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quinta-feira, 5 de abril de 2018

No conhecimento da totalidade do "eu", o seu fim

No conhecimento da totalidade do "eu", o seu fim

Um dos mais difíceis problemas parece ser a questão de como operar uma transformação fundamental em nós mesmos. Pensamos, muitas vezes, que a transformação do indivíduo não importa e que devemos, antes, interessar-nos pela "massa", pelo todo. Acho completamente errônea essa ideia. Eu penso que a transformação deve começar pelo indivíduo — se tal entidade existe, "o indivíduo". Há necessidade de uma transformação essencial em vós e em mim. A modificação consciente, como se pode ver, não constitui transformação. O processo deliberado de automelhoramento, o cultivo deliberado de determinado padrão ou forma de ação, não produz a transformação real, porquanto tal modificação será mera projeção do nosso próprio desejo, nosso próprio fundo — uma reação. Todavia, quase todos temos muito interesse nesta questão da transformação, visto que estamos andando às cegas, estamos confusos. E aqueles que refletem seriamente deviam investigar a fundo esta questão de como promover a transformação de si próprios.

A dificuldade, ao que me parece, está em compreender o fato de que qualquer espécie de modificação, feita numa mente condicionada, só pode produzir um condicionamento diferente, e não uma transformação. Se eu, como hinduísta ou como cristão, procuro modificar-me dentro desse padrão, não se efetua nenhuma transformação real, e, sim, apenas um condicionamento talvez melhor, mais conveniente, mais adequado; mas fundamentalmente, não há transformação. A meu ver, um dos piores obstáculos que estamos enfrentando é esta ideia de que podemos transformar-nos dentro do padrão. Mas, sem dúvida, quando uma mente condicionada pela sociedade, por uma dada cultura, produz, conscientemente, alguma modificação dentro do padrão, tal modificação é ainda um processo de condicionamento. Bem esclarecido isso, acho que então a nossa investigação, visando a descobrir o que é transformação e como será possível produzir uma mudança radical em nós mesmos, torna-se altamente interessante, uma questão vital. Porque a cultura, isto é, a sociedade que nos rodeia, pode criar uma "religião", porém, nunca produzirá um homem religioso.

Agora, se posso desviar-me um pouco do assunto, interessa observar a forte reação que geralmente nos desperta a palavra "religião". Uns gostam dela, e a simples palavra lhes dá um sentimento de satisfação emocional; outros a repelem. Mas considero importante descobrir como escutar corretamente as palavras. Como é que escutamos? Vós ouvis a palavra "religião", e gostais ou não gostais desta palavra. Esta própria palavra atua como uma barreira à compreensão mais ampla, à ulterior investigação, por causa de nossa reação à palavra.

Mas pode-se escutar sem tal reação? Porque, se sabemos escutar sem reação, sem que nossos preconceitos, nossas peculiaridades, idiossincrasias, crenças, nos fechem o caminho, poderemos então, parece-me, ir muito longe. Dificílimo é, porém, desembaraçar-nos de nossos preconceitos, para darmos atenção completa a algo que se está dizendo. A atenção se torna estreita, exclusivista, quando meramente concentrada numa determinada ideia. Os mais de nós temos ideias, certos preconceitos, e, enquanto pensarmos segundo esta norma, podemos prestar "atenção", como o chamamos, mas, na realidade, essa atenção é uma forma de exclusão, que absolutamente não é atenção. O que desejo fazer-vos notar é que, para escutarmos realmente, devemos estar apercebidos de nossos próprios preconceitos, nossas próprias reações emocionais e neurológicas a uma determinada palavra, como sejam "Deus", "religião", "amor", etc., para nos desembaraçarmos de tais reações. Se soubermos escutar dessa maneira, escutar atentamente, sem estarmos à procura de uma dada ideia que confira com a nossa própria ideia, ou lhe seja contrária, acho que então estas palestras poderão ser frutuosas.

Como dizia, a cultura pode produzir religiões, mas não um homem religioso. E, em meu sentir, só um homem religioso é capaz de operar uma radical transformação dentro de si mesmo. Toda mudança, toda alteração, feita na mente condicionada por uma dada cultura, não constitui uma transformação real, e, sim, tão só a continuação da mesma coisa com modificações. Isso me parece bastante óbvio, se refletimos a seu respeito — isto é, que enquanto eu tiver o padrão hinduísta, cristão, budista, etc., qualquer mudança que eu opere dentro desse padrão representará uma mudança consciente, que faz parte, ainda, do padrão, não sendo, por conseguinte, transformação nenhuma. Surge aí a questão: posso operar a transformação por meio do inconsciente? Quer dizer: ou começo, conscientemente, a alterar o padrão do meu viver, minhas normas de pensar, a suprimir conscientemente os meus preconceitos — o que, tudo isso, constitui um mecanismo deliberado de esforço, visando a certo objetivo, certo ideal; ou procuro operar a modificação, esquadrinhando o inconsciente. Indubitavelmente esses dois métodos envolvem o problema do esforço. Vejo que preciso transformar-me — por várias razões, por "motivos" vários — e, conscientemente, começo a trabalhar neste sentido. Percebendo então — se reflito a respeito da coisa — que não se realiza uma verdadeira transformação, ponho-me a esquadrinhar o inconsciente, a penetrar-lhe as profundezas, na esperança de que, por vários métodos de análise, me seja possível operar uma mudança, uma modificação, ou um ajustamento mais profundo.

E, agora, pergunto a mim mesmo se esse esforço consciente e inconsciente para me transformar produz de fato transformação. Ou será necessário ultrapassar, tanto o consciente como o inconsciente, para que possa produzir-se uma mudança radical? Como sabeis, tanto o desejo consciente como o impulso inconsciente, para modificar, implicam esforço. Se examinardes muito profundamente esta questão, vereis que, ao desejarmos transformar-nos, há sempre aquele que faz o esforço e, também, aquilo que é estático — a coisa sobre a qual o esforço se exerce. Assim, nesse processo de se desejar operar modificação — consciente ou inconscientemente — há sempre pensador e pensamento: aquele que diz "Preciso transformar" e o estado que ele deseja transformar. Há, pois, dualidade; e estamos sempre, estamos perenemente procurando lançar uma ponte sobre esse vão por meio de esforço. Vejo que há em mim, no consciente e no inconsciente, a entidade que faz esforço, e aquilo que ela deseja modificar. Há uma divisão entre o que sou e o que desejo ser. Isto significa: divisão entre o pensador e o pensamento, e daí o conflito. E o pensador está sempre tentando vencer este conflito, consciente ou inconscientemente. Estamos bem familiarizados com esse "mecanismo", pois é isso que estamos fazendo constantemente. Toda nossa estrutura social, nossa estrutura moral, nossos ajustamentos, etc., baseiam-se em tal "mecanismo". Mas isso produz transformação? Se não produz, não deve então a transformação ser operada num nível completamente diferente, que não se acha nem no campo do consciente nem no campo do inconsciente? Sem dúvida, todo o campo mental — o consciente e o inconsciente — está condicionado pela nossa particular cultura. Isto é bastante óbvio. Enquanto eu for hinduísta, budista, cristão, etc., a própria cultura em que fui criado, educado, condiciona todo o meu ser. O meu ser total é tanto o consciente como o inconsciente. No campo do inconsciente se acham todas as tradições, o resíduo, assim o herdado como o adquirido, de todo o passado do homem, e eu estou tentando modificar-me no campo do consciente. Tal modificação só pode ser feita de acordo com meu condicionamento, e, por conseguinte, nunca produzirá liberdade. É bem óbvio, pois, que a transformação é uma coisa totalmente independente da mente; ela deve estar num nível completamente diferente, numa diferente profundidade, numa altura diferente.

Como posso então transformar-me? Percebo, ou pelo menos entrevejo, a verdade de que uma mudança, uma transformação, deve começar num nível que a mente, como consciente ou inconsciente, não pode alcançar, visto que minha consciência, como um todo, está condicionada. Que devo então fazer? Espero que esteja fazendo claro o problema. Posso enunciá-lo de maneira diferente: pode a minha mente, tanto a consciente como a inconsciente, tornar-se livre da sociedade? — sendo sociedade a educação, a cultura, a norma, os valores, os padrões. Não sendo livre, qualquer modificação que ela tente efetuar dentro desse estado condicionado, é sempre limitada e, por conseguinte, não é transformação. Se percebo a verdade a esse respeito, que deve a mente fazer? Se digo que ela deve tornar-se quieta, então esse próprio "tornar-se quieta" faz parte do padrão, é produto do meu desejo de efetuar uma transformação num nível diferente.

Assim sendo, posso prestar atenção, sem ter motivo algum? Pode a minha mente existir sem nenhum incentivo, nenhum "motivo" para transformar-me ou não transformar-me? Porque todo motivo resulta da reação de uma determinada cultura, produto de um determinado fundo. Pode, então, a minha mente ficar livre da cultura sob cuja influência fui educado? Esta é, com efeito, uma questão muito importante. Porque, se a mente não está livre da cultura em que foi criada, nutrida, o indivíduo, sem dúvida, nunca estará em paz, nunca terá liberdade. Seus deuses e seus mitos, seus símbolos e todos os seus empreendimentos são limitados, porque pertencem ao campo da mente condicionada. Quaisquer esforços que faça, ou não, dentro deste tão limitado campo são, em verdade, fúteis, no sentido mais profundo da palavra. Poderá haver melhor decoração da prisão — mais luz, mais ventilação, mais alimento —, mas é sempre a mesma prisão de uma determinada cultura. Pode, pois, a mente, tornando-se cônscia de sua totalidade, e não só das camadas superficiais ou de certas profundidades — pode a mente alcançar aquele estado em que a transformação não resulta de esforço consciente ou inconsciente? Se está clara esta questão, manifesta-se, então, a reação ao problema: como alcançar um tal estado? Ora, a própria pergunta "como?" é mais uma barreira. Porque o "como" implica a busca e a prática de certo sistema, certo método, os "passos" que se devem dar para se chegar àquela transformação.

Compreendeis? O "como" implica o desejo de alcançar, a ânsia de realizar; e esta própria tentativa de ser uma coisa deriva de nossa sociedade, que é aquisitiva, invejosa. E estamos, assim, de novo na armadilha. Nessas condições, que deve fazer a mente? Percebo a importância da transformação. E percebo que toda modificação, em qualquer nível da mente consciente ou inconsciente, não representa transformação nenhuma. Se compreendo realmente isso, se percebo a verdade respectiva — isto é, que enquanto existe entidade que faz esforço, o pensador, o "eu", que quer alcançar um resultado, tem de haver divisão e, portanto, o desejo de efetuar uma ligação, uma integração dos dois, o que torna inevitável o conflito. Se percebo tal verdade, que acontece?

Eis o problema: percebo que todo esforço que faço, dentro da esfera do pensar — a esfera tanto do consciente como do inconsciente — produz separação, dualidade, e por conseguinte conflito? Se percebo esta verdade, que acontece? Tenho eu então, tem a mente consciente ou a mente inconsciente, de fazer alguma coisa? Vede, por favor, que isto não é nenhuma filosofia oriental de inação, não significa entregar-se a certo "transe" misterioso. Pelo contrário, requer muita reflexão, penetração, investigação. Esse estado só pode ser atingido pela compreensão do consciente e do inconsciente, e não pelo dizermos, apenas: "Pois bem, não pensarei mais; e então acontecerão coisas". Não acontecerá coisa nenhuma. Daí a importância do autoconhecimento. Não o autoconhecimento de acordo com certo filósofo, certo psicanalista, grande ou pequeno, pois isto será mera imitação; é o mesmo que ler um livro e querer ser o livro; não é autoconhecimento. Autoconhecimento é o descobrir, de fato, em si mesmo, o processo do próprio pensar, do próprio sentir, dos próprios motivos e reações — o verdadeiro estado em que nos achamos, e não um estado desejado.

Eis porque muito importa tenhamos conhecimento de nós mesmos, como quer que sejamos: feios, bons, maus, belos, joviais — tudo o que somos; conhecimento de nosso condicionamento superficial e bem assim do condicionamento inconsciente, mais profundo, de séculos de tradição, de anseios, compulsões, imitações; compreensão, experiência direta da totalidade, pelo autoconhecimento. Acho que então se descobrirá que tanto a mente consciente como a inconsciente não mais farão movimento algum para realizar a transformação; mas ocorrerá uma mudança, ocorrerá uma transformação, num nível de todo diferente, a uma altura e uma profundidade inatingíveis pela mente consciente e pela mente inconsciente. A transformação tem de começar aí, e não no nível consciente ou inconsciente, oriundos de uma cultura. Por esta razão é muito importante estarmos livres da sociedade, mercê do autoconhecimento. Então, depois de ter cessado todo esse mecanismo de reconhecimento pela sociedade e quando a mente já não se preocupa com reformas, deve verificar-se uma transformação radical, inatingível pela mente consciente ou inconsciente; e, em virtude dessa transformação, será possível criar uma sociedade diferente, um Estado diferente. Mas esse Estado, essa sociedade, não podem ser preconcebidos — deverão surgir das profundezas do autodescobrimento.

Assim sendo, o que me parece importante é essa investigação do "eu", de "mim", para se conhecer o "eu" tal qual é, com suas ambições, invejas, exigências agressivas, falácias, divisão em "superior" e "inferior" — de tal maneira que não só seja revelada a mente consciente, mas também a inconsciente, o repositório da antiga tradição, dos séculos de depósitos de toda sorte de experiências. O conhecimento da totalidade do "eu" significa o seu fim. Então a mente, já que não mais está preocupada com a sociedade, com reconhecimento, com reformas, nem mesmo com a transformação de si própria, descobre que há uma mudança, uma transformação não proveniente de um esforço deliberado visando a um resultado.

Krishnamurti, Quarta Conferência em Londres, 24 de junho de 1955

Só e mente religiosa é revolucionariamente criadora


Só e mente religiosa é 
revolucionariamente criadora

PERGUNTA: Desejo que meu filho seja livre. A verdadeira liberdade é incompatível com a lealdade à tradição inglesa de vida e de educação?

KRISHNAMURTI: Isto é o que se diz na Índia também: posso ser hindu, leal à minha pátria, e ao mesmo tempo estar livre para achar Deus? Posso ser hinduísta, budista ou cristão, e ao mesmo tempo ser livre? É possível isto? Eu posso ter um passaporte, um pedaço de papel, para viajar; mas isso não me faz necessariamente hindu. A liberdade, por certo, é de todo incompatível com qualquer nacionalidade, qualquer tradição. Há o estilo de vida americano, o estilo de vida inglês, o estilo de vida russo, e o estilo de vida hindu. Cada um diz "Nosso estilo de vida é o único que convém", apegando-se tenazmente a esse estilo. E, no entanto, todos falamos de liberdade e de paz. Acho que tudo isso tem de desaparecer, se desejamos criar um mundo diferente, um mundo que seja nosso, um mundo sem comunismo, socialismo, capitalismo, hinduísmo ou cristianismo. A Terra é o nosso mundo, onde devemos viver, não divididos: viver felizes, livres. Mas não poderá ser nosso o mundo enquanto existirem ingleses, hindus, alemães, comunistas etc.; dessa maneira, nunca seremos livres.

Só poderá surgir a liberdade quando formos verdadeiramente religiosos, quando cada um de nós for realmente um indivíduo, no exato sentido da palavra. Quando formos religiosamente livres, poderemos então criar um mundo que será nosso e, por conseguinte, dar aos jovens uma educação diferente, e não meramente condicioná-los segundo uma determinada cultura, encaixá-los num determinado sistema, educá-los para serem comunistas, ateístas, católicos, protestantes ou hinduístas; tais indivíduos não são livres, e por conseguinte não são verdadeiramente religiosos: estão simplesmente condicionados; e são causadores de tanta miséria! Está visto pois que, se desejamos criar um mundo totalmente diferente, faz-se necessária uma revolução religiosa que não seja retrocesso a certa crença, nem avanço para certa realização, mas a libertação de todas as tradições, dogmas, símbolos, crenças, a fim de que cada um seja um verdadeiro indivíduo, livre para descobrir, para investigar o imensurável.

PERGUNTA: A mente ocidental é exercitada para a contemplação do objeto; a mente oriental para a meditação sobre o sujeito. A primeira conduz à ação, a outra à inação. Só pela integração dessas duas direções do percebimento, no indivíduo, poderá surgir uma compreensão total da vida. Qual a chave dessa integração?

KRISHNAMURTI: Porque separamos um ente humano, dizendo-o do Ocidente ou do Oriente? Não há uma maneira toda diferente de se considerar este problema, a qual não consista em mera tentativa de integrar a ação com a meditação? Considero tal integração uma impossibilidade. Talvez haja uma maneira diferente de nos abeirarmos deste problema, em lugar dessa tentativa de integrar a ação com um estado de espírito desprendido, que só observa, contempla. Dividimos a vida em ação e inação, e agora buscamos a integração. Mas, se não nos dividirmos a nenhum respeito, se pudermos eliminar do nosso pensar essa ideia de Oriente em oposição à de Ocidente, para considerarmos o problema de modo diverso, então, buscando a realidade, a mente se torna criadora, e, no percebimento mesmo daquilo que é real, há ação, que é contemplação; não há divisão alguma. Para a mentalidade ocidental, o Oriente, com seu misticismo, seus absurdos, é estranho. No Ocidente, devido ao clima frio, às várias formas de revolução industrial etc., o indivíduo tem de ser ativo, e tratar de ter muitas roupas. No Oriente, onde o clima é cálido e se necessita de muito pouca roupa, o indivíduo tem tempo, lazeres; e, lá, há também a velha tradição de que se tem de renunciar à sociedade para se achar o real.

Aqui viveis completamente interessados em reformas, melhores condições, uma vida melhor. Como podem integrar-se estas duas mentalidades? As duas maneiras de proceder podem ser falsas, e têm de sê-lo, sem dúvida, quando se dá exagerada importância a uma e se despreza a outra. Mas, se tentarmos achar a realidade, sem a buscarmos como um grupo de cristãos, mas como indivíduos independentes de qualquer autoridade, então essa própria busca é criadora, e essa capacidade criadora produz sua ação própria. Se não buscarmos essa liberdade religiosa, todas as reformas só poderão levar-nos a piores infortúnios, como se está vendo em toda parte. Pode-se ter paz pelo terror; mas haverá guerras interiores de todos contra todos, competição, crueldade, a busca do poder, pelo grupo ou pelo indivíduo. Só os que são religiosos, no sentido mais profundo desta palavra, os que se emanciparam de toda e qualquer autoridade espiritual, que não pertencem a nenhuma igreja, nenhum grupo, não se deixaram identificar com nenhuma doutrina particular, que estão perenemente buscando, indagando, sem nunca acumularem experiência alguma, só esses indivíduos são verdadeiramente criadores. Sua mente é a única mente religiosa e, portanto, revolucionária; e ela atuará sem se separar como mente contemplativa ou mente ativa, porque tal indivíduo é um ente completo, total.

Krishnamurti, Terceira Conferência em Londres, 19 de junho de 1955

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Uma mente não mais perturbada pela ignorância

É sobremodo difícil compreender os meandros e as complexidades das relações humanas. Mesmo quando temos muita intimidade com uma pessoa, é muitas vezes dificílimo e quase impossível conhecer-lhes os verdadeiros sentimentos e pensamentos. Isso se torna menos difícil quando há afeição, quando há amor entre duas pessoas, porque há então comunhão imediata, simultânea e no mesmo nível; mas essa comunhão é negada, quando ficamos apenas discutindo ou apenas ouvindo no nível verbal. É dificílimo estabelecer essa comunhão entre eu e você, porque não há comunhão, não há verdadeiro entendimento entre nós. 

A comunhão deixa de existir quando há temor ou preconceito, porque nesse caso entra em funcionamento o mecanismo de defesa. Talvez eu veja as coisas de maneira diferente daquela a que você está habituado, e desejo estar em comunhão com você, desejo comunicar-lhe o que vejo. Posso não ver com exatidão ou de maneira completa; mas, se deseja examinar o que estou lhe comunicando, deve, de sua parte, estar aberto, receptivo. 

Não estou me ocupando com ideias. As ideias, para mim, não têm significação alguma. Ideias não produzem revolução, ideias não produzem regeneração; e é a regeneração que é essencial. A comunicação de ideias é relativamente fácil, mas o comungarmos uns com os outros, além do nível verbal, é sobremaneira difícil. 

O que devemos estabelecer entre nós não é uma comunhão imaginária, uma comunhão mística, mas uma comunhão que só é possível quando nós dois estamos seriamente interessados em descobrir a verdade que resolverá nossos problemas. Quanto a mim, creio em uma realidade que existe de momento em momento e que, absolutamente, não se encontra na esfera do tempo. Essa realidade representa a única solução aos múltiplos problemas da nossa vida. Quando uma pessoa percebe essa realidade, ou quando ela surge, ele é um fator de libertação; mas nenhuma soma de argumentação intelectual, de disputa, de conflito econômico, social ou religioso, resolverá os problemas gerados pela mente. 

Para haver comunicação temos que comungar uns com os outros, e para tal precisamos estar abertos e receptivos, não aceitando nem negando, mas investigando.  Você e eu estamos em relação, não estamos vivendo isoladamente. A verdade não é algo separado do estado de relação. As relações constituem a sociedade, e na compreensão das relações entre você e a sua esposa, entre você e a sociedade, você encontrará a verdade, ou melhor, a verdade virá até você, trazendo-lhe a libertação de todos os problemas. Você não pode achar a verdade; deve deixá-la vir até você; e para que isso aconteça requer-se uma mente não mais perturbada pela ignorância.

Ignorância não significa a falta de conhecimentos técnicos, a falta de leitura de muitos livros filosóficos: ignorância é a falta de conhecimento próprio. Ainda que uma pessoa tenha lido muitos livros filosóficos e sagrados e seja capaz de citá-los, essas citações, que representam uma acumulação de palavras e experiências alheias, não libertam a mente da ignorância. Surge o autoconhecimento ao investigarmos e experimentarmos as tendências dos nossos próprios pensamentos, sentimentos e atos, o que significa estarmos cônscios de nosso "processo" total, nas relações, instante por instante. 

O autoconhecimento, do qual trataremos mais adiante, dá-nos a exata perspectiva de qualquer de nossos problemas, e a exata perspectiva é a compreensão da verdade contida no problema; e essa compreensão, inevitavelmente, produzirá ação, nas relações. Por conseguinte, o autoconhecimento não se opõe à ação, não a nega. O autoconhecimento revela a perspectiva correta, ou seja a verdade contida no problema, da qual resulta a ação — essas três coisas estão sempre relacionadas entre si; não são separadas. Não há ação verdadeira sem autoconhecimento. Se não me conheço a mim mesmo, é óbvio que não tenha base para a ação; o que faço é uma mera atividade, reação de uma mente condicionada, e portanto sem significação. Uma reação condicionada não pode nos libertar nem colocar ordem no caos. 

Ora, o mundo e o indivíduo são um "processo" único, não são opostos uma ao outro; e o homem que está tentando resolver seus próprios problemas, que são os problemas do mundo, necessita evidentemente de uma base para o seu pensar. Acho bastante claro isso. Se não me conheço a mim mesmo, falta-me a base para pensar; se, desconhecendo-me a mim mesmo, ponho-me em atividade, essa atividade só poderá gerar sofrimentos e confusão — exatamente o que está sucedendo no mundo, nos tempos atuais. 

Nessas condições, a investigação que nos leva ao autoconhecimento não é um processo de isolamento, não é uma fantasia nem luxo de asceta. Pelo contrário, é uma necessidade evidente para o homem do mundo, para o pobre e o rico, e para aquele que deseja resolver os problemas do mundo. Julgo importantíssimo compreender que este mundo é produto de nossa existência diária, e que o ambiente criado por nós não é independente de nós. O ambiente existe, e não podemos transformá-lo sem nos transformarmos a nós mesmos; e para isso, devemos compreender os nossos pensamentos, sentimentos e atos, na vida de relação. 

Os economistas e os revolucionários querem alterar o ambiente sem alterar o indivíduo; mas a simples alteração do ambiente, sem a compreensão de nós mesmos, não tem significação alguma. O ambiente é produto dos esforços do indivíduo, estando um e outro relacionados entre si; não se pode alterar um deles, sem alterar também o outro. Você e eu não estamos isolados; somos o resultado do "processo" total, o produto de toda a humanidade, quer vivamos na Índia, no Japão ou na América. A soma de toda a humanidade sou eu e você. Podemos estar conscientes ou inconscientes desse fato. Para se realizar uma transformação revolucionária na estrutura da sociedade, deve cada indivíduo compreender-se a si mesmo como um "processo" total, e não como uma entidade separada, isolada. 

(...) Mas deve ficar bem claro, para o homem que sente real interesse, que não pode haver uma revolução completa no mundo num nível único, econômico ou espiritual. Uma revolução total, uma revolução fecunda, só será possível se você e eu nos compreendermos como um "processo" total. Você e eu não somos indivíduos isolados, mas, sim, o resultado de toda a luta da humanidade, com suas ilusões, suas fantasias, desejos, ignorância, diferenças, conflitos e misérias. Não podemos começar a alterar as condições do mundo antes de termos compreendido a nós mesmos. Se você perceber isso, dar-se-á, dentro de você, imediatamente, uma completa revolução. Então, é desnecessário o guru, porque o autoconhecimento se processa minuto por minuto: não é uma acumulação de coisas ouvidas de outrem, nem se encerra nos preceitos dos religiosos.

Quando o indivíduo está descobrindo-se a si mesmo, instante por instante, em suas relações com outras pessoas, essas relações assumem significado inteiramente diverso. As relações transformam-se em revelação, em constante "processo" de autodescobrimento; e desse autodescobrimento resulta a ação.

(...) O mero citar de autoridades não representa autoconhecimento, descobrimento do "processo" do "eu", e por conseguinte, de nada vale. Você tem de começar como se nada soubesse, pois só assim realizará um descobrimento fecundo e libertador; só assim encontrará, com seu descobrimento, a felicidade e a alegria. Mas nós, a maioria de nós, vivemos de palavras; e as palavras, tal como a memória, são produto do passado. Um homem que vive no passado não pode compreender o presente.

(...) Enquanto não nos compreendermos a nós mesmos, caminharemos sempre de um conflito para outro. Nada se pode criar quando há conflito; a criação só é possível quando cessa o conflito. Para um homem que vive numa batalha constante consigo mesmo e com seu próximo, nunca haverá a possibilidade de regeneração — ele só pode ir de reação em reação. Só pode vir a regeneração quando estamos livres toda reação, e essa liberdade só pode nascer do autoconhecimento.

Krishnamurti em, A ARTE DA LIBERTAÇÃO

sábado, 27 de setembro de 2014

Sobre a urgência de uma transformação profunda

Nós, geralmente falando, não queremos a revolução central e, sim, apenas, mudanças exteriores — queremos uma situação econômica melhor, mais riqueza, mais conforto, mais prosperidade, mais luxo, e uma maior variedade de entretenimento e distrações. 

É isso o que interessa para a maioria de nós. Ou, trocamos uma especialidade por outra, uma religião por outra, um dogma por outro; o que significa, simplesmente, passar de uma gaiola velha para uma gaiola nova. 

E se temos disposição séria, falamos sobre a necessidade de abolir a guerra — o que, mais uma vez, significa cogitar sobre a maneira de produzir modificações no exterior. 

As pesquisas científicas, as reformas sociais, os ajustamentos políticos, tudo isso — assim como as várias religiões e sociedades sectárias — só diz respeito a modificações exteriores. 

Ora como produzir uma transformação no centro? Este é o problema da maioria de nós, não acham? Se estamos seriamente intencionados e reconhecemos quanto é superficial andarmos só em busca de um emprego melhor ou de uma solução imediata para os nossos problemas econômicos, políticos, ou religiosos, desejaremos naturalmente saber se é possível efetuar-se uma transformação no centro, a qual por sua vez, produza uma transformação em nossas relações com a família, com os companheiros, enfim, com a sociedade. 

(...) Temos tentado durante anos reformar-nos exteriormente, procuramos transformar as nossas maneiras, pensamentos, conduta, nossa sociedade, e daí não resultou nenhuma mudança radical, nenhuma libertação de forças criadoras; e assim me parece que, sem essa profunda revolução interior, central, será vão todo esforço que empregarmos para modificar as coisas exteriores. 

Nossos esforços poderão produzir modificações momentaneamente satisfatórias; entretanto, se a revolução não for efetuada no centro, a mera alteração da circunferência, da parte externa, é muito pouco significativa e poderá, eventualmente, conduzir a malefícios maiores ainda. 

Compreendendo isso, averiguemos como se pode efetuar essa transformação, essa revolução no centro. 

O que é esse centro? Ora, é a mente; e nós vamos averiguar se a mente pode modificar-se, se pode produzir em si mesma uma revolução interior. 

A mente, como ó óbvio, é constituída de níveis conscientes e níveis inconscientes; e todo esforço da mente consciente para se modificar está sempre compreendido na esfera exterior. 

(...) A maioria de nós conhece o esforço consciente de modificar, de disciplinar a mente, e,  por esse motivo, o que chamamos modificação representa uma operação parcial, e não uma revolução total. E eu estou me referindo à revolução total, integral, e não à ação parcial, de superfície; e essa revolução total não pode verificar-se por meio de nenhum esforço consciente de nossa parte. 

Sabemos o que é a consciência, estamos bem familiarizados com a mente consciente que pensa e deseja, movida pelo impulso, pela intenção, e determina o ajustamento. A mente consciente está sempre forcejando em determinado sentido, ou para ajustar-se pelo temor, ou ainda pelo temor, transforma-se, a fim de adaptar-se a outro padrão de ação. 

Por conseguinte, todo esforço visante a uma modificação é um ajustamento sob a influência do temor, do desejo de termos bom êxito ou do desejo de nos tornarmos melhores, para alcançarmos um certo resultado, seja neste mundo, seja no mundo da santidade. 

É urgentemente necessária uma revolução profunda, mas, é óbvio, essa revolução deve ser inconsciente; pois, se produzo deliberadamente uma revolução em mim mesmo, essa revolução será resultado de desejo. Desejo tornar-me melhor, conseguir um resultado, descobrir o que é Deus, o que é a Verdade, ser mais feliz; por isso digo que há necessidade de transformação. 

O esforço positivo ou negativo, o esforço para ser ou para não ser, se baseia no temor, na ânsia de ganho, de conforto, de paz, segurança; assim, pois, toda modificação operada por esforço consciente não é verdadeira transformação, e, sim, puro ajustamento a um padrão diferente. A esse respeito, temos de perceber a verdade completamente

Como todas as revoluções econômicas, quer da direita, quer da esquerda, o esforço consciente não produz nenhuma transformação no centro. Ambas as coisas só produzem tiranias. O sábio, portanto, não se preocupa essencialmente com modificações periféricas: interessa-lhe só a revolução interior, a revolução que opera no centro. E como iremos, vocês e eu, produzir essa transformação?(...) Como então efetuar essa revolução no centro?  vemos que o esforço deliberado e consciente do nosso pensamento ordinário não pode realizá-la. E pode o inconsciente fazê-la?(...) O inconsciente é o resíduo do passado, não é exato? É o resultado dos instintos raciais, das impressões culturais, de tudo o que fomos no passado, de toda a luta do homem contra seus ocultos intentos, compulsões e ímpetos. 

Pode esse inconsciente ajudar-nos a operar uma modificação, uma revolução no centro? E existe alguma diferença, algum intervalo ou hiato entre o inconsciente e o consciente?

Krishnamurti em, PERCEPÇÃO CRIADORA

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O homem religioso não se interessa por reforma social

O que entendemos por um homem religioso? Por certo, o homem religioso é o que trabalha para libertar o indivíduo e a si próprio de todas as crueldades e sofrimentos da vida — o que significa que ele é livre de crenças. Esse homem não obedece nenhuma autoridade, não segue a ninguém, porque ele é a luz de si mesmo; e essa luz irradia do autoconhecimento, é a libertação que vem à existência quando o indivíduo compreende completamente a si mesmo. O homem religioso é aquele que é criador, não no sentido de pintar quadros ou escrever poesias, mas porque nele atua uma força de criação imorredoura, eterna. 

Ora, esse homem religioso que descobre sempre coisas novas, de momento a momento, esse homem irá se ocupar com reformas sociais? Ou permanecerá fora da sociedade, socorrendo o indivíduo que se debate nesta luta interminável? Certo, o homem religioso permanece fora da sociedade, porque para ele não existe autoridade. Ele não busca resultados e, por conseguinte, os resultados surgem sem que ele nada faça para consegui-los. Esse homem não se interessa por nenhuma reforma social. 

Note bem: A reforma social é necessária, mas há muita gente trabalhando pela reforma social. E qual é a razão dessa atividade? É por amor que a ela se entregam? Ou essa atividade, a que chamam reforma social, é um meio de essas pessoas se preencherem a si mesmas? Notar o mendigo na rua, ver a aterradora pobreza e a degradação existente nas aldeias, e sentir isso, ter amor, paixão, compaixão, pelo mendigo, pelo aldeão, isso não é o mesmo que nos preenchermos numa atividade de reforma social — mesmo quando exerçamos atividades dessa natureza. Mas quando a sua pessoa se torna importante, numa atividade social, isto não acontece porque você está se preenchendo com tal atividade? E quando isso acontece, você já não ama; e o amar, o ter compaixão, o ser sensível ao belo e ao feio, isso é muito mais importante do que nos preenchermos num certo trabalho ostensivo, a que chamamos reforma social. 

Assim, o homem religioso é que é o verdadeiro revolucionário, e não o que quer realizar uma revolução no sentido econômico. O homem religioso não reconhece nenhuma autoridade, não é ávido nem ambicioso, não está visando a resultados, não é político; por conseguinte só ele é capaz de realizar a reforma correta. Eis porque é importante que todos nós, não como grupos, mas como indivíduos, nos libertemos imediatamente das crenças e dogmas, da avidez e da ambição. Se assim proceder, verá como a mente se tornará cheia de vitalidade. E o homem é então um reformador num sentido completamente diferente, porque irá nos ajudar a libertar a mente, para descobrir a ser criadora. A mente que está ocupada não pode ser criadora. A mente que se ocupa em preencher a si mesma, nunca descobrirá o desconhecido. Só a mente que se acha completamente desocupada, pode descobrir e compreender o eterno, e essa mente produzirá sua ação peculiar, na sociedade.

Krishnamurti em, DA SOLIDÃO À PLENITUDE HUMANA

sexta-feira, 11 de julho de 2014

A verdadeira revolução - II

Em todas as nossas relações - com pessoas, com a natureza, com idéias, com coisas - parece que criamos cada vez mais problemas. Se tentamos resolver um problema - econômico, político, social, coletivo ou individual - fazemos surgir grande número de novos problemas. De algum modo, parece que criamos cada vez mais conflito, e estamos cada vez mais necessitados de reforma. É bem evidente que toda reforma torna necessárias novas reformas, sendo, por conseguinte, um verdadeiro retrocesso. Enquanto a revolução, seja da esquerda, seja da direita, for apenas a continuidade do que foi, em referência ao que será, ela também é retrocesso. Só pode haver uma revolução fundamental, uma constante transformação interior, quando nós, como indivíduos, compreendermos nossas relações com a coletividade. A revolução deve começar em cada um de nós, e não nas influências exteriores, nas influências ambientes. Nós, afinal, somos a, coletividade; tanto o nosso consciente, como o inconsciente são o resíduo de todas as influências políticas, sociais e culturais do homem. Por conseguinte, para se realizar, exteriormente, uma revolução fundamental, torna-se necessária uma transformação radical em nosso interior, uma transformação independente de qualquer modificação do ambiente. A revolução deve começar em vós e em mim. Todas as grandes coisas começam em escala pequena, todos os grandes movimentos começam em vós e em mim como indivíduos; e se esperamos pela ação coletiva, essa ação coletiva, se vem a realizar-se, é destrutiva e conducente a mais sofrimentos.

Vemos, pois, que a revolução deve começar, em vós e em mim. Essa revolução, essa transformação individual, só pode realizar-se quando compreendemos as nossas relações, que constituem o "processo" do autoconhecimento. Sem conhecer integralmente o "processo" das minhas relações, nos seus diferentes níveis, o que penso e o que faço nenhum valor têm. Que base tenho eu para pensar, se não conheço a mim, mesmo? Temos tanto desejo de agir, tanto empenho em fazer, alguma coisa, em realizar alguma espécie de revolução, alguma espécie de melhoria, alguma modificação no mundo; mas sem conhecermos o nosso próprio funcionamento (processo), tanto na periferia como no interior falta-nos toda base para a ação e o que fazemos não pode deixar de criar mais sofrimento e mais luta. A compreensão de nós mesmos não se consegue pelo processo de nos retirarmos da sociedade, ou de nos recolhermos a uma torre de marfim. Se vós e eu nos dedicarmos a estudar o assunto com toda a atenção e de maneira inteligente, veremos que só podemos compreender a nós mesmos em relação e não no isolamento. Ninguém pode viver no isolamento. Viver é estar em relação. É só no espelho das relações que compreendo a mim mesmo - o que significa que devo estar sempre sobremodo atento, em todos os meus pensamentos, sentimentos e ações, na vida de relação. Não constitui isso um processo difícil nem empresa sobre-humana; e, como acontece com todos os rios, se bem que a nascente seja quase imperceptível, as águas vão ganhando ímpeto, no seu curso, à medida que se vão aprofundando. Se, neste mundo louco e caótico, vos empenhardes naquele processo, avisadamente, com atenção, e com paciência, sem condenar, vereis como ele começa a ganhar ímpeto, independentemente da questão de tempo.
A verdade existe minuto por minuto, na vida de relação, e temos de vê-la em cada ato, cada pensamento e cada sentimento que surge, em nossas relações. A verdade não é coisa que se possa acumular, armazenar; temos de achá-la de novo, no pensamento e no sentimento, a cada instante - o que não representa um processo acumulativo e, por conseguinte, não depende do tempo. Quando dizeis que, com o tempo, compreendereis, graças à experiência ou ao saber, estais justamente impedindo a compreensão, porque esta não resulta de acumulação alguma. Podeis acumular saber, mas isso não é compreensão. A compreensão surge quando a mente está livre do conhecimento. Quando a mente não exige a satisfação de desejos, quando não procura experiência, há tranqüilidade; e quando a mente está tranqüila, só então haverá compreensão. Só quando vós e eu estamos verdadeiramente dispostos a ver claramente as coisas tais como são, é que se nos oferece a possibilidade de compreensão. A compreensão vem, não por meio de disciplinamento, não por meio da compulsão, de coerção, mas, sim, quando a mente está tranqüila e disposta a ver as coisas com lucidez. A serenidade da mente nunca se pode conseguir por meio da compulsão, sob qualquer forma, consciente ou inconsciente; tem de ser espontânea. A liberdade não está no fim, mas no começo; porque o fim e o começo não são diferentes, o meio e o fim são idênticos. O começo da sabedoria é a compreensão do processo total de nós mesmos, e esse autoconhecimento, essa compreensão, é meditação.

Krishnamurti - Madrasta, 5 de fevereiro de 1950
Do livro: Que estamos buscando? - ICK

A verdadeira revolução

VERIFIQUEMOS qual é a situação do indivíduo na sociedade, se o indivíduo pode contribuir para uma transformação radical da sociedade; se a entidade transformada, o ser humano inteligente que logrou transformar-se fundamentalmente, tem alguma influência, se pode atuar de alguma maneira na corrente dos acontecimentos; ou se o indivíduo de que falo, a entidade transformada, nada pode fazer, ele próprio, mas pode, pela mera circunstância de sua existência, injetar alguma espécie de ordem na sociedade, na corrente do caos e da confusão. Vemos como no mundo inteiro a ação em massa obviamente produz resultados. Percebendo isso, vem-nos o sentimento de que a ação individual é muito insignificante, que vós e eu, ainda que transformemos a nós mesmos, muito pouca influência podemos ter; e, assim, perguntamo-nos o que valemos nós, uma vez que somos impotentes para influir na corrente.

Ora, por que pensamos com referência à massa? As revoluções fundamentais são produzidas pela, massa, ou são elas iniciadas por uns poucos indivíduos de visão que, pelo seu verbo e sua energia, influenciam grande número de pessoas? É assim que nascem as revoluções. Não é um erro julgar que nós, como indivíduos, nada podemos fazer? Não é um engano supor que todas as revoluções fundamentais são produzidas pela massa? Por que pensamos que os indivíduos não têm importância como indivíduos? Como tal atitude mental, nunca pensaremos por nós mesmos, e reagiremos sempre automaticamente. A ação é sempre da massa? Ela não brota, essencialmente do indivíduo, comunicando-se, depois, de indivíduo a indivíduo? Não existe realmente essa coisa chamada massa. Afinal de contas, a massa é uma entidade constituída de pessoas que estão enredadas, hipnotizadas por palavras, por certas idéias. Quando não estamos hipnotizados por palavras, estamos à margem da corrente - coisa de que nenhum político haveria de gostar. Não deveríamos manter-nos à margem da corrente e tirar dela outros indivíduos, em número crescente, para, dessa maneira, influir na corrente? Não importaria muito que se realizasse uma transformação fundamental no indivíduo, em primeiro lugar, que antes de tudo vós e eu nos transformemos radicalmente, em vez de esperarmos que todo o mundo se transforme? Não é um ponto de vista "escapista", uma forma de indolência, uma maneira de fugir ao problema, pensar que vós e eu somos incapazes de influir, por pouco que seja, na sociedade como um todo?

Quando vemos tanto sofrimento, não apenas em nossas vidas, mas também na sociedade que nos cerca, que é que nos impede de nos transformarmos, de nos modificarmos fundamentalmente? Será simples hábito, letargia, qualidade da mente, que está satisfeita com o padrão em que se acha encerrada e não deseja quebrá-lo? De certo, não é apenas isso, porque circunstâncias econômicas quebram aquele padrão; entretanto, persiste o padrão interior, o padrão psicológico. Por que persiste ele? Para nos transformarmos fundamentalmente, radicalmente, teremos necessidade de alguma influência ou força exterior - como o sofrimento, a revolução econômica ou social, ou um guru - isto é, teremos necessidade de compulsão? Uma força exterior implica conformismo, dependência, compulsão, temor. Modificamo-nos fundamentalmente pela dependência? Não é um estorvo o dependermos, para nossa transformação, de forças exteriores, comoções econômicas, etc.? Essa dependência de uma força exterior impede a revolução radical, porque a revolução radical só pode vir, quando compreendermos o processo total de nós mesmos. Se, para a transformação, dependemos de uma força exterior de qualquer espécie, introduzimos o temor e outros fatores que impedem a transformação. Um homem que deseja deveras a transformação, não depende de nenhuma força exterior, não há luta em seu interior; ele percebe a necessidade e se transforma.

Será de fato difícil a transformação do indivíduo? É difícil ser bondoso, compassivo, amar alguém? Afinal de contas, é esta a essência de uma transformação radical. A dificuldade é que temo uma natureza dualista, na qual existe ódio, aversão, varias formas de antagonismo, etc., que nos afastam do problema central. Estamos de tal maneira entranhados nos impulsos que incitam ao ódio, à antipatia, que perdemos a chama pura, ficou-nos só fumo; e o problema fica sendo o de como nos livrarmos do fumo. Não possuímos mais, em absoluto, a chama da criação; tomamos o fumo pela chama. Não é necessário investigarmos o que é a chama, isto é, ver a s coisas de maneira nova, sem, nos subordinarmos a um padrão; olhar as coisas como são, sem, lhes darmos nomes? Será realmente difícil isso? A dificuldade é que os mais de nós estamos cheios de compromissos, assumimos inumeráveis responsabilidades, deveres, etc., e dizemos que deles não nos podemos eximir. Positivamente, essa não é uma dificuldade real. Quando sentimos uma coisa profundamente, nós fazemos o que queremos, sem considerações de família, da sociedade, e tudo o mais. Assim, a única dificuldade resulta de não sentirmos suficientemente a importância da transformação radical do indivíduo. É imperioso que se opere essa transformação. A transformação se realizará quando vivermos sem "verbalização", quando virmos as coisas como são realmente e aceitarmos a verdade tal como é. Isso deve começar em nós, como indivíduos. Se não começa, isso se deve, simplesmente, a que não prestamos atenção suficiente, não nos entregamos, com todo o nosso ser, à compreensão dessa coisa; vemos tanto sofrimento ao redor de nós, e há tanta confusão dentro em nós, e todavia não nos dispomos a pôr cobro a essa situação.

Agora, que acontece quando tenho um problema e procuro resolvê-lo? Na solução do problema, surgem-me vários outros problemas; resolvendo um problema, multiplico-o. Por isso, desejo encontrar a solução do problema sem aumentar o problema, desejo viver feliz, desejo estar livre da aflição psicológica, sem arranjar um substituto para ela. É possível descobrir se podemos realmente dissolver a aflição, se podemos investigara sem contar com a autoridade de ninguém, examiná-la em nós mesmos, observando-nos a todas as horas e em toda espécie de relações? Não será esta a única solução do problema: observar-nos constantemente, o que pensamos, o que sentimos, o que, fazemos, conservar-nos nesse estado de vigilância em que tudo se nos revela?

Cumpre-vos experimentá-lo e não, simplesmente, dizer que não é possível, nem aceitar a minha autoridade e repeti-la, apenas. Suponhamos que sejais feliz, e eu não; e desejo ser feliz, não desejo narcotizar-me com crenças, etc., mas, sim, levar inteiramente a cabo o meu propósito. Nessas condições, procuro-vos, investigo, e examino a questão mais e mais profundamente. - Que vos impede agora de assim proceder? Por que não tendes o sentimento da felicidade, da criação, de ver as coisas como são? Por que não operais nesse sentido profundo? Por que dizeis que o sofrimento leva à felicidade, que o sofrimento é um meio de alcançar a felicidade, aceitastes o sofrimento, ou outro substituto qualquer. Fizemo-nos de tal maneira embotados, que não percebemos a necessidade de nos modificarmos, e aí é que está a dificuldade.

Dizeis porventura, que desejais modificar-vos, mas alguma coisa há que impede a transformação. Explicações não alteram coisa alguma. Dizer que o "ego" é um obstáculo, é simples explicação, mera descrição. Desejais que eu descreva a maneira de vencer os obstáculos; mas precisamos achar um meio de saltar a barreira, se possível, precisamos lançar-nos à corrente, ousadamente, aventurosamente, em vez de ficarmos sentados na margem a especular. Que nos está impedindo de dar o salto? O que no-lo impede é a tradição, que é memória, que e experiência, - não é verdade? Tanto nos satisfazemos com palavras, com explicações, que não damos o salto, mesmo percebendo a necessidade de saltar. Alvitra-se que não ousamos lançar-nos à corrente porque temos medo do desconhecido. Mas, é-me possível saber o que acontecerá, é-me possível conhecer o desconhecido? Se eu o conhecesse, não haveria então temor algum - e não seria o desconhecido. Nunca me será dado conhecer o desconhecido, se não me aventuro.

Será o temor que nos está impedindo de lançar nos à aventura? Que é temor? Só pode haver temor em relação com alguma coisa, ele não existe em isolamento. Como posso temer a morte, como posso temer uma coisa que desconheço? Só posso temer o que conheço. Quando digo que temo a morte, estarei mesmo com medo do desconhecido, ou estou com medo de perder o que me é conhecido? Meu medo não é da morte, mas sim de perder a minha associação com coisas que me pertencem. Meu temor está sempre em relação com o conhecido, e não com o desconhecido.

Assim, o que agora me cabe inquirir é como ficar livre do temor inspirado pelo conhecido, que é o temor de perder minha família, minha reputação, meu caráter, meu depósito no banco meus apetites, etc. Direis que o temor surge da consciência; mas vossa consciência é formada pelo vosso condicionamento, pode ser insensata ou sensata; a consciência, pois, também, é resultado do conhecido. Que sei eu? Saber é ter idéias, ter opiniões a respeito de coisas, ter um sentimento da continuidade do conhecido, e nada mais do que isso. Idéias são lembranças, resultados de experiências, que são reações a estímulos. Tenho medo ao conhecido, o que significa que tenho medo de perder pessoas, coisas ou idéias, tenho medo de descobrir o que sou, medo de me ver em embaraços, medo da dor que, poderia resultar de perder, ou de não ganhar, ou de não ter mais prazeres.

Há o medo á dor. A dor física é reação nervosa; a dor psicológica se manifesta quando estou apegado a coisas que me proporcionam satisfação, porque, em tal caso tenho medo de qualquer pessoa ou coisa que me proporcionam satisfação, porque em tal caso tenho medo de qualquer pessoa ou coisa que possa arrebatar. As acumulações psicológicas impedem a dor psicológica, enquanto não são perturbadas; isto é, sou um feixe de acumulações, experiências, que impedem qualquer perturbação séria - pois não desejo ser perturbado. Por isso, temo qualquer um que venha perturbá-las. Meu temor, portanto, é inspirado pelo conhecido; tenho medo, por causa das acumulações, físicas ou psicológicas, que constitui para defender-me da dor ou evitar a aflição. Mas a aflição está presente no próprio processo de acumular para proteger-nos do sofrimento. Também o conhecimento ajuda-nos a evitar a dor. Assim como o conhecimento da medicina nos ajuda a evitar a dor física, assim também as crenças nos ajudam a evitar a dor psicológica, e esta é a razão por que tenho medo de perder as minhas crenças, embora eu não possua um conhecimento perfeito, nem prova concreta da realidade de tais crenças. Posso rejeitar alguma das crenças tradicionais que me foram inculcadas, porque minha experiência própria me dá força, confiança, compreensão; mas tais crenças e o conhecimento que adquiri são basicamente idênticos, isto é, constituem um meio de proteção contra a dor.

Existe temor enquanto há acumulação do conhecido, que gera o medo de perder. Por conseguinte, o temor do desconhecido é, na realidade, o medo de perder o conhecido, por nós acumulado. A acumulação, invariavelmente, importa em temor, o qual por sua vez importa em sofrimento; e no minuto em que digo "não devo perder" há temor. Embora, quando acumulo, a minha intenção seja a de resguardar-me da dor, a dor é inerente ao processo de acumulação. As próprias coisas que possuo criam o temor, que é dor.

A semente da defesa encera também o ataque. Desejo segurança física; por isso crio um governo soberano, e este necessita de forças armadas, que acarretam a guerra, a qual destrói a segurança. Sempre que há o desejo de autoproteção, existe o temor. Quando percebo a falácia do desejo de segurança, desisto de acumular. Se dizeis que o reconheceis, mas não podeis deixar de acumular, é que de fato, não percebeis que na acumulação está me inerentemente, a dor.

Existe temor no processo de acumulação, e a crença em alguma coisa é parte do processo acumulativo. Morre o meu filho, e eu creio na reencarnação para, psicologicamente, preservar-me de mais sofrimento; mas no próprio "processo" do crer existe a dúvida. Exteriormente, acumulo coisas, e provoco a guerra; interiormente, acumulo crenças, e provoco a dor. Enquanto desejo estar seguro, ter depósitos nos bancos, ter prazeres, etc., enquanto desejo tornar-me alguma coisa, fisiológica ou psicologicamente haverá dor, necessariamente. As mesmas coisas que estou fazendo para proteger-me da dor, geram o temor e a dor.

Nasce o temor quando desejo permanecer num determinado padrão. Viver sem temor significa viver sem padrão algum. Quando desejo determinada maneira de viver, esse desejo, em si, é uma fonte de temor. A dificuldade está no meu desejo de viver segundo um certo molde. Não posso quebrar o molde? Só posso quebrá-lo ao perceber esta verdade: que o molde está causando temor, e que o temor está reforçando o molde. Se digo que preciso quebrar o molde, porque desejo ficar livre do temor estou seguindo outro padrão, o qual será a causa de outros temores. Toda ação de minha parte, baseada no desejo de quebrar o molde, há de sempre criar outro padrão, e, portanto, temor. Como posso quebrar o padrão sem causar temor, isto é, sem nenhuma ação, consciente ou inconsciente, de minha parte; em relação a ele? Significa isso que não devo agir, não devo fazer movimento algum para quebrar o molde. Que me acontece, então, quando fico apenas observando o padrão sem nada fazer em relação a ele? Percebo que a mente é, ela própria, o molde, o padrão; ela vive no padrão habitual, que criou para si. Por conseguinte, a mente é, ela própria, temor. Tudo o que a mente faz é no sentido ou de reforçar um velho padrão ou de por em vigor o um padrão novo. Significa isso que tudo o que a mente faça para livrar-se do temor, há de gerar temor. Ao percebermos a verdade disso, ao percebermos o "processo" respectivo, que acontece? A mente se torna sensível, tranqüila.

Ora, por que não está a mente sempre tranqüila? Toda vez que o padrão se cristaliza, por que não percebe a mente a verdade a esse respeito? Porque a mente deseja permanência, estabilidade, um refúgio de onde lhe seja possível operar. A mente quer estar segura. Dá-se a quebra de um determinado padrão, e poucos minutos depois observa-se uma nova cristalização; e, em vez de examinar essa nova cristalização e compreendê-la por completo, a mente volve à antiga experiência e diz "percebi a verdade, e isso deve continuar". Na busca de continuação, a mente cria um novo padrão e a ele se apega. Toda vez que ocorre cristalização, esta deve ser observada e compreendida; e a repetição ocorre por causa da deficiência da compreensão.

A verdade é não-continuidade. A verdade de ontem não é a verdade de hoje. A verdade não é do tempo e, portanto, não é da memória; não é algo que se possa experimentar, lembrar, ganhar, perder, ou realizar. Perseguimos a verdade, porque desejamos ganhá-la e dar-lhe continuidade; e logo que percebemos isso, realmente o padrão se quebrará, pois a mente, então, já cortou todas as amarras.

Krishnamurti - Madrasta, 29 de janeiro de 1950
Do livro: Que estamos buscando? - ICK

domingo, 10 de novembro de 2013

Como podemos libertar-nos imediatamente do medo? - Parte 1

A menos que um homem esteja plenamente satisfeito comas coisas como são ou estão — satisfeito consigo mesmo, com a situação mundial e com a geral aflição e confusão humana — a menos que esteja satisfeito com tudo isso, tem de perguntar a si próprio se o ente humano tem alguma possibilidade de mudar completamente, de realizar em si mesmo uma transformação graças à qual sua mente e todo o seu ser se tornem totalmente novos, inocentes, cheios de vigor e vitalidade. É necessário fazermos a nós mesmos esta pergunta, sem entrarmos em conflito com o mundo nem com nós mesmos, porque estar em conflito interior é pouco produtivo. O que nos dá compreensão, profundeza é fazermos a nós mesmos a interrogação correta; e fazer uma pergunta é bastante difícil, porque, em geral, quando a fazemos, desejamos uma resposta satisfatória, agradável, e por essa razão as nossas perguntas produzem invariavelmente um estado estático, no qual a mente não pode funcionar em plena liberdade. 

Devemos, pois, interrogar-nos sobre se o ente humano tem possibilidade de mudar, não apenas superficialmente, porém, também profundamente, porque superficialmente estamos sempre mudando. Exteriormente, estamos sendo influenciados por novas invenções, pelo computador, pela automação, pela "explosão demográfica" e pela necessidade de bem-estar econômico, de um modo de vida satisfatório. Essas influências, com efeito, produzem certas alterações superficiais. Mas, que acontece quando, ultrapassando essa esfera, percebemos como é fácil sermos influenciados? Pois, de fato, somos influenciados pelo clima, pela alimentação, pelas roupas que usamos, pela sociedade, pela cultura ou civilização em que vivemos; essas coisas superficiais influem em nosso caráter, nossa perspectiva, nossos pensamentos. Mas, se procurarmos transcendê-las e — sem nos refugiarmos em mosteiros, no isolamento, nos dogmas, crenças e ritos que oferecem as igrejas e várias religiões — perguntarmos a nós se é possível operarmos em nosso interior uma mudança radical, talvez então possamos examinar juntos esta questão e descobrir, individualmente, o inteiro conteúdo e significado da palavra "mudança", e se de fato há possibilidade de mudança radical.

O mero descontentamento ocasiona revolta contra a sociedade. Revolta é reação; e toda ação, toda impugnação profunda, fundamental, se originária de reação, só pode produzir uma nova série de reações e nunca uma compreensão total. É necessário, pois, prestarmos bastante atenção ao nosso descontentamento. Porque a maioria de nós vive descontentes, é bem fácil satisfazer-nos; e essa satisfação é também uma reação. Assim, vamos "rolando" de satisfação em satisfação, pensando que isso é mudança.

(...) Mas, é bem provável que a maioria não desejamos ardentemente uma tal revolução, porquanto estamos satisfeitos com as coisas como são; achamos preferível colocar alguns remendos em nossas relações, cobrir as coisas de maneira que não tenhamos maiores tribulações, ansiedades, disputas; e buscamos também refúgio em nossas crenças. E assim é que, em geral, não desejamos nenhuma revolução fundamental em nós mesmos. Mas, devo dizer que  necessitamos dessa revolução — revolução que não seja reação, uma transformação não idêntica a uma transação em que são previamente calculados todos os riscos.

Tecnologicamente, o mundo está fazendo progressos fantásticos; estão-se verificando extraordinárias mudanças, de incalculável alcance. Uma nova sociedade poderá surgir como resultado delas, mas, como entes humanos, continuaremos mais ou menos os mesmos, ainda que um pouco mais requintados, um pouco mais habilidosos, um pouco mais ajustados; mas não teremos resolvido nossos sofrimentos, e nunca terá fim nossa solidão, nosso medo, nossa incompreensão do ente humano. Em geral, temos propensão a escolher o caminho mais fácil, a satisfazer-nos facilmente e, por isso, nunca se nos apresenta a questão relativa à possibilidade de mudança fundamental.

Agora, que a estou propondo-vos, ou ela se vos torna uma questão pessoal e, portanto, uma questão íntima, de vital importância, ou meramente a aceitais como coisa exterior a vós. Quando sentis fome, ninguém vos precisa dizer. Sabeis, por vós mesmos, que estais com fome. De modo idêntico, quando vos inquiris se é possível operar aquela transformação radical, esta pergunta é vossa, e não minha. Torna-se o vosso problema, e não um problema imposto por outrem. Tratando-se, pois, de vosso problema pessoal, humano, podeis considerá-lo de maneira bem diferente da maneira como considerais uma questão proposta por outrem.

Por ceto, toda mudança exige ordem. Vem-nos atualmente num estado de desordem, e para sair da desordem necessita-se de ordem: ordem social, ordem interior, e ordem em nossos valores, nossa perspectiva das coisas. Dessa forma, mudar, no sentido em que estamos empregando a palavra, significa estar livre para estabelecer a ordem. Mas a sociedade não deseja essa liberdade, porque acha que a liberdade supõe desordem. Por isso existe a condição, por ela imposta ao indivíduo humano, de não fugir da estrutura psicológica da sociedade. A sociedade teme que a liberdade acarrete desordem, porque está satisfeita em viver nessa desordem a que chama "ordem"; por conseguinte, é incapaz dessa experiência, dessa revolução total. Só o indivíduo humano é capaz de experimentar e realizar, por seus próprios meios, a revolução total, que é a ordem.

Assim, quando emprego a palavra "mudança", entendo: "mudança da desordem para a ordem"; porque, como entes humanos, não nos achamos em ordem. Estamos em conflito, somos dignos de dó, confusos, ambiciosos, ávidos, invejosos — tal é a estrutura do ser humano.Temos medo, pavor, de tantas coisas; e alterar inteiramente essa estrutura de medo, significa promover a ordem. A ordem, portanto, não é produto de revolta, porque a revolta contra a sociedade é uma reação que só produzirá uma série de ações dentro dos limites da estrutura social, e, como acontece com o comunismo ou qualquer outra espécie de reação, volta-se, com o tempo, ao ponto de partida.

Refiro-me àquela mudança que não é reação — reação contra a sociedade, contra a ordem convencional, porém, antes, um "processo" de compreensão da estrutura da desordem; essa compreensão cria ordem, que é uma revolução radical.

(...) Mudança, dizemos, exige tempo. Sou isto, e para operar uma mudança em mim próprio, ou seja para vir a tornar-me aquilo, é necessário tempo, não é assim? Isto é muito simples. Eu sou o que sou, com todas as minhas aflições, minhas ansiedades, temores, desesperos, esperanças, e desejo mudar, "colocar tudo em ordem", e isso exige tempo. Existe o medo e, para nos livrarmos dele, achamos necessário o tempo. Sinto medo, e para dominá-lo, ou compreendê-lo, ou livrar-me dele, necessito do tempo. Isto é perfeitamente óbvio; pelo menos, é o que pensamos.

Ora, que é o tempo? Vede, por favor, que não o estamos considerando filosoficamente, como uma ideia, uma noção necessária; mas, cada um pode observar e compreender por si próprio essa coisa.

Consideremos o medo. Temos medo de tantas coisas, além do medo fundamental da morte. Mas há também o medo da opinião pública, medo de perder o emprego, medo de ser dominado — um complexo conjunto de temores. Pode-se ver, pode-se perceber que o medo engendra todas as maneiras possíveis de fugir, e que é gerador de escuridão, da incerteza, da ansiedade. E, assim, a mente, tornando-se confusa, incerta, trata de fugir, dada a sua incapacidade para resolver esta questão do medo. Recorre aos dogmas, à bebida, ao sexo — a numerosos e diferentes modos de fuga.

Ora, para uma pessoa ficar totalmente livre do medo, em todos os níveis de sua consciência e não apenas superficialmente, porém completamente, terá de compreender a natureza, a estrutura, o significado do medo; e esse processo de compreensão, pensamos, requer tempo. Escutai isso, por favor! Digo: "Tenho medo, e quero descobrir a causa do medo." Trato, pois, de investigar a causa do medo". Trato, pois, de investigar a causa do temor, de analisá-lo, ou consulto um analista, ou recorro a qualquer outro meio de fuga ao medo. Tudo isso exige tempo, não? Digo: "Não estou livre do temor, mas dele me livrarei com o tempo".

O tempo, pois, significa um movimento, uma mudança do que é para o que deveria ser. Tenho medo, mas um dia estarei livre dele; por conseguinte, o tempo é necessário a nos livrarmos do medo — é, pelo menos, o que pensamos. A mudança do que é para o que deveria ser exige tempo. O tempo, por conseguinte, implica o esforço que se faz, nesse intervalo, entre o que é e o que deveria ser. Não gosto do medo, e vou me esforçar para compreendê-lo, analisá-lo, dissecá-lo, ou para descobrir a causa, ou dele fugir inteiramente. Tudo isso é esforço; e ao esforço já estais habituados. Vemo-nos sempre num conflito entre o que é e o que deveria ser. O que eu deveria ser é uma ideia, uma coisa fictícia, não é o que sou, o fato. O que sou só pode ser modificado quando compreendo a desordem que o tempo cria. Entendeis? Quando tenho medo, isto é um fato: estou com medo. Se introduzo o elemento tempo, dou ao que é uma continuidade que gera desordem. Está claro?

Vede, estamos condicionados para pensar que o tempo é necessário, que é necessário um "processo" gradual para podermos operar qualquer mudança em nós mesmos. Por exemplo, todos desejamos preencher-nos de diferentes maneiras — como artistas... de qualquer uma de dez maneiras diferentes; queremos preencher-nos, e, nesse preenchimento, que implica tempo, encontra-se o sofrimento, a ansiedade, o medo. Desejo ser aquilo, mas não sou aquilo.

A questão, pois, é esta: É possível o ente humano mudar sem nenhuma interferência do tempo? libertar-se imediata e totalmente do temor? Como de pronto não posso livrar-me do medo, preciso do elemento duração, e isso significa que ele continuará a existente; e onde há continuidade do medo, aí há desordem.

Assim, posso libertar-me do medo, de maneira completa, neste mesmo instante? Se permito ao medo subsistir, estarei sempre a criar desordem; vê-se, por conseguinte, que o tempo é um elemento de desordem, e não um meio de nos libertarmos definitivamente do medo. Não há, pois, nenhum processo gradual de libertação do temor, assim como não há nenhum processo gradual de libertação do veneno do nacionalismo. Se tendes o nacionalismo, mas dizeis que com o tempo teremos a fraternidade humana, no intervalo haverá guerras, haverá ódios, haverá sofrimento, existirá a horrível divisão entre os homens; o tempo, por conseguinte, estará criando desordem.

Assim, se nos servimos do tempo como meio de promover a transformação radical, estamos promovendo a desordem e não a ordem. E, se compreendermos isso, não apenas verbalmente, se vemos, aí, a verdade, o fato, esse próprio descobrimento é então, em si mesmo, uma revolução; pois estamos habituados a contar com o tempo.

(...) Mas, por que razão nos servimos do tempo, no sentido em que o estamos entendendo? Por que admitimos a continuidade do medo? Por que? Não respondais, por favor; e, também, não é esta uma pergunta retórica. Provavelmente, nunca perguntamos a nós mesmos por que permitimos a existência do medo, por um só dia, por um só minuto sequer, já que sabemos quanto dano, quanto ódio, quantas mentiras, quanta hipocrisia, quanta confusão e conflito ele cria. Provavelmente o aceitamos porque com ele já nos acostumamos, e porque não conhecemos outra maneira de nos libertarmos dele, a não ser o "processo gradativo". Pelo menos, julgamos que esse processo gradual seja um meio de nos livrarmos do medo. Mas, pode-se agora perceber que, havendo duração do medo, nesse período há ódio, confusão, esforço, sofrimento. Aceitamo-lo, tão-somente, porque a ele estamos condicionados. Assim, perguntamos a nós mesmos: É possível, sem se permitir a interferência do tempo, olhar o pensamento, olhar o medo, e compreender-lhe a natureza — não seus sintomas, suas diferentes manifestações ou suas causas, porém o medo em si?

Ora, que é o medo? Muito importa compreender isso, porque em geral tetemos; não apenas num nível superficial de nossa consciência, mas, profundamente, temos medo. Há várias formas de medo, e não temos a necessidade de examinarmos todas; mas, todo temor é produto das relações. O medo tem causa, não vem à existência espontaneamente e pensamos que, compreendendo-lhe a causa, ficaremos livre dele; mas isso nunca será possível. Sabeis por que tememos. Provavelmente já refletistes a respeito do medo, o considerastes bem e conheceis a causa que o faz surgir; mas, embora conheçais a causa, não estais livres do sintoma. Vê-se, pois, que o mero descobrir da causa não liberta necessariamente do medo; e tampouco a análise nos liberta do temor. A análise, por sua vez, requer tempo.

Então, como de pronto podemos libertar-nos do medo? Esta é, com efeito, uma pergunta tremenda. E só podemos fazê-la a nós mesmos quando compreendemos o que está implicado no processo gradativo do tempo.

Como podemos libertar-nos imediatamente do medo? Quando emprego a palavra "como", não quero sugerir uma investigação a fim de achar um processo; porque processo, método, sistema, supõe o tempo e, por conseguinte, desordem. Mas, é possível libertar-nos do medo imediatamente?

(continua)

Jiddu Krishnamurti — O descobrimento do amor


domingo, 15 de setembro de 2013

Pode a mente, por meio do pensamento, promover uma transformação?

A mente é o resultado de muitos séculos, de milhares e milhares de anos. Sempre funcionou no campo do conhecido. Dentro desse campo do conhecido, não existe nada novo. Todos os deuses que a mente inventou são do passado, do conhecido. Pode a mente, por meio do pensamento, da inteligência, da razão, promover uma transformação?

Necessitamos de uma tremenda mutação psicológica, não uma mudança neurótica; e a razão, o pensamento, não pode realiza-la. Nem o saber, nem a razão, nem as sagazes atividades do intelecto poderão operar essa radical revolução na psique.

(...) Se o pensamento, a razão, o conhecimento e a experiência não podem realizar uma radical mutação na psique, que é que poderá realizá-la? Tal é a única revolução que resolverá todos os nossos problemas.

(...) Para examinar-se qualquer coisa, principalmente coisas não objetivas, coisas interiores, necessita-se de liberdade, de liberdade COMPLETA para olhar; e essa liberdade não é possível quando o pensamento, como reação de experiências ou conhecimentos anteriores, interfere no ato de olhar.

(...) Se você deseja olhar uma flor, qualquer pensamento a ela relativo lhe impede de olhá-la. As palavras "rosa", "violeta", o nome da flor, da espécie da flor, lhe impede de olhar. Para você olhar, NÃO DEVE HAVER INTERFERÊNCIA DA PALAVRA, que é a objetivação do pensamento. Você deve estar livre da palavra; o olhar exige silêncio; de contrário, não se pode olhar. Se você olha sua esposa ou marido, todas as lembranças que guardou, aprazíveis ou dolorosas, interferem no olhar. Só quando olha sem a imagem, existe um estado de relação. Sua imagem verbal e a imagem verbal de outra pessoa, não estão em nenhuma relação. São inexistentes.

(...) Para observar, precisamos estar livres da palavra, sendo a palavra símbolo, com tudo o que encerra — conhecimento, etc. Para olhar, observar, temos de estar em silêncio; de contrário, como é possível OLHAR alguma coisa? Esse silêncio ou pode ser produzido por um objeto tão imenso que torna a mente silenciosa; ou ele resulta de que a mente compreende que, para olhar qualquer coisa, tem de aquietar-se. Ela é então como a criança que ganhou um brinquedo novo, que a absorve inteiramente. A criança torna-se quieta; tão interessante é o brinquedo, que a absorve; mas, isso não é o estado de quietude. Tire-se-lhe o objeto da absorção, e ei-la de novo irrequieta, a fazer barulhos e travessuras. Para olharmos qualquer coisa necessitamos de liberdade; e a liberdade requer silêncio. A mesma compreensão disso produz sua disciplina própria. Não há interpretação, por parte do observador, daquilo que está a observar — sendo o "observador" todas as ideias, memórias, experiências, que o impedem de olhar.

O silêncio e a liberdade são inseparáveis. Só a mente que está toda em silêncio — não por meio da disciplina ou controle ou por causa da exigência de experiências extraordinárias, pois tudo isso são futilidades — só a mente que está toda em silêncio pode responder àquela pergunta. Só o silêncio total produzirá a revolução total na psique — não o esforço, nem o controle, nem a experiência, nem a autoridade. Esse silêncio é extraordinariamente ativo; não é mero silêncio estático. Para você o alcançar, precisa fazer o necessário. Ou o faz instantaneamente, ou toma um tempo para analisar-se e, nesse caso, você já perdeu o silêncio. A análise — psicanálise ou auto-análise — não dá liberdade, tanto mais porque requer tempo — de hoje para amanhã e daí por diante, gradualmente.

A mente — sua mente e minha mente — é resultado do tempo, resíduo de toda a experiência humana, produto de nossa infinda luta humana. Seus problemas são os mesmos problemas do indiano, na Índia. Ele está passando pela mesma infinita aflição que você. Esse desejo de encontrar a Verdade, de descobrir se é possível uma revolução radical na mente, só será compreendido quando houver liberdade total e, por conseguinte, não houver medo. Só existe a autoridade quando existe o medo. Com a compreensão do medo, da autoridade e da rejeição de todos os desejos de experiência — e essa é realmente a plenitude da maturidade — torna-se a mente completamente silenciosa. Só nesse silêncio — que é SUMAMENTE ativo — pode verificar-se uma revolução total na psique. Só então está a mente apta a criar uma nova sociedade. Torna-se necessária uma nova sociedade, uma nova comunidade, constituída de pessoas que, embora vivendo no mundo, a ele não pertençam. A você é que cabe o dever de criar essa comunidade.


Jiddu Krishnamurti — A importância da transformação

sábado, 7 de setembro de 2013

É possível uma mente livre dos padrões sociais

Então, o homem que é justo, o que deve fazer? Deve buscar a verdade, Deus, ou outro nome que tenha, ou consagrar sua mente e seu coração ao aperfeiçoamento da sociedade, que é realmente o aperfeiçoamento de si próprio? Você compreende? Deve ele perseguir em profundidade a verdade ou melhorar as condições da sociedade, o que equivale a seu próprio melhoramento? Deve ele aprimorar-se em nome da sociedade ou buscar a verdade, na qual não existe absolutamente nenhum aprimoramento? Aprimoramento implica tempo, tempo para transformar-se, enquanto que a verdade não tem nada a ver com o  tempo, ela é percebida instantaneamente.

De forma que o problema é extraordinariamente significativo, não? Podemos falar sobre a reforma da sociedade, mas trata-se ainda da reforma de si mesmo. Mas para o homem que está buscando o real, a verdade, não existe reforma do self, pelo contrário, existe a total cessação do self, que é a sociedade. Ele, portanto, não está preocupado com a reforma da sociedade.

Toda a estrutura da sociedade baseia-se em um processo de reconhecimento e de respeitabilidade; e, sem dúvida, senhores, um homem justo não pode buscar a reforma da sociedade, que equivale ao aperfeiçoamento de si mesmo. Ao reformara  sociedade, ao identificar-se com algo bom, ele pode pensar que está se sacrificando, mas trata-se ainda de auto-aperfeiçoamento. Portanto, para o homem que está buscando o supremo, o mais elevado, não existe auto-aperfeiçoamento; nesse sentido não existe aperfeiçoamento do “eu”, não existe transformação, não existe a prática nem a ideia do “eu serei”. Isso significa realmente a cessação de toda pressão sobre o pensamento e onde não existe pressão sobre pensamento, há pensamento? A própria pressão sobre o pensamento constitui o processo do pensar, de pensar em termos de uma determinada sociedade ou em termos de reação a essa sociedade; e se inexiste pressão, existe pensamento? Apenas a mente não sujeita a essa ação do pensamento — que constitui a pressão da sociedade — apenas essa mente pode encontrar a realidade e buscando aquilo que é supremo, tal mente cria uma nova cultura. Isso é que é necessário: suscitar um tipo totalmente diferente de cultura, não reformar a sociedade atual. E tal cultura não pode emergir a menos que o homem justo persiga completamente, com total energia, com amor, aquilo que é real. O real não é encontrado em nenhum livro, nem através de nenhum líder; ele se concretiza quando o pensamento se aquieta e essa quietude não pode ser adquirida por meio de qualquer disciplina. A quietude chega quando existe amor.

(...) Interrogante: As grandes culturas sempre se basearam num padrão, mas o senhor fala de uma nova cultura livre de padrões. É possível existir uma cultura absolutamente isenta de padrões?

K: A mente não precisa estar livre de padrões para encontrar a realidade? E ao estar livre para encontrar o real não criará ela seu próprio padrão, o qual a sociedade atual poderá não reconhecer? Pode a mente que se encontra enredada em um padrão, que pensa de acordo com um padrão, que está condicionada pela sociedade, encontrar o incomensurável que não tem padrão? Esta língua que estamos falando, o inglês, constitui um padrão desenvolvido através de séculos. Se existe uma criatividade que esteja livre de padrões, essa criatividade, essa liberdade pode empregar a técnica da linguagem; mas através da técnica, do padrão da linguagem, a realidade não poderá jamais ser encontrada. Por meio da prática, de um tipo  determinado de meditação, de sabedoria, de qualquer forma de experiência, todas as quais se encontram dentro de um padrão, a mente nunca entenderá o que é a verdade. Para entender a verdade, a mente precisa livrar-se dos padrões. Uma mente assim é uma mente quieta e então esta mente que é criativa pode criar sua própria atividade. Mas vejam, a maioria de nós não está nunca livre de padrões. Nunca existe um momento que a mente esteja totalmente livre do medo, do conformismo, do seu hábito de vir-a-ser algo, ou neste mundo ou no mundo psicológico, espiritual. Quando o processo de vir-a-ser, em qualquer sentido, cessa completamente, então aquilo que é Deus, verdade, concretiza-se e cria um novo padrão, uma cultura toda sua.

I: O problema da mente e o problema social da pobreza e da desigualdade precisam ser abordados simultaneamente. Por que o senhor acentua apenas um?

K: Eu estou acentuando apenas um? E acaso existe uma coisa como o problema social da pobreza e da desigualdade, da deterioração e da miséria, apartado do problema da mente? Não existe apenas um problema que é a mente? Foi a mente que criou o problema social e, tendo criado o problema, ela tenta solucioná-lo sem alterar-se fundamentalmente. De forma que o nosso problema é a mente, a mente que deseja sentir-se e que, desse modo, cria a desigualdade social e procura comprar de várias maneiras porque sente segurança na propriedade, no relacionamento ou nas ideias, que são conhecimentos. É essa necessidade incessante de segurança que cria a desigualdade, que é um problema que não poderá jamais ser solucionado até que entendamos a mente que cria a diferença, a mente que não sente amor. As leis não vão resolver esse problema, nem ele pode ser solucionado por comunistas ou pelos socialistas. O problema da desigualdade só poderá ser solucionado quando houver o amor e amor não é uma palavra para ser desperdiçada. O homem que ama não está preocupado com quem lhe seja superior ou inferior; para ele não existe nem igualdade nem desigualdade; somente um estado de ser que é amor. Nós, porém, não conhecemos esse estado, jamais o sentimos. Portanto, como pode a mente que está inteiramente voltada para as suas próprias atividades e ocupações, que já criou tamanha miséria no mundo e que vai criar ainda mais danos e destruição — como pode essa mete suscitar dentro de si mesma uma total revolução? É esse, sem dúvida, o problema. E não podemos provocar tal revolução por intermédio de qualquer  reforma social senão quando a própria mente compreender a necessidade de sua total redenção, onde está a revolução.

Estamos sempre falando de pobreza, desigualdade e reforma, porque os nossos corações estão vazios. Quando houver amor não teremos problemas, porém o amor não se concretiza através e um método qualquer. Ele somente se concretiza quando você deixar de ser, isto é, quando você não mais estiver preocupado consigo mesmo, com sua posição, com seu prestígio, suas ambições e frustrações, quando você parar completamente de pensar em você, não no dia de amanhã, mas hoje. Essa ocupação consigo mesmo é idêntica à do homem que está no encalço do que ele chama de Deus ou à do homem que está empenhado em uma revolução social. E uma mente assim ocupada não pode jamais saber o que é amor.  

Jiddu Krishnamurti — Bombaim, 27 de fevereiro de 1955 - Collected Works of J. Krishnamurti

 

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Qual a relação entre o homem religioso e a sociedade?

Nossos problemas são muito mais profundos e temos necessidade de uma resposta profunda que, acho, encontraremos se examinarmos criteriosamente a questão de se a cultura que temos no presente — cultura envolvendo religião e toda a estrutura moral e social — ajuda o homem a descobrir a realidade. Se a resposta for negativa, então a mera reforma de tal cultura ou civilização não passará de uma perda de tempo; mas se ajudar o homem, no verdadeiro senso, então todos nós devemos empenhar nossos corações nessa reforma. Disso, penso eu, depende a solução do problema.

Por cultura queremos significar todo o problema do pensamento, não é? Para a maioria de nós, pensamento é o resultado de várias formas de condicionamento, de educação, de conformidade, de pressões e influências, às quais estamos sujeitos dentro do arcabouço de uma determinada civilização. Presentemente nosso pensamento é moldado pela sociedade e, a menos que ocorra uma revolução em nossa forma de pensar, a mera reforma de uma cultura ou sociedade superficial a mim parece uma loucura, um fator que apenas desencadeará maior miséria.

Afinal de contas, o que denominamos civilização constitui um processo de educar o pensamento dentro dos moldes hindus, cristãos ou comunistas, e assim por diante. Poderá uma forma de pensar tão educada criar uma revolução fundamental? Acaso qualquer tipo de pressão, de padronização de pensamento trará como consequência a descoberta ou a compreensão do que é a verdade? Claro, o pensamento precisa livrar-se de toda pressão, o que significa, realmente, livrar-se da sociedade, de todas as formas de influência e, assim, descobrir o que é verdade; então, esta mesma verdade tem poder para desenvolver uma ação sua e muito própria que dará origem a uma cultura totalmente diferente.

Isto é, a sociedade existe para descobrir a realidade ou precisamos nos livrar da sociedade para descobrir a realidade? Se a sociedade ajuda o homem a descobrir a realidade, então dado tipo de reforma dentro da sociedade é essencial; mas, se constitui um empecilho a essa descoberta, não deve o indivíduo cortar relações com a sociedade e buscar a verdade? Só a pessoa que é verdadeiramente religiosa o consegue, não o homem que celebra vários rituais ou aquele que vê a vida através de padrões teológicos. Quando o indivíduo se liberta da sociedade e busca a realidade, ele não suscita nessa mesma busca uma diferente cultura?

Acho que essa questão é muito importante porque a maioria de nós está meramente interessada em reformas. Constatamos a pobreza, a superpopulação, todas as formas de desintegração, de divisão e conflito e, vendo tudo isso, que podemos fazer? Começamos por participar de um grupo particular, ou trabalhar por uma ideologia? É essa a função do homem religioso? O homem religioso, sem dúvida, é aquele que busca a realidade e não aquele que lê ou cita a Bíblia, ou que vai todo dia ao templo. Isso, obviamente, não é religiosidade — é meramente compulsão, condicionamento do pensamento pela sociedade. Então, o que o homem justo, o homem que reconhece a necessidade e quer provocar uma imediata revolução deve fazer? Trabalhar em prol dessa reforma dentro da estrutura da sociedade? A sociedade é uma prisão e deverá ele apenas reformar a prisão, decorando suas grades e se esforçando para que as coisas sejam feitas de um modo mais bonito dentro de suas muralhas? Sem dúvida, o homem que é verdadeiramente justo, que é realmente religioso é o único revolucionário; não existe outro e esse homem é aquele que está buscando a realidade, que está tentando descobrir o que é Deus, ou a verdade.

Agora, qual deve ser a atitude desse homem? O que ele deve fazer? Deve atuar em meio à atual sociedade ou romper com ela, não se preocupar em absoluto com a sociedade? Rompimento não significa tornar-se um monge hindu, um eremita, isolando-se graças a peculiares sugestões hipnóticas. E, no entanto, ele não pode ser um reformista, porque constitui um desperdício de energia, de pensamento, de criatividade, o homem justo entregar-se a meras reformas. Então que deve o homem justo fazer? Se ele não tenciona decorar as grades da prisão, remover algumas grades, deixar entrar um pouco mais de luz, se não está absolutamente nisso, mas se também vê a importância de suscitar uma revolução de base, uma mudança radical no relacionamento de homem para homem — relacionamento que deu origem a esta apavorante sociedade em que existem pessoas imensamente ricas e aquelas que não possuem absolutamente nada, tanto interna como externamente — então, o que ele deve fazer? Acho importante fazer esta pergunta a nós mesmos.

Afinal de contas, a cultura se concretiza através da ação da verdade ou cultura é obra do homem? Se é obra do homem, obviamente não o conduzirá para a verdade. E nossa cultura é obra do homem porque se baseia em várias formas de aquisição. Não somente no que se refere a coisas mundanas, mas também às assim ditas espirituais; resulta do desejo de posição sobre todos os aspectos, de auto-engrandecimento e assim por diante. Tal cultura não pode, é claro, conduzir o homem à realização do supremo; e se compreendo isso, que posso, então fazer? O que você faria se compreendesse que a sociedade é uma barreira? Sociedade não significa apenas uma ou duas atividades, mas toda a estrutura do relacionamento humano, na qual toda a criatividade cessou, na qual existe constante imitação; consiste num arcabouço de medo em que a educação é mera conformidade e onde não existe nem um pouquinho de amor, mas simplesmente ação nos moldes de um padrão descrito como amor. Nessa sociedade os principais fatores são reconhecimento e respeitabilidade: é pelo que todos nós lutamos — para sermos reconhecidos. Nossa capacidade, nosso saber precisam ser reconhecidos pela sociedade para que sejamos ser alguém. Quando ele compreende tudo isso e vê a pobreza, a tremenda fome, a fragmentação da mente em diversas formas de crenças, o que o homem justo deve fazer?

Se realmente ouvimos o que se diz, ouvimos no sentido de querer descobrir a verdade, de forma que inexista o conflito de sua opinião contra a minha opinião ou de seu temperamento contra o meu, se podemos colocar tudo isso de lado e tentarmos descobrir o que é a verdade — o que requer amor — penso que nesse verdadeiro amor, nesse sentimento de bondade, encontramos a verdade que criará uma nova cultura. Então estaremos livres da sociedade, não mais preocupados com a reforma da sociedade. Mas a descoberta da verdade demanda amor e nossos corações estão vazios, pois estão repletos de coisas da sociedade. Estando repletos, tentamos reforma-la e nossa reforma não traz em si o perfume do amor.

Jiddu Krishnamurti — Sobre Deus

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill