo. De tal maneira estamos sendo distraídos por nossas opiniões e conhecimentos, pelo aprovar ou reprovar, que nunca vemos o problema como ele de fato é. Mas, se pudermos desembaraçar-nos de nossos peculiares pontos-de-vista e, escutando, seguindo o funcionamento da mente, perceber o fato tal qual é, acho que veremos então manifestar-se um processo completamente diferente, o qual nos habilitará a considerar os nossos problemas com plena liberdade e clareza.
(...) Por certo, só a mente que está livre, por inteiro, de toda e qualquer autoridade, consciente ou inconsciente, é capaz de descobrir se existe uma realidade que transcende as meras concepções mentais. A mente livre é aquela que se libertou de toda crença, de todos os padrões de pensamento, conscientes ou inconscientes. Na atualidade, todo o nosso pensar resulta de nosso especial condicionamento, nossas experiências, lembranças, temores, esperanças, acumulados através do tempo. Em tais condições, é bem óbvio que a mente não está livre. Só existe liberdade quando o processo do pensamento, no seu todo, foi compreendido e transcendido; e só então se torna possível o surgir de uma mente nova, regenerada.
Assim sendo, pode a mente libertar-se de seu próprio condicionamento, para considerar de maneira nova os seus problemas? Pode ser livre a mente? — não como cristã, hinduísta, sueca, comunista ou seja o que for, nem puramente no sentido de abandonar um dado ideal, crença ou hábito, porém livre para descobrir o que significa transcender todas as influências e contradições, mentais e sociais.
Como está reagindo agora a mente? Reagir, concordando ou discordando, é de todo vão, uma vez que tal reação é produzida por nosso próprio fundo, nosso acervo de saber e crença. Mas, “experimentar” o que está se passando em nós mesmos, isso parece-me verdadeiramente proveitoso. Ora, pode-se investigar inteligentemente, pacientemente, para descobrir se há alguma possibilidade, de libertarmos a nossa mente de todo parcialismo, toda influência, habilitando-a, assim, a transcender suas próprias atividades? Do contrário, nossa vida será sempre muito superficial, vazia — e talvez quase todos estejamos nesse caso. Temos um enorme acervo de informações, conhecimentos, inumeráveis crenças, credos, dogmas, mas na realidade somos muito superficiais e infelizes.
(...) A mente agora é estéril, não criadora, no lídimo sentido da palavra, não é exato? Ela é uma coisa artificial, constituída das acumulações da memória. Enquanto existir inveja, ambição, busca interesseira, não pode haver o estado criador. Parece-me, por conseguinte, que o mais que podemos fazer é compreendermos a nós mesmos, as operações de nossa mente; e esse processo de compreensão representa uma volumosa tarefa. Não é coisa que se faz esporadicamente, que se deixa para mais tarde, para amanhã, mas deve ser feita todos os dias, a cada momento, continuamente. Compreender a si mesmo é estar cônscio, espontaneamente, naturalmente, dos movimentos do pensar. Começa-se, assim, a perceber todos os ocultos motivos e intenções que nutrem os nossos pensamentos, e resulta, daí, a libertação da mente dos processos que a tolhem e limitam. Ela está então tranquila; nessa tranquilidade pode manifestar-se, de modo espontâneo, algo que não é produto da mente.

(...)Pergunta: Dizeis que, para se operar a transformação, precisamos compreender todo o nosso fundo. Isso quer dizer que precisamos compreender a reencarnação e Karma?

Krishnamurti: Karma é uma palavra sânscrita, que significa ação. E, quanto à reencarnação, sabeis o que significa!
Acho bem óbvio que a mente que crê em alguma coisa, que se mantém apegada a algum desejo psicológico ou esperança resultante do medo, vive sempre presa nesse padrão da crença; e a luta que se trava dentro do padrão de qualquer crença não significa de modo nenhum transformação. O homem que simplesmente crê na reencarnação não compreendeu o problema da morte e do sofrimento e, porque crê em tal teoria, está tentando fugir ao fato da morte.
A palavra karma implica numerosos problemas. Precisamos compreender os motivos de nossas ações — as influências, as compulsões, as causas produtoras da ação. Tudo isso, por certo, faz parte do fundo que precisamos compreender; e a crença na reencarnação faz também parte desse fundo. A mente que crê é incapaz de compreensão, porquanto a crença, evidentemente, é uma fuga à realidade.

(...)Pergunta: Li um livro americano que parece provar convincentemente, por meio da hipnose, que a reencarnação é um fato. Que comentais sobre isso?

Krishnamurti: Aí está uma questão um tanto complexa, e acho necessária examiná-la convenientemente. Todos sabemos que existe a morte. O organismo físico tem de acabar-se, uma vez que se consome pelo uso; e desejamos saber se há continuidade após a morte. Todas as coisas que conhecemos e experimentamos tem fim e, por essa razão, indagamos o que será de nós depois. Este problema surge em todo mundo. No Oriente, a reencarnação é aceita como crença, e o autor desta pergunta diz que se escreveu um livro que prova, por meio da hipnose, que uma pessoa teve vidas anteriores; e queremos, portan­to, saber se a reencarnação é um fato. Não sei se credes que o pensamento é independente do corpo, independente do organismo físico. Temos um organismo, reações ner­vosas e pensamentos; e, assim, perguntamos se o pensa­mento continua após a morte.
Ora, que acontece quando fazemos tal pergunta? O fato verdadeiro é que desejamos continuar a existir, não é exato? — ou, também, achamos preferível o aniquilamento. Tanto num como noutro caso, a mente sele­cionou a teoria que melhor lhe convém. Se credes, ou não, na reencarnação, isso pouco importa; mas pode-se descobrir a verdade a esse respeito, a verdade a respeito da morte? A todos nos agrada pensar que existe uma al­ma eterna, e aceitamos várias crenças que nos ensinam que a alma é uma entidade espiritual que transcende o organismo físico. Mas a crença numa ideia, por mais con­fortante e animadora que seja, não nos dá perfeita com­preensão da morte. Sem dúvida, a morte é algo totalmen­te desconhecido, algo completamente novo, e, por mais ansiosamente que investiguemos esta questão, não encon­traremos resposta satisfatória. Tudo o que conhecemos está encerrado nos limites do tempo, e o que somos é apenas uma acumulação de memórias e experiências do passado. Determinamos nossa própria entidade por meio da me­mória — memória de "minha casa", "meu nome", "minha família", "meu saber", "minha pátria" — e queremos que esse "eu" tenha continuidade no futuro. Ou, ainda, di­zemos: "A morte é o fim de tudo" — o que também não representa solução alguma.
Pois bem. Pode-se descobrir a verdade acerca da morte? Sabe-se que buscamos a continuidade do "eu". O pensamento vive numa perpétua busca de permanência e, por essa razão, dizemos que deve haver alguma forma de continuidade. O pensamento é contínuo, não? E en­quanto existir o desejo de continuidade, fortaleceremos cada vez mais a ideia do "eu" e de "minha própria impor­tância". Pode ser que o pensamento continue, assuma outra forma, e a isso se chama reencarnação. Mas, aquilo que tem continuidade poderá conhecer o imensurável, o atemporal? Poderá ser criador? Ora, por certo Deus, a Verdade, ou como o chamardes, não pode ser encontra­do nos limites do tempo. Deve ser algo inteiramente no­vo, e não coisa criada pelas nossas próprias esperanças e temores. E, todavia, a mente deseja a permanência, não é verdade? Por conseguinte, diz: "Deus é permanente" e "eu terei continuidade depois desta vida".
Como vedes, o problema não é a reencarnação, mas, sim, o fato de buscarmos a permanência, nesta vida e de­pois dela. Enquanto a mente buscar a segurança, em qual­quer sentido que seja, através do nome, da família, da posição, da virtude, etc., continuará a existir o sofrimen­to. Só a mente que morre dia a dia, de momento a mo­mento, para tudo o que acumulou — só essa mente pode conhecer a verdade. E, então, talvez descubramos que não existe divisão entre a vida e a morte, porém, unica­mente, um estado todo diferente, em que o tempo, tal co­mo o conhecemos, não existe.

(...)Pergunta: Se alguém deseja encontrar a liberdade, na direção por vós indicada, não é também necessário que tal pessoa renuncie à igreja, ou a quaisquer organizações religiosas em que se interessa?

Krishnamurti: Se uma pessoa deseja libertar-se, deve abandonar, renunciar, ou colocar de lado organizações que exigem crença? É claro que deve. Se uma pessoa pertence a uma organização que exige crença, que se baseia no medo, no dogma, nesse caso sua mente é escrava de tal organização e não pode ser livre. Só a mente que é livre — e este é um problema verdadeiramente complexo e difícil — pode descobrir se existe uma realidade, se há Deus, e não a mente que crê em Deus.
Ora, porque nos apegamos aos dogmas, às crenças, aos rituais impostos pelas religiões? Se compreendermos isso, então todas essas coisas cairão por si, como as folhas no outono, sem esforço algum.
Porque pertenceis a uma dada organização religiosa? Necessitamos, é óbvio, de organizações — para entrega de correspondência, fornecimento de leite etc.; mas por que razão a mente se apega a dogmas? Não é porque, no dog­ma, na crença, ela encontra segurança, apoio? Porque vi­ve incerta, temerosa, insegura, a mente projeta uma cren­ça ou se apega a um dogma oferecido por tal igreja ou tal organização. A mente se apega ao dogma, à crença, como meio de fuga à sua própria incerteza, sua insuficiên­cia interior. Procura encher o seu vazio com dogmas, com crenças, superstições, rituais. Podeis renunciar a uma crença ou abandonar um dogma; mas, enquanto não compreenderdes vossa pobreza, vossa insuficiência interior, enquanto a mente não tiver compreendido o seu próprio vazio, o mero renunciar à religião organizada é sem sig­nificação. Só terá significação quando compreenderdes o elemento interior que vos força a apegar-vos à conclusão, à crença. Eis porque é tão importante conhecermos a nós mesmos, sabermos porque cremos, porque rejeitamos, porque renunciamos. Só no autoconhecimento existe a sabedoria — não nas crenças, não nos livros, porém na integral compreensão da estrutura de nossa mente. Só a mente livre pode compreender o que se encontra além do tempo.

Krishnamurti — Verdade Libertadora — ICK

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Espiritualidade é conformidade imposta pela autoridade do medo


De acordo com o meu ponto de vista, crenças, religiões, dogmas e credos, nada têm que ver com a vida e, portanto, nada têm que ver com a verdade.
(...)
É em consequência do medo que a humanidade tem juntado a vida em códigos de moralidades e sistemas de crenças.
(...)
A maioria de vocês, que possuem tendências religiosas e que falam de Deus e de imortalidade, não acreditam fundamentalmente no preenchimento individual, pois que, na própria estrutura do pensamento religioso, em virtude do medo, vocês permitem a compulsão e a imposição. Ou tem de ocorrer o preenchimento individual ou a completa mecanização do homem.

Não pode haver transigência entre as duas coisas. Vocês não podem dizer que o homem tem de adaptar-se a um modelo, que deve concordar, seguir, obedecer, ter autoridade e, ao mesmo tempo, pensar que é uma entidade espiritual.
(...)
A causa fundamental de uma crença organizada, que controla e domina o homem, é o temor; e enquanto o homem, realmente, não estiver liberto dela, a sua ação tem de ser limitada, criando, por esse modo, outros sofrimentos.
(...)
A religião organizada tem de, inevitavelmente, criar divisões e conflitos entre os homens. Observa-se isso por todo o mundo. O hinduísmo, assim como o cristianismo, o budismo e outras religiões organizadas, têm suas peculiares crenças e dogmas, que são barreiras quase impenetráveis erigidas entre os homens que destroem o seu amor.

E que valor, que significado tem essas religiões, desde que estão, fundamentalmente, baseadas sobre o medo? Se discernirem a falsidade da crença organizada, e verificarem que por meio de qualquer crença particular não lhes é possível compreender a realidade, nem por meio de uma autoridade, seja ela qual for, pode a inteligência ser despertada, vocês, então, como indivíduos, não como grupo organizado, se libertarão dessa destruidora imposição. Isto significa que precisam se interrogar, a partir do começo, sobre esta ideia de crença, atitude que, porém, implica um grande sofrimento, pois não é um mero processo intelectual.

O homem que apenas investiga intelectualmente a questão da crença nada mais encontrará que poeira.
Se um homem que sofre, investigar profundamente essa estrutura interna, baseada no temor e na autoridade, então encontrará essas águas da vida que aplacarão a sua sede.
(...)
Somente quando vocês, como indivíduo, começam a perceber, em meio do conflito imenso, a causa e, portanto, a falsidade desse conflito, é que descobrirão o que é a Verdade.

Nisto existe felicidade eterna, inteligência; mas não nessa coisa estúpida chamada espiritualidade, que nada mais é que conformidade imposta pela autoridade através do medo. Digo que existe algo sublimemente real, infinito; porém, para descobri-lo, o homem não pode ser uma máquina imitadora, e as religiões de vocês, no mundo inteiro, separam as pessoas. Isto é, vocês, que, pelos seus particulares preconceitos, se denominam cristãos, e os indianos, que pelas suas crenças particulares se denominam hindus, jamais se encontrarão. Suas crenças lhes mantém separados. Suas religiões lhes separam.
(...)
As ideias religiosas não se limitam apenas ao além. É coisa muito mais profunda. O desejo de estar seguro dá nascimento à cogitação do além e a outras muitas sutilezas que criam o medo, e o libertar-se delas exige grande discernimento.

Só a mente que estiver insegura compreenderá a verdade; a mente não preparada, não condicionada pelo medo, estará aberta para o desconhecido. Preocupemo-nos, pois, com as limitações e as causas.

Krishnamurti — O medo — 1946 — ICK

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A crença não vos conduz a Deus

Pergunta: A crença em Deus se baseia sempre no medo?

Krishnamurti: Por que credes em Deus? Qual é  a necessidade? Interessa-vos a crença em Deus quando sois muito feliz ou só quando se vos apresentam tribulações? Vós credes, porque fostes condicionado para crer? Como bem sabemos, há dois mil anos que nos dizem que existe Deus; e no mundo comunista estão condicionando a mente para não crer em Deus. É a mesma coisa; tanto num como noutro caso a mente está sendo influenciada. A palavra “Deus” não é Deus; e o descobrirdes verdadeiramente, por vós mesmo, se tal coisa — Deus — existe, é muito mais significativo do que vos apegardes a uma crença ou descrença. E o descobrir por si mesmo requer enorme energia — energia para libertar-se de todas as crenças; porém isto não importa um estado de ateísmo ou de dúvida. Mas a crença é uma coisa muito confortante, e poucos estão dispostos a despedaçar-se interiormente. A crença não vos conduz a Deus. Nenhum templo, nem igreja, nem dogma, nem ritual pode conduzir-vos à Realidade. Essa Realidade existe; mas para descobri-la precisais de uma mente imensurável. A mente pequena, limitada, só pode encontrar os deuses pequeninos e limitados que ela mesma cria. Portanto, devemos estar prontos a perder toda a nossa respeitabilidade, todas as nossas crenças, para podermos descobrir o que é real.

Acho que não podeis continuar escutando.  Se estivestes escutando indolentemente, ouvindo puramente as palavras, neste caso, sem dúvida, poderíeis continuar ouvindo por mais algumas horas. Mas, se escutastes corretamente, atentamente, com o propósito de aprofundar, então dez minutos bastariam, porque neste espaço poderíeis destroçar as barreiras que a mente criou para si própria de descobrir o que é Verdade.

Krishnamurti — Paris, 7 de setembro de 1961 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A atividade da crença é confusa e destrutiva

Ela disse que pertencera a várias sociedades religiosas, mas que finalmente tinha se fixado em uma. Trabalhara por ela como palestrante e divulgadora praticamente pelo mundo inteiro. Disse que desistira da família, do conforto e de muitas outras coisas por amor a organização; ela aceitara suas crenças, suas doutrinas e preceitos, seguirá seus líderes e tentara meditar. Tornou-se muito respeitada tanto pelos membros quanto pelos líderes. Agora, continuou, tendo ouvido o que eu dissera sobre crenças, organizações, os perigos do auto-engano e assim por diante, retirara-se dessa sociedade e de suas atividades. Não estava mais interessada em salvar o mundo, mas agora se ocupava de sua pequena família e de seus problemas. Tinha apenas um interesse remoto no mundo confuso. Era propensa à amargura, apesar de aparentemente boa e generosa, pois disse que sua vida parecia desperdiçada. Após todo seu entusiasmo e trabalhos passados, onde ela estava? O que acontecera? Por que estava tão entediada e abatida, e, na sua idade, tão preocupada consigo, com coisas insignificantes?

Com que facilidade destruímos a delicada sensibilidade de nosso ser. A luta e o esforço incessantes, as fugas e os medos ansiosos logo embotam a mente e o coração; e a mente astuta rapidamente encontra substitutos para a sensibilidade da vida. Divertimentos, família, política, crenças e deuses ocupam o lugar da clareza e do amor. A clareza é perdida pelo conhecimento e pela crença, e o amor pelas sensações. A crença traz clareza? O muro fortemente fechado da crença traz compreensão? Qual é a necessidade das crenças? Elas não atrapalham a mente já abarrotada? A compreensão do que é não exige crença, mas percepção direta, que é estar diretamente consciente, sem a interferência do desejo. Os mecanismos de desejo são sutis, e sem entendê-los a crença só aumenta o conflito, a confusão e o antagonismo. O outro nome da crença é fé, e a fé é também refúgio do desejo.

Nós recorremos à crença como um meio de ação. A crença nos proporciona aquela força particular que vem por meio da exclusão; e como a maioria de nós está preocupada com realizações, a crença se torna uma sociedade. Sentimos que não podemos agir sem crença, porque é a crença que nos dá algo pelo qual viver, pelo qual trabalhar. Para a maioria de nós, a vida não tem sentido, a não ser o que é transmitido pela crença; a crença tem maior importância do que a vida.

Achamos que a vida deve ser vivida no padrão da crença; pois sem um tipo de padrão como pode haver ação? Assim, nossa ação é baseada na ideia ou é o resultado de uma ideia; e a ação, então, não é tão importante quanto a ideia.

Podem as coisas da mente, por mais brilhantes e sutis, sempre realizar a conclusão da ação, uma transformação radical no ser de alguém e, assim, na ordem social? A ideia é o meio para a ação? A ideia pode causar certa série de ações, mas isso é simples atividade; e a atividade é totalmente diferente da ação. É nessa atividade que o indivíduo fica preso; e quando a atividade para, por um motivo ou outro, ele se sente perdido e a vida se torna sem sentido, vazia. Estamos atentos a esse vazio, consciente ou inconscientemente, e, portanto, a ideia e a atividade tornam-se completamente importantes. Preenchemos esse vazio com a crença, e a atividade se torna uma necessidade embriagadora. Pelo bem dessa atividade, nós nos sacrificamos; ajustamo-nos a qualquer incômodo, a qualquer ilusão.

A atividade da crença é confusa e destrutiva; ela pode, a princípio, parecer metódica e construtiva, mas em seu curso há conflito e sofrimento. Todos os tipos de crença, religiosas ou políticas, impedem o entendimento do relacionamento, e não pode haver ação sem esse entendimento.

Krishnamurti

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A fé que nasce do direto experimentar, por nós mesmos

Vemos que existem, ao redor de nós, no mundo, inúmeros problemas, criados pela sociedade, pelos indivíduos; e, parece, a solução de um determinado problema nos apresenta sempre um outro maior, faz criarem-se novos problemas. Assim que resolvemos um determinado problema, como o da fome ou outro qualquer — econômico, social, espiritual — despertamos, não é verdade? — para outros problemas, inumeráveis. Visto que com a solução de um problema nascem sempre novos problemas, vê-se a mente cada vez mais emaranhada em problemas. Nunca há solução definitiva para um problema e sim, sempre, multiplicação dos problemas. Não sei se já tendes notado isso na vossa vida de cada dia. Pensais ter resolvido alguma coisa, e eis que dessa própria solução, nasce meia dúzia de novos problemas. Pra, é possível resolver completamente um problema, sem o aumentar e sem se criarem novos problemas? Essa é uma das nossas maiores preocupações na vida, visto que há tantos problemas no mundo — problemas econômicos, sociais, religiosos: as guerras devastadoras, as relações entre povos, as ideias, se há Deus, se não há Deus, etc.

Temos problemas incontáveis; o dia inteiro é cheio de problemas — que espécie de ação empreender, que profissão adotar, o desejo de preenchimento e (por falta de compreensão dele) a cadeia sem fim de frustração. A fim de resolver este problemas, apelamos em geral para alguém, para um livro, um sistema, um líder, um guru, ou para a nossa experiência pessoal. Entretanto, se observarmos atentamente, o nosso desejo de achar uma solução por intermédio de alguém, de um guru, de um livro, de uma panaceia política, de um guia, veremos que ele só nos leva à frustração. Não é isso o que acontece, na vida de quase todos nós? Politicamente, tendes seguido uma ideia, já estivestes na prisão, já vos deixastes arrebatar de entusiasmo pela liberdade, pelo nacionalismo, etc.; e no fim de tudo, o que tendes? Tendes a palavra "liberdade"; esta palavra, porém, não é a liberdade.

Tendes livros religiosos, tendes guias e filósofos, observais numerosos ritos e, todavia, acompanha-vos sempre o temor, a frustração, a desesperança, a amargura, a ansiedade. Tal é o fado de todos nós!

E, à medida que vamos envelhecendo, com uma carga cada vez maior de experiências e de desenganos, vemos, não é exato? — vemos que estamos perdendo a coisa mais essencial da nossa vida: a . Entendo por "", não a mesma coisa que estais acostumados a entender — a fé no líder, a fé no guru, e na experiência pessoal. Podeis não crer em coisa alguma, e fazeis muito bem; porque, se não crerdes em nada, tendes uma possibilidade de descobrimento. Entretanto, o viver sem fé leva ao cinismo, ao ceticismo, a uma vida de gozos superficiais, e superficial benevolência. Se não nos tornamos cínicos, tornamo-nos pessoas muito ativas e prestativas; mas aquela chama tão essencial ao pensar criador, é negada, sufocada. Creio ser essa coisa, essa chama, que nos cumpre encontrar, e não a solução para um problema qualquer, pois as soluções dos problemas são relativamente fáceis.

Se sois inteligente, se tendes capacidade e energia, é-vos então relativamente simples estudar o problema. O estudo perfeito do problema representa, justamente, a sua solução, porquanto a solução não se acha fora do problema. Para estudar-se, porém, o problema, descobrir a verdade que ele encerra, para isso, necessita-se de energia, vitalidade; e essa vitalidade, essa energia, são destruídas quando seguis alguém, quando obedeceis o vosso guru, o vosso guia político, ou a um sistema econômico. Toda a vossa energia criadora se dissipou no seguirdes alguma coisa, no disciplinardes a vossa mente de acordo com um determinado padrão de ação. Se falha ou se morre o vosso guia, vos vedes sozinhos.

Ora, é possível termos aquela fé criadora — se posso usar tal expressão — sem a identificarmos com um determinado padrão de pensamento? Não me refiro aqui a fé num guru, num livro, na experiência pessoal, mas aquela fé, aquela confiança que nasce do direto experimentar, por nós mesmos — prescindindo de tradições e mentores, compreendendo o problema diretamente, aplicando-nos a ele com energia, com aquela extraordinária confiança, aquela capacidade de descobrir-lhe a verdade intrínseca. Essa fé, sem dúvida é a verdadeira solução. Porque, sem ela, não somos entes humanos criadores. O que se faz necessário no mundo, hoje em dia, não são os líderes, nem sistemas, nem gurus, mas sim, a capacidade, por parte de cada indivíduo, para descobrir por si mesmo o que é a Verdade.

A Verdade não é coisa vossa ou minha. A Verdade não é pessoal. É algo que surge quando a mente se acha muito lúcida, simples, direta, silenciosa. Só então surge a Verdade. Não podemos perseguir a Verdade. Tentamos persegui-la, quando estamos dominados pela ânsia de solução para determinado problema.

O que se necessita, pois, é a confiança, a fé imprescindível para o descobrimento da Verdade. Não podemos descobrir o que é a Verdade, se nossas mentes estão condicionadas. Infelizmente, a janela pela qual observamos a vida, está condicionada.

Estamos condicionados, como hinduístas, muçulmanos, cristãos ou budistas — isto é, estamos condicionados para pensar de uma determinada maneira. A conduta, o padrão de ação, é-nos inculcado desde a infância. E, por conseguinte, quando crescemos e começamos a experimentar, fazemo-lo através dessa cortina de condicionamento; esta é uma óbvia consequência psicológica, quer nos agrade, quer não.

Nunca somos livres para descobrir. Até agora abrigamos uma determinada forma de condicionamento — capitalista ou socialista. Dizemos agora: "esta forma é insensata; tornemo-nos comunistas". Tornar-se comunista também é condicionamento. Por meio de um condicionamento, pode-se resolver algum problema? Pelo contrário, só se pode resolver um problema quando somos livres para meditá-lo a fundo e experimentá-lo diretamente. E visto que estamos tão condicionados — religiosa, econômica, climaticamente, enfim, de todos os modos — não somos livres para olhar, observar, descobrir. Estamos agrilhoados, principalmente neste país; somos incapazes de pensar independentemente, livremente, por nós mesmos, sem a ajuda de guias, dos livros, dos líderes. Tende a bondade de refletir sobre isso, porque o problema é este. Porque somos adoradores de imagens, temos tantos modelos e tantos heróis. Tão inutilizadas estão as nossas mentes pela imitação, que somos incapazes de abandonar todos os livros e todos os guias, para refletirmos por nós mesmos sobre cada problema e descobrirmos a Verdade.

No descobrir da Verdade inerente a qualquer coisa, há o sentimento de "pensar juntos". Compreendeis o que isso significa? Até agora temos seguido alguém e por esse motivo, justamente, criado divisões. De nada serve dizermos que estamos unidos em torno do líder, porquanto, basicamente, estamos separados e, por conseguinte, nunca há um sentimento criador de "edificar juntos", de que esta é a nossa Terra, de que não podeis viver sem mim, nem eu sem vós. Esse é o sentimento de que temos de construir juntos, sem que nenhum líder político ou religioso, nenhuma personalidade dinâmica estabeleça planos; o sentimento de que esta é a nossa Terra; o sentimento de que esta civilização arruinada pode ser reerguida, reconstruída; o sentimento de que vós e eu estamos construindo juntos a nossa civilização.

Não pode nascer esse sentimento de "nós juntos", se não formos livres para descobrir a Verdade — a Verdade que não é vossa nem minha. Só no descobrimento do que é a Verdade existe a possibilidade do sentimento de estarmos criando juntos, e juntos a viver e embelezar a Terra. Refleti, por favor, sobre o que digo. Não o rejeiteis como coisa inútil, como uma dessas falas que acostumamos ouvir de tempos em tempos. Não façais pouco caso disso, pois estamos tratando da necessidade mais vital da hora presente.

Achamo-nos numa crise tremenda, quer reconheçamos, quer não. E, no meio desta crise, não podemos continuar a seguir um livro anacrônico ou um guia qualquer; temos de descobrir a Verdade no nosso próprio coração, e só a encontraremos se nossa mente estiver "descondicionada". Enquanto houver o condicionamento que nos faz buscar, seguir, ou criar ideologias e adorar ídolos; enquanto houver condicionamento da nossa mente, fazendo-nos proceder como hinduístas, comunistas, socialistas, capitalistas, ou o que quer que seja, não encontraremos a Verdade contida em problema algum. Só quando vós e eu descobrirmos a Verdade, que não é pessoal, individual, haverá a possibilidade de promover-se uma revolução que não seja uma revolução de ideias, mas a revolução da Verdade. Dela necessitamos nos tempos atuais.

Importa igualmente descobrir qual é a vossa relação para com a Realidade Criadora, ou como quiserdes chamá-la — pois os nomes não tem importância. Essa Realidade Criadora nunca será encontrada, enquanto a vossa mente estiver cristalizada, atulhada de ideias e palavras sem nenhuma significação. Não a encontrareis, não a descobrireis, se vossa mente não é capaz de libertar-se do pensamento tradicional.

A Verdade não é uma estrutura mental. A mente não pode perceber a Verdade. A Verdade não é produto da mente; pelo contrário, enquanto a mente estiver em atividade, tentando imaginá-la, descobri-la, desenterra-la, jamais a encontrará. Encontrá-la-a, apenas, quando houver a compreensão que liberta a mente e lhe dá a única possibilidade de profundo silêncio. É essencial uma mente silenciosa, uma mente tranquila, de uma tranquilidade não produzida por disciplina, por coerção ou persuasão. Uma mente disciplinada não é uma mente livre; uma mente estreita, condicionada, é incapaz de compreender o que é a Verdade. A mente, porém, que compreende, que penetra, capaz de "experimentar" diretamente, na ação, nas relações, no viver de cada dia — essa mente é também capaz de descobrir a Verdade; e essa Verdade é que nos liberta de nossos problemas.

Krishnamurti — Autoconhecimento — A Base da Sabedoria

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Porque o"eu" carrega o peso de seu saber e de sua crença?

O que é o seu saber e o que é a sua crença? Se você examina o seu saber e a sua crença, que são eles? Só lembranças. Não é verdade? De que é que você tem conhecimento? Das suas lembranças, das experiências de outras pessoas, registradas num livro! Se você pensa a respeito do seu saber, o que é ele? Lembrança. Você está obtendo explicações, ministradas por outras pessoas, e tem suas próprias experiências, baseadas em suas lembranças. Você se depara com um acidente e traduz esse acidente de acordo com a sua memória, a qual chama experiência. Seu saber é um processo de reconhecimento. Sabemos o que são as crenças. Elas são criadas pela mente, no seu desejo de estar certa, de estar protegida, de estar em segurança. 
Assim, como pode essa mente, presa que está pelo saber, essa mente, que é acumulação do passado, traduzindo o presente segundo sua própria conveniência, como pode essa mente, com sua carga de saber, compreender o que é a verdade? A verdade tem de ser algo que está fora do tempo. Ela não pode ser "projetada" pela mente; não pode ser talhada pela minha experiência; tem de ser algo incognoscível, em face de minha experiência passada. Se eu a conheço, do passado, isso então é reconhecimento e portanto não é a verdade. Se ela é apenas uma crença, é então uma "projeção" dos meus próprios desejos. 
Porque nos orgulhamos tanto do nosso saber? Estamos aprisionados em nossas crenças, no "estado de conhecimento", no sentido em que é geralmente compreendido o conhecimento. Você teme o "ser nada". Eis porque faz questão de ter tantos títulos; tem a preocupação de adquirir nomes, idéias, reputação, de fazer exibição de si mesmo. Com toda essa carga na mente, você diz: "Estou procurando a verdade, desejo compreender a verdade". Se examina atentamente todo o processo de aquisição de saber e da formação da crença, o que acontece? Você verificará, sem dúvida, que essas coisas são artifícios da mente — o crer, o saber; elas lhe conferem um certo prestígio, certos poderes; os outros lhe respeitam como um homem extraordinário, muito lido e muito culto. Ficando mais velho, você se acha com direito a mais respeito, porque, naturalmente, se tornou mais sábio, pelo menos assim o pensa. O que você fez foi apenas amadurecer na sua própria experiência. A crença destrói os entes humanos,   divide os entes humanos. O homem que crê nunca pode amar; porque, para ele, a crença é mais significativa do que o ser bondoso, cordial, solícito; a crença proporciona certa força, certa vitalidade, um falso sentimento de segurança. 
Assim, examinando bem a coisa, o que você encontra? Só palavras, só memória. A verdade é algo que deve achar-se além dos limites da imaginação, além do processo da mente. Ela tem de ser eternamente nova, uma coisa não suscetível de reconhecer-se, de descrever-se. Se você cita Sankara, Buda, XYZ, já começou a comparar — o que demonstra que, pela comparação, você desistiu de pensar, de sentir, de experimentar. Esse é um dos artifícios da mente. Seu saber está destruído a percepção imediata daquilo que é a verdade
Eis porque importa compreender, no seu todo, o processo do saber e da crença, para o abandonarmos. Seja simples, veja as coisas com simplicidade e não com uma mente ardilosa. Você verá, assim, que a mente, que amontoou experiência, tantas explicações, que está limitada por tantas crenças, começa a renovar-se. Ela já não está à procura do novo, já não está reconhecendo, deixou de reconhecer; acha-se, por conseguinte, em estado de constante experimentar, não relacionado com o passado; há um movimento novo, que não é susceptível de repetir-se. 
Importa, por esta razão, que todo saber, toda crença sejam devidamente compreendidos. Você não pode suprimir o saber; precisa compreende-lo; não pode fechar a porta ao saber. Qual é, agora, a sua reação? Sairá daqui e continuará a proceder da maneira habitual, porque têm medo de afastar-se do velho padrão. 
Para achar a verdade, não há guru, não há exemplo, não há caminho; a virtude não conduzirá á verdade; a prática da virtude é auto-perpetuação. O saber, evidentemente, só nos dá respeitabilidade. O homem "respeitável" e fechado dentro de sua própria importância, nunca encontrará a verdade. A mente precisa estar de todo vazia, não procurar, não "projetar". Só quando a mente está totalmente tranquila, apresenta-se a possibilidade daquilo que é imensurável. 

Krishnamurti - Quando o pensamento cessa

O que é automistificação, e como ela se origina?

Qual é a razão, qual é a base da automistificação? Quantos de nós estamos verdadeiramente conscientes de que estamos enganando a nós mesmos? Antes de podermos responder à pergunta "o que é automistificação, e como ela se origina?" — você não julga necessário estarmos conscientes de que estamos enganando a nós mesmos? Sabemos que estamos enganando a nós mesmos? Que pretendemos nós com essa mistificação? Julgo muito importante o problema, pois, quanto mais enganamos a nós mesmos, tanto mais cresce a força da ilusão, a qual nos transmite certa vitalidade, certa energia, certa capacidade, que nos leva a impor aos outros a nossa própria ilusão. Assim, gradualmente, não só estou impondo uma ilusão a mim mesmo, mas também aos outros. É um processo "interatuante" de automistificação. Estamos conscientes desse processo, nós que nos julgamos muito capazes de pensar com lucidez, determinada e diretamente? Estamos conscientes de que, nesse processo de pensar, há automistificação?
O pensamento, em si, não é um processo de busca, uma procura de justificação, um desejo de ter tido em boa conta, um desejo de posição, de prestígio e poder? Esse desejo de ser — política, religiosa ou socialmente, — não é ele próprio a causa da automistificação? No momento em que desejo algo diferente da pura materialidade, não produzo, não dou origem a um estado que aceito facilmente? Tome, por exemplo, o seguinte: Desejo saber o que acontece depois da morte, questão em que a maioria de nós está interessada, e quanto mais velhos mais interessados. Desejamos saber a verdade a esse respeito. Como a acharemos? Certamente, não a acharemos por meio de leituras, nem por meio de diferentes explicações. 
Como então você a achará? primeiramente, deve expurgar a sua mente de todos os fatores que constituem empecilhos — toda esperança, todo desejo de continuidade, todo desejo de averiguar o que existe "daquele lado". Porque a mente está sempre em procura de segurança, sempre desejosa de continuar, esperançosa de achar um meio de preenchimento, esperançosa de uma existência futura. Essa mente, conquanto esteja buscando a verdade sobre a vida após a morte, a reencarnação, ou o que quer que seja, é incapaz de achar aquela verdade. Não é exato isso? O que importa saber não é se a reencarnação é ou não um fato verdadeiro, mas, sim, como a mente busca, por meio da automistificação, a justificação de um fato que pode ser e pode não ser verdadeiro. O que tem importância, pois, é a maneira como nos chegamos ao problema, o motivo, o impulso, o desejo com que nos aplicamos a ele. 
Aquele que busca está sempre impondo a si mesmo aquela ilusão; ninguém lhe pode a impor; é ele próprio que a impõe. Criamos a ilusão e depois nos tornamos seus escravos. Assim, o fator fundamental da automistificação é esse desejo constante de ser alguma coisa, neste mundo ou no outro. Sabemos qual é o resultado do desejo de ser alguma coisa neste mundo; esse resultado é a confusão extrema, em que todos competem com todos, todos se destroem entre si, em nome da paz; conhecemos o jogo que estamos fazendo uns com os outros, o qual é uma forma extraordinária de automistificação. De igual maneira, desejamos a segurança no outro mundo. 
Vemos que começamos a enganar a nós mesmos, no momento em que existe esse impulso para ser, para vir-a-ser, conseguir. É muito difícil a mente ficar livre desse impulso. Esse é um dos problemas básicos da nossa vida. É possível viver neste mundo e não ser nada? Porque é só assim que podemos estar livres de todas as ilusões, só assim a mente não fica a procurar um resultado, uma resposta satisfatória, uma forma de justificação, a segurança, numa dada forma, numa dada relação. Só se realiza esse estado quando a mente reconhece as possibilidades e as sutilezas da ilusão, e por conseguinte, com compreensão abandona todas as formas de justificação, de segurança — o que significa que a mente é então capaz de ser, completamente "nada". É possível isso?
Por certo, enquanto vivermos a enganar a nós mesmos, de alguma forma, não poderá existir o amor. Enquanto a mente for capaz de criar e impor a si mesma a ilusão, ela terá, inevitavelmente, de separar-se da compreensão coletiva ou integrada. Essa é uma das nossas dificuldades; não sabemos cooperar; o que sabemos é só trabalhar em conjunto visando a um fim que nós mesmos criamos. Ora, só pode haver cooperação quando você e eu não temos nenhum alvo comum, criado pelo pensamento. Acompanhe-me lentamente, pois vejo que várias pessoas não estão me seguindo. O que importa é compreender que a cooperação só é possível quando você e eu não desejamos ser alguma coisa. Quando você e eu queremos ser alguma coisa, torna-se necessária a crença e tudo o mais; torna-se necessária uma utopia, de nós mesmos projetada. Mas, se você e eu estamos criando, anonimamente, sem automistificação de espécie alguma, sem barreiras de crença e de saber, sem o desejo de estar em segurança, existe então a verdadeira cooperação.
Nos é possível cooperar, nos mantermos coesos, sem termos um alvo, um resultado? Podemos, você e eu, cooperar, sem estarmos em busca de um resultado? Essa, sem dúvida, é que é a verdadeira cooperação, não acha? Se você e eu concebemos, elaboramos, planejamos um resultado, e agora estamos trabalhando juntos, para alcançar esse resultado, qual é o processo aí subentendido? Nossas mentes estão de acordo, nossos pensamentos, nossas mentes intelectuais estão, naturalmente, de acordo; mas, emocionalmente, todo o nosso ser pode estar resistindo, do que resulta mistificação, do que resulta conflito entre nós. Esse é um fato evidente e observável em nossa vida cotidiana. Você e eu combinamos executar juntos um dado trabalho, e intelectualmente, estamos de acordo; mas, inconscientemente, profundamente, estamos a trabalhar um contra o outro; eu desejo um resultado que me dê satisfação; quero dominar; quero que meu nome sobressaia ao seu, embora seja sabido que estou trabalhando com você. Dessa forma, nós dois, que somos os criadores de tal plano de cooperação, somos, na realidade, adversários, embora, exteriormente, estejamos de acordo quanto ao plano. No íntimo, estamos em guerra um com o outro, embora, conscientemente, possamos estar em harmonia.
Nessas condições, você não acha importante averiguarmos se você e eu podemos cooperar, comungar, viver juntos, num mundo em que você e eu nada somos; se somos capazes de cooperar verdadeiramente, não no nível superficial, mas fundamentalmente? Esse é um dos nossos maiores problemas, quem sabe, o maior de todos. Eu me identifico com um objetivo, e você se identifica com o mesmo objetivo; ambos estamos interessados nele; ambos pretendemos realizá-lo. Esse processo de pensar, sem dúvida, é muito superficial, porque, pela identificação, geramos a divisão — que é um fato tão evidente em nossa vida diária. Você é hinduísta e eu sou católico; ambos pregamos a fraternidade... e prontos a saltar na garganta um do outro. Porque isso? Este é um dos nossos problemas, você não acha? Inconsciente e profundamente, você tem as suas crenças e eu tenho as minhas crenças. Com nossas falas de fraternidade, não resolvemos o problema das crença, mas só concordamos, teórica e intelectualmente, que assim deve ser; no íntimo, no fundo, estamos um contra o outro.
Enquanto não desfizermos estas barreiras, que constituem uma automistificação, que nos dão uma certa vitalidade, não será possível nenhuma cooperação entre nós. Pela identificação com um grupo, com uma dada idéia, uma determinada nação, nunca chegaremos á cooperação.
A crença não produz a cooperação; pelo contrário, a crença divide. Vemos um partido político contra outro, cada um deles acreditando num determinado método de atender os problemas econômicos e, consequentemente, todos em guerra entre si. Não estão decididos a solucionar o problema da fome, por exemplo. Interessam-se pelas teorias que irão resolver aquele problema. Não lhes interessa na realidade o problema, mas, sim, apenas o método pelo qual o problema se resolverá. Por isso, tem de haver luta entre os dois, porque o que lhes interessa é a idéia e não o problema. De modo idêntico, os indivíduos religiosos estão uns contra os outros, embora, verbalmente, proclamem que tem uma só vida, um só Deus; você sabe tudo isso. Entretanto, no íntimo, as suas crenças, as suas opiniões, as suas experiências os estão destruindo e mantendo separados. 
A experiência, pois, torna-se um fator de divisão em nossas relações, a experiência é um meio de mistificação. Se experimento uma coisa, a ela me apego; não procuro investigar todo o problema relativo ao processo de "experimentar"; mas, porque experimentei, tanto basta, e por isso me apego à experiência e, consequentemente, por meio dessa experiência, me imponho a automistificação. Nossa dificuldade, pois, é que cada um de nós está de tal modo identificado com uma determinada crença, com uma determinada forma ou método de promover a felicidade, o ajustamento econômico, que nossa mente está tomada por essa coisa e nos é impossível entrar mais profundamente no problema; por esse motivo, desejamos permanecer à parte, individualisticamente, com nossas peculiares maneiras de proceder, nossas crenças e experiências. Enquanto não dissolvermos e compreendermos essas coisas, não só no nível superficial, mas no nível mais profundo, não pode haver paz no mundo. Eis porque importa muito que aqueles que se sentem realmente interessados compreendam integralmente este problema — o desejo de vir-a-ser, de realizar, de ganhar — não só no nível superficial, mas fundamental e profundamente; de outro modo, não há possibilidade de paz no mundo. 
A verdade não é coisa que se possa ganhar. O amor não pode vir àqueles que têm o desejo de segurar-se a ele ou que desejam com ele se identificar. Essas coisas vem, por certo, quando a mente não procura, quando a mete está de todo tranquila, quando a mente já não está criando movimentos e crenças em que possa apoiar-se ou de que lhe advenha uma certa força — o que constitui um indício de automistificação. Só quando a mente compreende, no seu todo, o processo do desejo, pode estar tranquila. Só quando a mente não está em movimento, para ser ou para não ser, só então existe a possibilidade de um estado em que não é possível ilusão de espécie alguma. 

Krishnamurti - Quando o pensamento cessa - pág. 187 à 193
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill