Para observar claramente, é
óbvio, é preciso ser livre para olhar. Se alguém se apega às suas experiências,
julgamentos e preconceitos particulares, então não é possível pensar com
clareza. A crise do mundo que está bem a nossa frente exige, reclama que
pensemos juntos de modo a podermos resolver o problema humano juntos, não de
acordo com alguma pessoa em particular, com um determinado filósofo ou guru.
Estamos tentando observar juntos.
(...) É muito importante entender
que a nossa consciência não é a nossa individual. A nossa consciência não é
somente a consciência específica de um grupo, da nacionalidade, e assim por
diante, mas é também toda a agonia humana, o conflito a miséria, a confusão e a
dor. (13)
(...) Vivemos com o conflito
desde que nascemos, e assim continuamos até a morte. Há luta constante para
ser, para ser alguma coisa espiritualmente, como se diz, ou psicologicamente,
tornar-se bem-sucedido no mundo, realizar-se — tudo isso é movimento do vir a
ser: eu agora sou isto e chegarei à meta final, ao princípio mais alto, tenha
esse princípio o nome de deus, de brahman ou qualquer outro nome. A luta
constante, seja para vir a ser ou para ser é a mesma. Mas quando alguém está
tentando vir a ser em várias direções, então está negando o ser. Quando você tenta ser, você também está se
tornando. Vejam este movimento da mente, do pensamento: eu acho que sou e,
estando insatisfeito, descontente com aquilo que sou, tento realizar-me em
alguma coisa, eu me dirijo em determinado objetivo; pode ser doloroso, mas
pensa-se que o fim é agradável. Há esta constante luta para ser e vir a ser.
Estamos todos tentando vir a ser;
fisicamente, queremos uma casa melhor, uma melhor posição, com mais poder, um
status mais elevado. Biologicamente, se não estamos bem, procuramos ficar bem.
Psicologicamente, todo o processo interior do pensamento, da consciência, toda a
propensão interior vem do reconhecimento de que na realidade nada somos e, pelo
vir a ser, nos afastamos disso. Psicologicamente, interiormente, há sempre a
fuga “do que é”, sempre o escapar daquilo que eu sou, daquilo pelo que estou
descontente para alguma coisa que irá me satisfazer. Seja essa satisfação
concebida como um grande contentamento, felicidade ou iluminação, o que é uma
projeção do pensamento, ou a aquisição de um maior conhecimento, ainda é o
processo de vir a ser — eu sou, eu serei. Esse processo implica tempo. O
cérebro é “programado” para isso.
Toda a nossa cultura, todas as nossas sansões religiosas, tudo diz: “torne-se”.
É um fenômeno que se pode constatar em todo o mundo. Não apenas neste mundo
ocidental, mas no Oriente todo mundo está tentando vir a ser, ou ser, ou evitar
ser. Agora: será esta a causa do conflito, interior e externamente? (14)
(...) O nosso cérebro está
programado para o conflito. Temos um problema que nunca fomos capazes de
resolver. Vocês podem escapar neuroticamente para alguma fantasia, ficar
totalmente contentes, ou podem imaginar que interiormente alcançaram alguma
coisa e ficarem totalmente contentes com isso; uma mente inteligente deve
questionar tudo isso, deve exercitar a dúvida, o ceticismo. Por que os seres
humanos, durante milhões de anos, desde o aparecimento do homem até o momento
presente, viveram em conflito? Nós aceitamos isso, nós toleramos isso; nós
dizemos que faz parte de nossa natureza competir, sermos agressivos, imitar,
nos conformarmos, dizemos que faz parte do eterno modelo da vida.
Por que o homem, que é tão altamente
sofisticado num sentindo, é tão completamente desinteligente em outros? O
conflito termina com o conhecimento? O conhecimento de si mesmo, ou do mundo, o
conhecimento da matéria, aprender mais a respeito da sociedade a fim de ter
melhores organizações e melhores instituições, adquirir cada vez mais
conhecimento. Isso solucionará o conflito humano? Ou a libertação do conflito
nada tem a ver com o conhecimento?
Temos um grande conhecimento do
mundo, da matéria e do universo; temos também um grande conhecimento histórico
de nós mesmos; esse conhecimento libertará o ser humano do conflito? Ou a
libertação do conflito nada tem a ver com a análise, com a descoberta das
várias causas e fatores do conflito? A descoberta analítica da causa, das
muitas causas, libertará o cérebro do conflito? Do conflito que temos enquanto
estamos despertos, durante o dia, e do conflito que prossegue enquanto estamos
dormindo? Podemos examinar e interpretar os sonhos, podemos discutir toda a
questão sobre por que os seres humanos sonham — isso solucionará o conflito? A
mente analítica, analisando com muita clareza, racionalmente, sensatamente a
causa do conflito porá fim ao conflito? Na análise, o analista tenta analisar o
conflito e, ao fazer isso, separa-se do conflito — isso solucionará o conflito?
Ou a liberdade nada tem a ver com quaisquer desses processos? Se vocês seguem
alguém que diz: “Eu lhes mostrarei o caminho, estou livre do conflito e vou
lhes mostrar o caminho”, isso os ajudará? Esta tem sido a parte do sacerdote, a
parte do guru, a parte do assim chamado homem iluminado: “Sigam-me, que eu lhes
mostrarei”, ou “Eu lhes apontarei o seu objetivo”. A história mostra isto
durante milênios e milênios e, no entanto, o homem não foi capaz de solucionar
o seu conflito, tão profundamente enraizado. (15)
(...) O cérebro, sendo programado
para o conflito, é aprisionado nesse modelo. Estamos perguntando se esse modelo
pode ser rompido imediatamente, não
gradualmente. Vocês podem pensar que podem rompê-lo por meio das drogas, do
álcool, do sexo, das diferentes formas de disciplina, entregando-se a alguma
coisa — o homem tentou mil modos diferentes de fugir do terror do conflito.
Agora, estamos perguntando: é possível para um cérebro condicionado romper esse
condicionamento imediatamente? (16)
(...) se examinarem o assunto
racionalmente, logicamente, com inteligência, verão que o tempo não solucionará
este condicionamento. A primeira coisa a perceber é que não há nenhum amanhã
psicológico. Se vocês olharem realmente, não verbalmente, mas profundamente nos
seus corações, nas suas mentes, na própria profundeza do seu ser, irão perceber
que o tempo não vai solucionar este problema. E isso quer dizer que vocês já
romperam com o modelo, já começaram a ver rachaduras no modelo do tempo que nós aceitamos como um meio para desenredar, para
fazer parar este cérebro programado. Os filósofos e os cientistas
afirmaram: o tempo é um fator de crescimento, biologicamente, linguisticamente,
tecnologicamente, mas nunca indagaram a natureza do tempo psicológico. Qualquer
indagação sobre o tempo psicológico implica todo o complexo do vir a ser
psicológico — eu sou isto, mas serei aquilo; estou infeliz, irrealizado,
desesperadamente só, mas amanhã serei diferente. Perceber que esse tempo é
fator de conflito, então, essa própria percepção é ação; realizou-se a decisão
— vocês
não têm que decidir — a própria percepção é a ação e a decisão. (17)
(...) Existe uma percepção, uma
percepção que não nasça da memória, do conhecimento, que veja toda a natureza e
estrutura do conflito? Uma percepção desse todo? Existe essa percepção? Não uma
percepção analítica, não uma observação intelectual dos vários tipos de conflito,
não uma resposta emocional ao conflito. Existe uma percepção que não seja feita
da lembrança, que é o tempo, que é o pensamento? Existe uma percepção que não
pertença ao tempo ou ao pensamento, que possa ver toda a natureza do conflito
e, com essa percepção, produzir o fim do conflito? O pensamento é tempo. O
pensamento é experiência, conhecimento formado no cérebro como memória. É o
resultado do tempo — “eu não sabia há uma semana, mas agora sei”. A
multiplicação do conhecimento, a expansão do conhecimento, a profundidade do
conhecimento, pertencem ao tempo. Assim, o pensamento é tempo — qualquer movimento
do psicológico é tempo... Assim, o pensamento é tempo. O pensamento e o tempo
são indivisíveis.
E nós estamos fazendo a seguinte
pergunta: existe uma percepção que não pertença ao tempo e ao pensamento? Uma
percepção inteiramente fora do modelo ao qual o cérebro se acostumou? Existe
isso, essa coisa que, talvez, por si irá solucionar o problema? Nós não
solucionamos o problema em um milhão de anos de conflito, estamos dando
continuidade ao mesmo padrão. Devemos descobrir, com inteligência, hesitantemente,
com cuidado, se há um modo, se há uma percepção que cubra todo o conflito, uma
percepção que rompa com este modelo. (18)
(...) Agora, podemos observar —
não importa o que — sem nomear, sem a lembrança?... Vocês alguma vez já
tentaram fazer isso diretamente? Olhem para a pessoa sem nomeá-la, sem o tempo
e a lembrança, e olhem também para vocês mesmos — para a imagem que construíram
de vocês mesmos, a imagem que construíram do outro; olhem como se estivessem olhando
pela primeira vez... Aprendam a olhar; aprendam a observar esta qualidade que
surge sem toda a operação do pensamento... Agora, podemos nós, juntos, ouvir ou
observar assim, sem a palavra, sem a lembrança, sem todo o movimento do pensamento?
Isto significa atenção completa, não a atenção de um centro, mas uma atenção
que não tem um centro. Se vocês possuem um centro através do qual prestam
atenção, esta é apenas uma forma de concentração. Mas se vocês estão prestando
atenção e não há um centro, isto significa que estão dando completa atenção;
nessa atenção não há nenhum tempo. (19)
(...) Nós estamos dizendo: para
romper com esse programa, com esse modelo, observem o movimento do pensamento.
Parece muito simples, mas vejam a lógica disso, a razão, a sensatez disso, não
porque o conferencista o diz, mas porque é sadio. Obviamente, deve-se exercer a
capacidade de ser lógico, racional e, ainda assim, conhecer as suas limitações,
porque o pensar racional, lógico, ainda faz parte do pensamento. Sabendo que o
pensamento é limitado, estejam cônscios dessa limitação e não o empurrem para
adiante, porque ele ainda será limitado, por mais longe que vocês vão, enquanto
que, se vocês observam uma rosa, uma flor, sem a palavra, sem nomear a cor, mas
apenas olham para ela, então esse olhar produz grande sensibilidade, quebra
esse sentido de densidade do cérebro e dá uma extraordinária vitalidade. Há uma
espécie de energia totalmente diferente quando há a percepção pura, que não
está relacionada com o pensamento e o tempo. (20)
Krishnamurti - 16 de julho de 1981
(13) A rede do pensamento – pág. 29
(14) A rede do pensamento – pág. 30-31
(15) A rede do pensamento – pág. 32-33
(16) A rede do pensamento – pág. 33
(17) A rede do pensamento – pág. 34
(18) A rede do pensamento – pág. 34-35
(19) A rede do pensamento – pág. 36-37
(20) A rede do pensamento – pág. 37-38