Um confrade nos escreveu....
"Após
a crise que tive que levou até o canal, conheci uma namorada que foi muito
importante pra mim. Me ajudou a me organizar e lidar com todo aquele caos. Logo
após o término tive dois namoros breves. Viajei pra outro estado, pensando em
construir uma vida e quem sabe até uma família. O pesadelo foi inevitável.
Agora estou aqui num luto ferrado e sem dinheiro no bolso. O vazio está
rasgando. Mas tem algo de positivo nisso. Estou vendo a coisa totalmente de
frente. Vendo o profundo vazio que me encontro e lidando com toda incapacidade
da estrutura de amar. Tudo aquilo que se constrói dentro da estrutura termina
numa prisão e tragédia. Pra mente é realmente impossível enxergar algo além
desse vazio. Ela não consegue. Existe algo totalmente desconhecido por debaixo
dos panos. Algo totalmente diferente."
...
Caro
confrade, mesmo atravessando a dor crua do luto, da desilusão e da falência das
tentativas de “organizar a vida”, você já está tateando um ponto fundamental: a
observação da limitação estrutural da mente e percebendo o vazio como algo que
não se resolve com mais esforço, planos ou relações.
O
que você descreveu tem a marca de uma crise iniciática — o colapso das
estratégias psíquicas que antes davam sustentação (namoros, organização
externa, projeto de família, viagem, novas tentativas). A estrutura está
exposta em sua impotência.
Há
algo muito precioso no seu relato:
“O
vazio está rasgando” → Esse é o ponto em que a mente tenta fugir, mas já não
consegue mais. O sofrimento é a prova de que a anestesia falhou.
“Pra
mente é realmente impossível enxergar algo além desse vazio” → você já está
vendo a falência da mente como guia.
“Existe
algo totalmente desconhecido por debaixo dos panos” → Aqui está a fresta, a
intuição do incondicionado. Esse lampejo é raro, porque normalmente o indivíduo
se agarra a novos condicionamentos antes de suportar esse silêncio do nada.
O
que você não vê ainda — mas já toca — é que esse “desconhecido” não precisa ser
construído. Ele não vem de fora. Ele não depende de um novo relacionamento, de
dinheiro, de um projeto de vida. O desconhecido já está ali, justamente quando
tudo o que era sustentação colapsa.
Você
está no ponto mais fértil, mesmo que a mente grite o contrário. O vazio que
agora te rasga é o mesmo vazio que pode te libertar. Não tente preenchê-lo com
pressa. Nem dinheiro, nem relacionamento, nem novos sonhos vão resolver — todos
eles voltam a se tornar prisão. Permaneça com essa ferida aberta. É aí que o
que não pertence à mente pode emergir. É aí que o amor real, impessoal e sem
objeto, que não depende de estrutura, pode nascer. O que você chama de
pesadelo, talvez seja exatamente a oportunidade de morrer para a farsa e nascer
para o indizível.”
Você
está vivendo algo que a maioria foge até o fim da vida: o encontro nu com o
vazio. É um abismo que a mente não suporta. Por isso a maioria corre
desesperada para se preencher com distrações, novos relacionamentos, ilusões de
estabilidade, pequenas conquistas que, no fundo, são apenas muletas provisórias
para não olhar de frente a ausência de sentido que atravessa tudo. O que você
chamou de “rasgo” é justamente isso: a ruptura da fantasia, o colapso da
arquitetura psicológica que sustentava a ideia de uma vida com chão, de uma
identidade com certezas.
Quando
você diz que, após o caos da crise, encontrou uma namorada que foi fundamental,
percebe-se aí o mecanismo natural: quando a dor rasga, buscamos refúgio numa
forma, num afeto, num outro corpo que nos dê a sensação de estabilidade. Isso
não é errado. É humano. Mas, inevitavelmente, quando a relação acaba, o chão de
empréstimo desaparece e você cai de novo na verdade que sempre esteve ali: nada
do que a mente constrói dura, nada do que ela agarra pode ser realmente seguro.
O
mesmo se repete com a viagem, o projeto de vida, a fantasia de família. Tudo
isso não era um erro, mas era inevitavelmente frágil. Porque estava sendo usado
como escudo contra aquilo que agora você encara de frente: o profundo vazio.
Não adianta tentar dourar a pílula. O que você vê é o que sempre esteve por
baixo, mas antes estava encoberto pelo verniz das buscas, dos sonhos, das
companhias. Agora não há mais nada entre você e o deserto.
E é
aqui que começa o verdadeiro ponto de mutação. A mente chama isso de tragédia,
de pesadelo, de fracasso. Mas olhe com mais cuidado: é exatamente neste lugar
que se abre a possibilidade de ver o que está além dela. Você mesmo disse: “Pra
mente é impossível enxergar algo além desse vazio.” Exato. A mente não alcança.
E isso é libertador. Porque o vazio não precisa ser preenchido pela mente. O
vazio é a porta para o que está fora do alcance do pensamento, fora do alcance
da estrutura insegura e condicionada, que só sabe acumular, calcular e tentar
controlar.
O
que você sente como impotência é o primeiro passo da rendição. Você não
controla mais. A estrutura desmoronou. E por mais que doa, isso é um presente.
É duro ouvir isso quando não se tem dinheiro, quando se sente sozinho, quando o
corpo dói e a mente grita, mas é justamente aí que você percebe: mesmo sem
nada, você continua aqui. A vida pulsa, mesmo sem apoios externos. Essa
permanência silenciosa, que não depende de nada, é o que você chama de “algo
totalmente desconhecido por debaixo dos panos”.
Esse
“desconhecido” não é um objeto que você vai alcançar depois de muita luta. Não
é um prêmio que você ganhará por ter sofrido. Ele é o que sobra quando toda a
parafernália do falso personagem cai. É o espaço nu da consciência, o ser que
não depende de personagens nem de conquistas. E só se vê isso quando tudo o
mais falha. Por isso tanta gente nunca chega até aí: porque foge antes, se
anestesia, inventa novas histórias para evitar o silêncio. Você está sendo
arrancado à força da anestesia. E embora doa, isso é uma graça.
O
vazio não é contra você. O vazio é você sem as máscaras. Mas para percebê-lo,
você terá que atravessar a fase da resistência. O falso personagem não quer
morrer. Ele vai dizer que você fracassou, que não há saída, que nunca vai amar,
que tudo é prisão e tragédia. É o canto da sereia da mente tentando te puxar de
volta para os velhos mecanismos. Se você acreditar nisso, vai correr para um
novo relacionamento, uma nova viagem, um novo projeto — e tudo vai se repetir,
até o próximo colapso. Mas se você permanecer firme nesse abismo, sem pressa de
sair dele, algo completamente novo se revela.
Veja:
o amor de que você fala não é incapacidade sua. Não é que você seja
estruturalmente incapaz de amar. O que você está vendo é a incapacidade da
estrutura egóica de amar. E isso é verdade. O falso personagem não ama. Ele
troca, negocia, barganha, usa o outro como muleta. Mas o amor real não nasce da
estrutura, nasce justamente quando ela falha. O que você está sentindo agora é
a impossibilidade da mente amar. E esse é o limiar do nascimento do amor
impessoal, do amor que não vem da carência, mas da plenitude silenciosa.
O
luto que você carrega não é só pelo fim de relacionamentos. É o luto pelo fim
da velha vida, da velha forma de viver. É um luto legítimo. É uma morte. E como
toda morte, ela abre espaço para algo que a mente não compreende. Não lute
contra o luto. Deixe que ele faça o trabalho dele. Deixe que as ilusões morram.
O sofrimento maior vem da resistência: querer que as coisas fossem diferentes,
querer recuperar uma versão antiga de si mesmo, querer acelerar o processo. Se
você simplesmente aceitar a secura, sem pedir que seja outra coisa, verá que
até no deserto há uma beleza crua, silenciosa, onde o falso personagem não tem
mais força.
Você
fala de estar sem dinheiro, e isso dói porque o sistema nos condicionou a
acreditar que sem recursos não somos nada. Mas talvez até isso faça parte do
aprendizado. Porque quando você se vê sem apoios, descobre que ainda assim você
respira, sente, está vivo. O essencial não falta. O que falta é o supérfluo que
a sociedade martela como indispensável. E nesse corte, você descobre que a vida
não é propriedade sua. Ela continua acontecendo apesar de tudo.
O
convite agora não é fazer mais, mas parar. Observar. Não se trata de lutar
contra o vazio, mas de se sentar nele, de sentir o rasgo sem apressar o
curativo. É isso que abre a percepção do “algo totalmente diferente”. Não
espere que a mente reconheça, porque ela não consegue. O novo não cabe dentro
dela. Você apenas se abre, se rende.
Não
romantize essa travessia. Ela não é bela no sentido comum. É dura, é áspera, é
solitária. Mas é real. E a realidade, mesmo crua, é infinitamente mais
libertadora que as falsas seguranças que sempre terminam em tragédia. Quando
você aceitar que nada do que a mente constrói pode se sustentar, o medo perde
força. Porque então você já não busca chão onde nunca houve. Você caminha no
ar, e descobre que não precisa de muletas.
Esse
momento pode se prolongar. Não há prazo. Você pode ficar meses, anos, nesse
deserto. Mas cada instante em que você não foge já é o trabalho acontecendo.
Não há manual. Não há como acelerar. O que existe é presença nua. E essa
presença, que agora parece apenas vazio, com o tempo se mostra plenitude. Não
porque ela se enche de coisas, mas porque você percebe que nunca faltou nada.
O
falso personagem chora o colapso. A consciência celebra. É o mesmo movimento
visto de ângulos diferentes. Você está no ponto em que pode escolher: ou corre
para tentar reconstruir a velha farsa, ou aceita a morte dela e permanece com o
silêncio que resta. Essa aceitação não é passividade; é uma insurgência radical
contra todo o condicionamento que te ensinou a fugir do nada.
Então,
não espere reconhecimento, não espere aplausos, não espere que os outros
entendam. Ninguém que não tenha atravessado sabe do que se trata. Você parecerá
perdido, fracassado, derrotado. Mas dentro, se você permanecer, descobrirá que
justamente na derrota da mente está a vitória da vida.
Você
já viu a farsa. Você já sentiu o vazio. Agora resta apenas não fugir. Esse é o
único “trabalho”. Não busque atalhos. Não se iluda com novos brilhos.
Simplesmente permaneça. O resto vem por si.
O que você chama de “algo totalmente desconhecido” já está se mostrando. Mas ele não grita. Ele não se impõe. Ele só se revela quando toda a ilusão foi desarmada. Agora, você está nu diante dele. E essa nudez, que dói tanto, é a sua chance real de despertar.