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terça-feira, 3 de abril de 2018

O problema da transformação


O problema da transformação

Desejo, nesta manhã, se possível, discorrer sobre o problema da transformação. Considerando-se a situação mundial, as condições de penúria, as guerras, a competição, o incessante conflito entre os homens, a extraordinária prosperidade de algumas nações e a pobreza extrema reinante no Oriente, onde milhões de pessoas só tomam uma refeição por dia, ou nem isso — considerando-se tudo isso, torna-se bem clara a necessidade de uma radical transformação, de uma mudança revolucionária de alguma espécie. E, acredito, deve ser óbvio, a quem já pensou neste assunto, toda mudança operada por ajustamento, compulsão ou temor, não é transformação nenhuma. Simples mudança periférica, um mero ajustamento na circunferência, — ajustamento político, econômico, social ou, mesmo, religioso — não é revolução. A revolução, naturalmente, tem de operar-se no centro, e não na circunferência, no lado externo; e como pode realizar-se essa revolução no centro? Estou empregando a palavra “revolução” com conhecimento de causa, visto que, se houver uma mudança no centro, teremos uma verdadeira revolução, uma completa transformação do pensamento; e só ao verificar-se esta revolução no centro podem operar-se mudanças significativas no exterior, na periferia. Mas nós, geralmente falando, não queremos a revolução central e, sim, apenas, mudanças exteriores — queremos uma situação econômica melhor, mais riqueza, mais conforto, mais prosperidade, mais luxo, e uma maior variedade de entretenimentos e distrações. É isso o que interessa à maioria de nós. Ou, trocamos uma especialidade por outra, uma religião por outra, um dogma por outro; o que significa, simplesmente, passar de uma gaiola velha para uma gaiola nova. E se temos disposições sérias, falamos sobre a necessidade de abolir a guerra — o que, mais uma vez, significa cogitar sobre a maneira de produzir modificação no exterior. As pesquisas científicas, as reformas sociais, os ajustamentos políticos, tudo isso — assim como as várias religiões e sociedades sectárias — só diz respeito a modificações exteriores.

Ora, como produzir uma transformação no centro? Este é o problema da maioria de nós, não achais? Se estamos seriamente intencionados e reconhecermos quanto é superficial andarmos só em busca de um emprego melhor ou de uma solução imediata para os nossos problemas econômicos, políticos, ou religiosos, desejaremos naturalmente saber se é possível efetuar-se uma transformação no centro, a qual, por sua vez, produza uma transformação em nossas relações com a família, com os companheiros, enfim, com a sociedade.

Não sei se já refletistes sobre este assunto; considero-o, porém, uma questão fundamental, que se não pode facilmente desprezar. Temos tentado durante anos reformar-nos exteriormente, procuramos transformar as nossas maneiras, pensamentos, conduta, nossa sociedade, e daí não resultou nenhuma mudança radical, nenhuma libertação de forças criadoras; e a mim me parece que, sem essa profunda revolução interior, central, será vão todo esforço que empregarmos para modificar as coisas exteriores. Nossos esforços poderão produzir modificações momentaneamente satisfatórias; entretanto, se a revolução não for efetuada no centro, a mera alteração da circunferência, da parte externa, é mui pouco significativa e poderá, eventualmente, conduzir a malefícios maiores ainda. Compreendendo isso, averiguemos como se pode efetuar essa transformação, essa revolução no centro.

Que é esse centro? Ora, é a mente; e nós vamos averiguar se a mente pode modificar-se, se pode produzir em si mesma uma revolução interior. A mente, como é óbvio, é constituída de níveis conscientes e níveis inconscientes; e todo esforço da mente consciente para se modificar está sempre compreendido na esfera exterior. Vede bem a importância disso.

Como disse ontem — se posso repeti-lo, sem enfadar-vos — é muito importante saber escutar. Quando se faz um esforço consciente para escutar, para compreender, esse mesmo esforço dificulta a compreensão. Quando aplicais toda a vossa atenção à tentativa de descobrir algo, vossa mente fica num estado de tensão e, por isso, não há “escuta”, não há penetração, não há reação espontânea a algo que se não compreende perfeita e plenamente. Todavia, o “escutar” exige uma certa atenção, porquanto não significa que vos ponhais simplesmente a dormir. Mas “escutar” é coisa muito diferente de “ouvir”. Podeis ouvir o que estou dizendo e compreender a significação das palavras; porém, se a vossa mente não ultrapassar a mera comunicação verbal entre nós dois, não haverá compreensão real. O que estou tentando transmitir não é tanto a significação verbal, quanto, principalmente, as coisas existentes entre as palavras, no espaço, no intervalo entre os pensamentos. Se a mente puder estar quieta, atenta para o que se acha entre as palavras, se puder pôr-se em tal estado de “afinação”, será então capaz de “escutar” integralmente, na totalidade; e é esse escutar, possivelmente, que traz a revolução, e não o esforço consciente para compreender.

A maioria de nós conhece o esforço consciente de modificar, de disciplinar a mente, e, por esse motivo, o que chamamos modificação representa uma operação parcial, e não uma revolução total. E eu estou-me referindo à revolução total, integral, e não à ação parcial, de superfície; e essa revolução total não pode verificar-se por meio de nenhum esforço consciente de nossa parte. Sabemos o que é a consciência, estamos bem familiarizados com a mente consciente que pensa e deseja, movida pelo impulso, pela intenção, e determina o ajustamento. A mente consciente está sempre forcejando em determinado sentido, ou para ajustar-se pelo temor, ou, ainda pelo temor, transformar-se, a fim de adaptar-se a outro padrão de ação. Por conseguinte, todo esforço visando a uma modificação é um ajustamento sob a influência do temor, do desejo de termos bom êxito ou do desejo de nos tornarmos melhores, para alcançarmos um certo resultado, seja neste mundo, seja no mundo da santidade. É urgentemente necessária uma revolução profunda, mas, é óbvio, essa revolução deve ser inconsciente; pois, se produzo deliberadamente uma revolução em mim mesmo, essa revolução será resultado de desejo, da memória, do tempo. Desejo tornar-me melhor, conseguir um resultado, descobrir o que é Deus, o que é a Verdade, ser mais feliz; por isso digo que há necessidade de transformação. O esforço positivo ou negativo, o esforço para ser ou não ser, se baseia no temor, na ânsia de ganho, de conforto, paz, segurança; assim, pois, toda modificação operada por um esforço consciente não é verdadeira transformação e, sim, puro ajustamento a um padrão diferente. A esse respeito, temos de perceber a verdade completamente. Como todas as revoluções econômicas, quer da direita, quer da esquerda, o esforço consciente não produz nenhuma transformação no centro. Ambas as coisas só produzem tiranias. O sábio, portanto, não se preocupa essencialmente com modificações periféricas: interessa-lhe só a revolução interior, a revolução que se opera no centro. E como iremos, vós e eu, produzir essa transformação?

Não sei se percebeis a importância desta questão. Todas as escolas de religião, todas as sociedades religiosas, procuram produzir modificação por meio de esforço consciente, por meio de disciplina, ajustamento, temor, por meio do desejo de alcançar uma situação melhor, quer socialmente, quer religiosa ou psicologicamente; e tudo isso está compreendido na esfera exterior. Sem dúvida, porém, o homem que, conscientemente, se está tornando virtuoso, é imoral, uma vez que é virtuoso no interesse da própria segurança, do próprio conforto e felicidade. Não estamos falando dessa espécie de mudança ou transformação.

Como então efetuar essa revolução no centro? Vemos que o esforço deliberado e consciente do nosso pensamento ordinário não pode realizá-la. E pode o inconsciente fazê-la? Compreendeis o que queremos dizer quando nos referimos ao “inconsciente”? O inconsciente é o resíduo do passado, não é exato? É o resultado dos instintos raciais, das impressões culturais, de tudo o que fomos no passado, de toda a luta do homem contra seus ocultos intentos, compulsões, ímpetos. Pode esse inconsciente ajudar-nos a operar uma modificação, uma revolução no centro? E existe alguma diferença, algum intervalo ou hiato entre o inconsciente e o consciente? Sem dúvida, a mente consciente, a mente que está desperta durante o dia, funcionando em nossas atividades diárias, é apenas a orla do inconsciente, não é verdade? Não há diferença fundamental entre os dois (o consciente e o inconsciente). Assim como a folha de uma árvore é o produto das suas raízes, aprofundadas no seio da terra, assim também a mente consciente é o produto do inconsciente profundo. Não há distinção entre eles; não são duas coisas diversas; nós é que não estamos familiarizados com o inconsciente. É-nos familiar a mente consciente, a atividade diária de ganância, competição, ciúme, inveja, o desejar uma coisa e não desejar outra, a nossa luta incessante; mas os mesmos impulsos encontram-se também nos níveis mais profundos, não é verdade? Pode-se, pois, contar com o inconsciente para se realizar uma transformação radical?

Se prestais atenção ao que estou dizendo e o seguis sem esforço, encontrareis a solução correta; e o descobrimento da solução correta é a revolução no centro. Qual é o estado da mente quando não há esforço algum, nem por parte do consciente nem do inconsciente? Existe, então, um centro? Para a maioria de nós existe um centro, que é o “eu”, o “ego”; e se esse centro se acha num nível superior ou inferior, isso não tem grande importância. O centro é o “eu”, o instinto de aquisição, que se expressa no possuir propriedades, no desejo de nos tornarmos melhores, de adquirir virtudes, pelo controle, pela disciplina e tudo o mais. Temores, ansiedades, disposições de ânimo, anseios, esperanças, fracassos, frustrações — tal é o centro que conhecemos, não é verdade? E o fazer cessar completamente esse centro, é a única revolução verdadeira; essa revolução, porém, não é possível por meio de esforço por parte do consciente ou do inconsciente.

Pois bem. Quando percebemos tudo isso, qual é o estado da nossa mente? Evidentemente, a primeira reação é um sentimento de ansiedade, de temor, de desconhecimento do que vai acontecer. O “eu”, o centro, que é uma acumulação de inúmeras reações, inúmeras influências culturais, políticas e religiosas — esse centro é que tem funcionado até agora; e se queremos que esse centro desapareça de todo, para que a mente seja pura, incorruptível, única, singular, a primeira reação, por certo, é um tremendo sentimento de negação, de não-ser; e mui poucos de nós somos capazes de suportar tal coisa, que significa olhar de frente o que na realidade somos. Por conseguinte, no centro existe temor, e, refugiados nesse centro, começamos a levantar defesas, a apegar-nos aos nossos dons, capacidade, talentos, produzindo desse modo o conflito constante entre o que somos realmente e o que gostaríamos de ser. E, entretanto, em momentos lúcidos, percebemos que esse mero lidar com coisas exteriores nunca produzirá uma revolução profunda, duradoura, fundamental. Nessas condições, aqueles dentre nós que tiverem intenções sérias e inclinações religiosas, hão de interessar-se necessariamente por esta questão da revolução no centro.

Uma vez que nem a mente consciente nem a inconsciente pode produzir uma transformação fundamental no centro, que deve a mente fazer? Pode ela fazer alguma coisa? Como vimos, a mente tanto é atividade consciente como atividade inconsciente de pensamento, de reação, de memória. A mente é resultado do tempo, e o tempo não pode produzir revolução. Ao contrário, só o cessar do tempo produz a revolução fundamental no centro. O centro está afeito ao tempo, o centro é tempo, é todo o “processo” psicológico de ontem, hoje, amanhã — eu fui, eu sou, eu serei — frustração, temor, esperança. Como vemos, a mente não pode produzir revolução; quando o faz, cria mais brutalidade, mais tiranias, mais horrores, e a compulsão totalitária. E se a mente é incapaz de efetuar uma transformação radical, qual é então a sua função?

Espero me estejais seguindo, porquanto não falo para mim mesmo, mas também para vós. Acredito, se essa revolução extraordinária pudesse realizar-se em cada um de nós, criaríamos um mundo diferente, seríamos missionários de uma nova espécie, de uma espécie inteiramente diversa, — não daqueles que convertem, mas dos que libertam. Qual é, pois, a função da mente, ao reconhecer que nenhum esforço, consciente ou inconsciente, da sua parte, pode produzir uma transformação completa? Que deve ela fazer? Apenas, ficar tranquila, não é verdade? Todo esforço de sua parte para modificar-se é produto dc seu condicionamento, de seu temor, do desejo de bom êxito, da esperança de melhorar as coisas; e tal esforço só pode dificultar o descobrimento da solução correta. Vede bem a importância disso. Se reconheço que a revolução fundamental não pode ser produzida por nenhuma reação da mente consciente ou inconsciente; que todas essas reações estão baseadas no temor, que impele à aquisição, na memória, no tempo, e se encontram, portanto, na parte externa, na periferia — se reconheço tudo isso, então o que a mente deve fazer é ficar completamente tranquila, não achais? A função da mente, por conseguinte, consiste apenas em perceber como surgem essas reações, e em não procurar conquistar um determinado estado ou produzir uma modificação no centro, pela ação da vontade. O que pode fazer é apenas observar as próprias reações. O observar, porém, exige paciência infinita; e se sois impaciente, a observação transforma-se num trabalho exaustivo, pois desejais progredir, desejais um resultado. Só quando a mente está sempre apercebida de suas próprias reações de temor, de ganância, de inveja, de esperança, essas reações podem desaparecer; não desaparecem, porém, quando há condenação, comparação, julgamento. Só desaparecem pela observação simples, inteiramente isenta de escolha. A mente se torna então extraordinariamente tranquila, de todo serena, e uma vez existente essa serenidade, opera-se uma revolução no centro. Aí, somente, há a possibilidade de se ser individual, porque então a mente está só, livre de toda influência. Esse estado é criação. Nele, não existe um ‘‘experimentador” que experimenta. Enquanto há “experimentador”, há processo de tempo.

Assim, essa revolução no centro, tão obviamente necessária, não é possível por meio de nenhuma espécie de compulsão ou disciplina, que são coisas muito infantis; realizar-se-á apenas quando a mente estiver de todo tranquila, percebendo, sem escolha, todas as suas reações externas e internas, como um processo total. Vereis, então, surgir um sentimento extraordinário de bem-aventurança interior, o que não constitui uma promessa, nem uma recompensa de vossos valorosos esforços de muitos dias, ou muitos anos, para alcançá-la. Essa felicidade, essa bem-aventurança não é o oposto do sofrimento; nada tem em comum com o sofrimento. Esse estado nasce da compreensão do sofrimento, a qual nos torna livres do sofrimento.

Ao apreciarmos estas questões, espero que vós e eu estejamos realmente refletindo juntos sobre o problema respectivo. Não estais à espera de minha solução, pois eu não dou soluções. É muito simples dar respostas, dizer “sim” ou “não”, como qualquer mestre-escola. O importante é que vós e eu descubramos a solução no próprio problema, porquanto esta é a única solução correta; e para o fazermos, deveis estar vigilantes, e eu devo estar vigilante. A solução correta não se encontra facilmente. Temos, quase todos nós, tanta ânsia de achar a solução e passar ao problema seguinte, que nunca examinamos o próprio problema. Só há um problema, embora possa ter enunciados diferentes; e para que ele seja compreendido através dos seus diversos enunciados, requer-se muita sabedoria, penetração, discernimento, e uma paciência que não é indolência. Para penetrar, compreender, deve a mente estar livre de toda autoridade, de todo o saber dos livros, de tudo o que outra pessoa tenha dito anteriormente. Infelizmente, temos lido tanto, sabemos tão bem o que disse o Buda, o que disse o Cristo ou outro qualquer, que somos incapazes de refletir sobre o problema de princípio a fim. Mas, para que possamos achar juntos a solução correta, tendes de pensar, investigar, penetrar a questão.

PERGUNTA : Dizeis que o libertar-nos do “eu” é uma árdua empresa, e, ao mesmo tempo, declarais que todo esforço de libertação constitui um empecilho a essa própria libertação. Como executar essa “árdua tarefa” sem esforço?

KRISHNAMURTI: Que entendeis por esforço? Quando é que fazeis esforço? E se não há esforço algum, implica isso indolência, estagnação? Comecemos, pois, por averiguar o que se entende por esforço, em que sentido estamos fazendo esforço, e porque fazemos esforço.

Quando dizemos “fazer esforço", entendemos sempre um dispêndio de energias com o fim de alcançarmos um resultado, não é isso ? Desejamos mais saúde, mais compreensão, uma melhor situação econô­mica, social ou política, etc., o que significa que estamos sempre a fazer esforço para chegarmos a alguma parte. Ou, também, fazemos esforço para afastar certos obstáculos psicológicos. Se somos invejosos, dizemos que não devemos sê-lo, criando, assim, uma resistência contra a inveja. Ou, ainda, queremos ser muito eruditos, queremos saber mais, para causar impressão nos outros ou para obtermos um emprego melhor; por conseguinte, lemos, estudamos. Eis tudo o que sabemos a respeito do esforço, não é verdade ? Para a maioria de nós, o esforço ou é positivo ou negativo, um processo de vir a ser ou não vir a ser; e esse mesmo processo provém do centro do ‘'eu”, não é exato? Se sou invejoso e faço esforço para não sê-lo, não há dúvida de que a entidade que faz tal esforço é ainda o “ego”, o “eu”. Todo esforço para dominar o “eu”, positiva ou negativamente, é ainda parte do “eu”, e, por conseguinte, só pode dar-lhe mais força; e ficamos presos nesse círculo vicioso. O problema, pois, é de como quebrar o círculo vicioso, essa cadeia contínua de esforços que só servem para fortalecer o “eu”.

Tende a bondade de seguir o que vou dizer. Só podereis quebrar o círculo vicioso, se ficardes apercebido dele como um processo total. Ao perceber que é invejosa, a mente deseja ser não-invejosa, pensando que o não ser invejoso traz certa compensação; aufere ela certa satisfação do esforço que faz para não ser invejosa, registra uma vitória espiritual. Assim, em não ser invejosa a mente encontra segurança, proteção, e o produtor do esforço é ainda o “ego”, o “eu”. Tende a bondade de perceber bem isso, só isso. Surge, assim, o problema: que devo fazer, quando sou invejoso? Estou acostumado a rejeitar a inveja, a levantar resistência contra ela; vejo agora quanto isso é fútil, quanto é absurdo que uma parte de mim mesmo esteja a negar a outra parte, quando eu sou o todo. Que devo então fazer? Entretanto, jamais chegamos a esse ponto, não reconhecemos nunca o fato de sermos, ao mesmo tempo, a inveja e o desejo de não ser invejoso. Quando somos invejosos, fazemos vigorosos esforços para dominar a inveja, e pensamos que esse esforçar-se é benéfico, e nos libertará do “eu”. Não o fará. Mas quando compreendo, quando estou perfeitamente apercebido de que a inveja e o desejo de não ser invejoso constituem um processo total, há então esforço? Ocorre então algo inteiramente diferente, não é verdade?

Já falei demais nesta manhã?

AUDITÓRIO: Não, não.

KRISHNAMURTI: Muito bem. No momento em que estamos apercebidos de ser invejosos, coléricos ou ciumentos, põe-se em funcionamento um processo de condenação; e enquanto estamos condenando, não há compreensão. As próprias palavras “inveja”, cólera”, “ciúme”, subentendem julgamento, comparação, condenação, não é exato? Através de séculos de educação, de civilização, de ensino religioso, estas palavras adquiriram um sentido de censura, representam algo que cumpre afastar, algo a que devemos resistir, combater, e nossa reação é toda nesse sentido. Assim, ao dar nome a certos sentimentos, já estou em atitude condenatória; e o próprio ato de condenar, de resistir a um sentimento, dá-lhe mais força. Se não condeno a inveja, isso significa render-me a ela? Tornar-me-ei mais invejoso? Ora, inveja é sempre inveja, nem mais nem menos. O desejo, a direção pode variar, mas a inveja é sempre a mesma coisa, quer tenha por objeto um “Ford” ou um “Cadillac”, quer objetive uma casa grande ou uma casa pequena. Assim, pois, o não dar nome à inveja, e portanto o não condená-la, não significa ceder a ela. Quando compreendemos que a pró­pria palavra “inveja” denota condenação, que o sentimento de antagonismo à inveja é inerente à própria palavra, manifesta-se logo um estado de liberdade. Essa liberdade não se opõe à inveja, não é liberdade da inveja. Liberdade de uma determinada qualidade não é liberdade nenhuma, e o homem livre de algo assemelha-se ao homem que está contra o governo: enquanto está contra alguma coisa não é um homem livre. A liberdade é completa em si; não resulta de alguma atitude, não é contra algum estado ou qualidade.

Vemos, pois, que todo esforço para vencermos alguma coisa, para libertar-nos de alguma coisa, só dá mais força ao “eu”, ao “ego”; e quando compreendemos isso realmente, quando estamos apercebidos da qualidade e do seu oposto, como um processo total, e percebemos como a própria palavra encerra condenação ou estímulo, então já não estamos na sujeição das palavras e, portanto, nosso espírito está livre para considerar, observar o que é. A compreensão do que é, e a liberdade que traz, não resulta de exercício persistente, de esforço penoso, a que dedicamos vários minutos todas as manhãs; apenas surge essa compreensão quando estamos apercebidos, em todo o correr do dia, das árvores, dos pássaros, das nossas próprias reações, das coisas que sucedem interior e exteriormente, como um processo total. Quando há condenação ou justificação, comparação ou identificação, não há compreensão do que é; por isso, torna-se dificílimo o estar apercebido. O que é só pode ser compreendido momento por momento, e isso significa devermos estar perfeitamente apercebidos de que estamos julgando, de que cada palavra implica rejeição ou aceitação. Enquanto a mente for a expressão verbal do seu próprio condicionamento, nunca será livre. Só há liberdade quando a mente está aliviada de todo pensamento.

Krishnamurti em, Percepção Criadora, 21 de junho de 1953
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quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Sobre o perene estado de contradição em nós mesmos

[...]Devemos estar interessados numa única questão, ou seja, como operar em nós mesmos uma transformação fundamengtal, que atinja não só as nossas relações sociais, mas também o nosso pensar, as nossas emoções, nossa expressão criadora e nosso viver diário. Se não se realiza, dentro do indivíduo, uma transformação fundamental, sem dúvida qualquer reforma proveniente do exterior só o forçará a ajustar-se ao novo padrão e, por conseguinte, não será transformação nenhuma. Transformação sob compulsão, influência, pressão sociológica, várias formas de legislação, não constitui a verdadeira transformação, porém, simplesmente, "continuidade modificada" do que já existia. Transformação dentro da esfera do tempo não é transformação — sendo "tempo" o processo de pensamento, de compulsão, imitação, gradual ajustamento. 

Agora, existe uma transformação fundamental não produzida sob pressão de espécie alguma, nenhum ajustamento a certo padrão ideológico? Existe uma transformação proveniente, totalmente, do interior e que não resulte de nenhuma pressão exterior? Nós nos transformamos superficialmente em virtude da compulsão, em várias formas, da ideia de recompensa, das pressões externas, da influência que em nós exercem os livros que lemos, etc.; mas tal mudança me parece superficial e, de modo nenhum, é a verdadeira transformação. Entretanto, é isso o que quase todos nós estamos fazendo com nossa vida. A mente consciente ajusta-se a um novo padrão social, econômico ou legislativo, mas isso não transforma na essência o indivíduo. Assim, se somos realmente sérios, deve-se-nos apresentar, inevitavelmente, a pergunta: É possível o indivíduo transforma-se a fundo, de modo que considere a vida, não parcialmente, fragmentariamente, porém como entidade integral, um ente humano total? 

Em regra, nós reagimos à ideia de recompensa e punição, a uma certa forma de compulsão, e é a isso que chamamos "atenção", em nossa vida diária. Se observardes, vereis que vossa ação, religiosamente e a outros respeitos, é parcial, fragmentária, não é a ação completa de nosso ser integral. E parece-me de toda necessidade, na presente crise mundial, que cada um de nós descubra por si mesmo se é possível agir, não em mera conformidade com padrões ideológicos, ou governamentais, ou pessoalmente impostos, porém como ente humano total, com todo o seu corpo, mente e coração. É possível atuar de maneira total? Basicamente, este me parece ser o único problema do homem.  

Vemos o que está acontecendo no mundo; vemos tirania, medonha crueldade, desditas a que estamos sujeitos, compulsões, uniformidade de pensar, como nacionalista, socialista, imperialista, o que quer que seja. Nesse "processo" não existe nenhuma ação plena por parte do indivíduo, ação em que sua mente e coração estejam unificados, seu ser inteiro completamente integrado. E parece-me que, se somos realmente sérios, em nosso próprio interesse devemos criar individualmente essa ação total; porque, enquanto nossa ação for simplesmente fragmentária, só da mente ou dos sentimentos, ou apenas dos sentidos, tal ação tem de ser contraditória e invariavelmente criará confusão. 

Agora, existe desejo, aspiração, vontade capaz de atuar como entidade total? Ou o desejo é sempre contraditório? E é possível a mente compreender a totalidade de si própria, tanto o consciente como o inconsciente, e atuar, não parcial ou fragmentariamente, porém como ente humano integrado, sem autocontradição? Para mim, tal ação é a única ação reta, porque todas as outras formas de ação gerarão conflito, tanto interior como exteriormente. 

Assim, como produzir essa transformação? Como poderá a mente atuar como entidade total, não dividida interiormente? Não sei se já refletistes alguma vez sobre este problema. Se já o fizestes, provavelmente pensais que os desejos contraditórios da mente podem ser harmonizados e que essa harmonia vem pelo esforço, pelas atividades ideológicas e várias formas de disciplina. Mas é possível harmonizar desejos contraditórios, como estamos tentando fazer? Eu sou violento e desejo ser "não-violento"; desejo ser artista, no lídimo sentido da palavra, e, no entanto, minha mente tende para a ambição, a avidez e a inveja, impedindo, assim, esse esforço criador. Dessarte, há uma perene contradição em nós mesmos. Esses desejos e conflitos promovem realmente certas atividades mas estas, também, em si mesmas, são contraditórias, como se pode ver diariamente em nossa vida. E é possível a mente alcançar aquela compreensão da totalidade de si própria, na qual a ação já não é questão de imitação, de compulsão, de medo, ou desejo de recompensa?[...] Isto é, a necessidade de uma ação não organizada pela mente, ação que não seja resultado de um pensar fragmentário, mas, sim, o reflexo de todo o nosso ser. Todos sentimos essa necessidade, porém não sabemos como atingir aquela ação. Podemos recorrer à religião, esperando encontrar uma ação não-contraditória, que seja completa; todavia, religião, para a maioria de nós, é uma coisa um tanto vaga e superficial, questão de crença, e nenhuma eficácia tem em nossa vida diária. Muito falamos a respeito disso que chamamos religião, mas o que dizemos não tem significação básica e apenas se torna mais um fator de contradição em nossa vida. Pensamos que devemos amar, mas não amamos. Desejamos buscar Deus, porém ao mesmo tempo estamos todos empenhados em atividades mundanas; e vemo-nos, assim, divididos, puxados em ambas as direções. Parece-me, entretanto, que a real compreensão do que é religião constitui a única solução para os nossos problemas. O mais importante, decerto, é que cada um de nós experimente diretamente a Realidade; e no próprio "processo" de experimentar a Realidade se encontra a ação da Realidade. Não se trata de experimentar a Verdade, e depois agir; o que há é ação da Verdade, no próprio "processo" de experimentar e compreender a Verdade. É então a Verdade que atua, e não a pessoa que compreende a Verdade. 

Jiddu Krishnamurti em, O Homem Livre

sábado, 27 de setembro de 2014

Sobre a urgência de uma transformação profunda

Nós, geralmente falando, não queremos a revolução central e, sim, apenas, mudanças exteriores — queremos uma situação econômica melhor, mais riqueza, mais conforto, mais prosperidade, mais luxo, e uma maior variedade de entretenimento e distrações. 

É isso o que interessa para a maioria de nós. Ou, trocamos uma especialidade por outra, uma religião por outra, um dogma por outro; o que significa, simplesmente, passar de uma gaiola velha para uma gaiola nova. 

E se temos disposição séria, falamos sobre a necessidade de abolir a guerra — o que, mais uma vez, significa cogitar sobre a maneira de produzir modificações no exterior. 

As pesquisas científicas, as reformas sociais, os ajustamentos políticos, tudo isso — assim como as várias religiões e sociedades sectárias — só diz respeito a modificações exteriores. 

Ora como produzir uma transformação no centro? Este é o problema da maioria de nós, não acham? Se estamos seriamente intencionados e reconhecemos quanto é superficial andarmos só em busca de um emprego melhor ou de uma solução imediata para os nossos problemas econômicos, políticos, ou religiosos, desejaremos naturalmente saber se é possível efetuar-se uma transformação no centro, a qual por sua vez, produza uma transformação em nossas relações com a família, com os companheiros, enfim, com a sociedade. 

(...) Temos tentado durante anos reformar-nos exteriormente, procuramos transformar as nossas maneiras, pensamentos, conduta, nossa sociedade, e daí não resultou nenhuma mudança radical, nenhuma libertação de forças criadoras; e assim me parece que, sem essa profunda revolução interior, central, será vão todo esforço que empregarmos para modificar as coisas exteriores. 

Nossos esforços poderão produzir modificações momentaneamente satisfatórias; entretanto, se a revolução não for efetuada no centro, a mera alteração da circunferência, da parte externa, é muito pouco significativa e poderá, eventualmente, conduzir a malefícios maiores ainda. 

Compreendendo isso, averiguemos como se pode efetuar essa transformação, essa revolução no centro. 

O que é esse centro? Ora, é a mente; e nós vamos averiguar se a mente pode modificar-se, se pode produzir em si mesma uma revolução interior. 

A mente, como ó óbvio, é constituída de níveis conscientes e níveis inconscientes; e todo esforço da mente consciente para se modificar está sempre compreendido na esfera exterior. 

(...) A maioria de nós conhece o esforço consciente de modificar, de disciplinar a mente, e,  por esse motivo, o que chamamos modificação representa uma operação parcial, e não uma revolução total. E eu estou me referindo à revolução total, integral, e não à ação parcial, de superfície; e essa revolução total não pode verificar-se por meio de nenhum esforço consciente de nossa parte. 

Sabemos o que é a consciência, estamos bem familiarizados com a mente consciente que pensa e deseja, movida pelo impulso, pela intenção, e determina o ajustamento. A mente consciente está sempre forcejando em determinado sentido, ou para ajustar-se pelo temor, ou ainda pelo temor, transforma-se, a fim de adaptar-se a outro padrão de ação. 

Por conseguinte, todo esforço visante a uma modificação é um ajustamento sob a influência do temor, do desejo de termos bom êxito ou do desejo de nos tornarmos melhores, para alcançarmos um certo resultado, seja neste mundo, seja no mundo da santidade. 

É urgentemente necessária uma revolução profunda, mas, é óbvio, essa revolução deve ser inconsciente; pois, se produzo deliberadamente uma revolução em mim mesmo, essa revolução será resultado de desejo. Desejo tornar-me melhor, conseguir um resultado, descobrir o que é Deus, o que é a Verdade, ser mais feliz; por isso digo que há necessidade de transformação. 

O esforço positivo ou negativo, o esforço para ser ou para não ser, se baseia no temor, na ânsia de ganho, de conforto, de paz, segurança; assim, pois, toda modificação operada por esforço consciente não é verdadeira transformação, e, sim, puro ajustamento a um padrão diferente. A esse respeito, temos de perceber a verdade completamente

Como todas as revoluções econômicas, quer da direita, quer da esquerda, o esforço consciente não produz nenhuma transformação no centro. Ambas as coisas só produzem tiranias. O sábio, portanto, não se preocupa essencialmente com modificações periféricas: interessa-lhe só a revolução interior, a revolução que opera no centro. E como iremos, vocês e eu, produzir essa transformação?(...) Como então efetuar essa revolução no centro?  vemos que o esforço deliberado e consciente do nosso pensamento ordinário não pode realizá-la. E pode o inconsciente fazê-la?(...) O inconsciente é o resíduo do passado, não é exato? É o resultado dos instintos raciais, das impressões culturais, de tudo o que fomos no passado, de toda a luta do homem contra seus ocultos intentos, compulsões e ímpetos. 

Pode esse inconsciente ajudar-nos a operar uma modificação, uma revolução no centro? E existe alguma diferença, algum intervalo ou hiato entre o inconsciente e o consciente?

Krishnamurti em, PERCEPÇÃO CRIADORA

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A transformação e a suprema felicidade fora do tempo


A transformação não está no futuro, nunca pode dar-se no futuro, ela só pode dar-se agora, de momento em momento. Mas, o que entendemos por transformação? Ora, é muito simples: é ver o falso como falso, o verdadeiro como verdadeiro. É ver a verdade que está contida no falso, e ver o falso naquilo que se aceitou como verdade. Ver o falso como falso, e o verdadeiro como verdadeiro, é transformação. Porque, no momento em que você vê claramente uma coisa como verdadeira, essa verdade liberta. Ao ver que uma coisa é falsa, essa coisa falsa se desvanece. Senhor, ao ver que as cerimônias são puras e vãs repetições, ao perceber a verdade que há nisso, e não o justificar, dá-se uma transformação — não é verdade? — porque você ficou livre de mais uma prisão. Ao ver que a distinção de classe é coisa falsa, que ela cria conflito, sofrimento, divisão entre as pessoas — ao perceber essa verdade, ela própria o liberta. A percepção da dessa mesma verdade é transformação, não é? E como estamos rodeados de coisas falsas, a percepção da falsidade, momento por momento, é transformação. A verdade não é acumulativa. Ela está presente momento por momento. O que é acumulativo, o que se acumula, é a memória, e pela memória nunca se pode achar a verdade; porque a memória é produto do tempo — do passado, do presente e do futuro. O tempo, que é continuidade, nunca pode achar o que é eterno; a eternidade não é continuidade. O que tem duração não é eterno. A eternidade está no momento presente. A eternidade está no agora. O agora não é reflexo do passado, através do presente, rumo ao futuro. 

A mente desejo de transformação futura, ou que visa à transformação como resultado final, nunca poderá achar a verdade. Porque a verdade é uma coisa que deve vir momento por momento, que precisa sempre ser descoberta de novo; e, naturalmente, não pode haver descobrimento mediante acumulação. Como é possível você descobrir o que é novo, com a carga do que é velho? É só pelo desaparecimento dessa carga que se descobre o novo. Assim, pois, para descobrir-se o novo, o eterno, no presente, momento por momento, necessita-se de uma mente extraordinariamente alerta, uma mente que não visa a um resultado, uma mente não interessada em "vir a ser". A mente empenhada em "vir a ser" não conhecerá jamais a perfeita e suprema felicidade do contentamento que é pura satisfação, não o contentamento derivado da consecução de um resultado, mas o contentamento que se manifesta quando a mente percebe a verdade no "que é", e o falso no "que é". A percepção dessa verdade é de cada momento; e essa percepção é retardada pela "verbalização" do momento. 

Assim, pois, a transformação não é um resultado final. A transformação não é um resultado. Todo resultado implica resíduo, implica uma causa e um efeito. Onde há causalidade, há necessariamente efeito. O efeito é meramente o resultado do seu desejo de ser transformado. Quando você deseja ser transformado, você está pensando em "vir a ser", e aquilo que está no "vir a ser", nunca poderá conhecer o que é o ser. A verdade é o ser, momento por momento; e a felicidade que tem continuidade não é a felicidade. A felicidade é aquele estado que está fora do tempo. Esse estado atemporal só pode manifestar-se quando há extraordinária insatisfação — não a insatisfação que descobriu uma via de fuga, mas a insatisfação que não tem saída alguma, que não tem possibilidade de fuga, que já não busca preenchimento. Só então, em tal estado de suprema insatisfação, pode despontar a Realidade. Essa realidade não pode comprar-se, vender-se, repetir-se, e não pode ser colhida nos livros. Ela tem de ser achada momento por momento, no sorriso, na lágrima, sob a folha morta, nos pensamentos erradios, na plenitude do amor. Porque o amor não é diferente da verdade. O amor é aquele estado no qual o processo do pensamento, como tempo, desapareceu de todo. E onde está o amor, há transformação. Sem amor, nada significa a revolução, porque em tal caso a revolução é só destruição, decomposição, desgraça cada vez maior e cada vez mais geral. Onde há amor há revolução, porque o amor é transformação, momento por momento. 

Jiddu Krishnamurti, 20 de fevereiro de 1949 - O Que Te Fará Feliz?

domingo, 15 de setembro de 2013

Pode a mente, por meio do pensamento, promover uma transformação?

A mente é o resultado de muitos séculos, de milhares e milhares de anos. Sempre funcionou no campo do conhecido. Dentro desse campo do conhecido, não existe nada novo. Todos os deuses que a mente inventou são do passado, do conhecido. Pode a mente, por meio do pensamento, da inteligência, da razão, promover uma transformação?

Necessitamos de uma tremenda mutação psicológica, não uma mudança neurótica; e a razão, o pensamento, não pode realiza-la. Nem o saber, nem a razão, nem as sagazes atividades do intelecto poderão operar essa radical revolução na psique.

(...) Se o pensamento, a razão, o conhecimento e a experiência não podem realizar uma radical mutação na psique, que é que poderá realizá-la? Tal é a única revolução que resolverá todos os nossos problemas.

(...) Para examinar-se qualquer coisa, principalmente coisas não objetivas, coisas interiores, necessita-se de liberdade, de liberdade COMPLETA para olhar; e essa liberdade não é possível quando o pensamento, como reação de experiências ou conhecimentos anteriores, interfere no ato de olhar.

(...) Se você deseja olhar uma flor, qualquer pensamento a ela relativo lhe impede de olhá-la. As palavras "rosa", "violeta", o nome da flor, da espécie da flor, lhe impede de olhar. Para você olhar, NÃO DEVE HAVER INTERFERÊNCIA DA PALAVRA, que é a objetivação do pensamento. Você deve estar livre da palavra; o olhar exige silêncio; de contrário, não se pode olhar. Se você olha sua esposa ou marido, todas as lembranças que guardou, aprazíveis ou dolorosas, interferem no olhar. Só quando olha sem a imagem, existe um estado de relação. Sua imagem verbal e a imagem verbal de outra pessoa, não estão em nenhuma relação. São inexistentes.

(...) Para observar, precisamos estar livres da palavra, sendo a palavra símbolo, com tudo o que encerra — conhecimento, etc. Para olhar, observar, temos de estar em silêncio; de contrário, como é possível OLHAR alguma coisa? Esse silêncio ou pode ser produzido por um objeto tão imenso que torna a mente silenciosa; ou ele resulta de que a mente compreende que, para olhar qualquer coisa, tem de aquietar-se. Ela é então como a criança que ganhou um brinquedo novo, que a absorve inteiramente. A criança torna-se quieta; tão interessante é o brinquedo, que a absorve; mas, isso não é o estado de quietude. Tire-se-lhe o objeto da absorção, e ei-la de novo irrequieta, a fazer barulhos e travessuras. Para olharmos qualquer coisa necessitamos de liberdade; e a liberdade requer silêncio. A mesma compreensão disso produz sua disciplina própria. Não há interpretação, por parte do observador, daquilo que está a observar — sendo o "observador" todas as ideias, memórias, experiências, que o impedem de olhar.

O silêncio e a liberdade são inseparáveis. Só a mente que está toda em silêncio — não por meio da disciplina ou controle ou por causa da exigência de experiências extraordinárias, pois tudo isso são futilidades — só a mente que está toda em silêncio pode responder àquela pergunta. Só o silêncio total produzirá a revolução total na psique — não o esforço, nem o controle, nem a experiência, nem a autoridade. Esse silêncio é extraordinariamente ativo; não é mero silêncio estático. Para você o alcançar, precisa fazer o necessário. Ou o faz instantaneamente, ou toma um tempo para analisar-se e, nesse caso, você já perdeu o silêncio. A análise — psicanálise ou auto-análise — não dá liberdade, tanto mais porque requer tempo — de hoje para amanhã e daí por diante, gradualmente.

A mente — sua mente e minha mente — é resultado do tempo, resíduo de toda a experiência humana, produto de nossa infinda luta humana. Seus problemas são os mesmos problemas do indiano, na Índia. Ele está passando pela mesma infinita aflição que você. Esse desejo de encontrar a Verdade, de descobrir se é possível uma revolução radical na mente, só será compreendido quando houver liberdade total e, por conseguinte, não houver medo. Só existe a autoridade quando existe o medo. Com a compreensão do medo, da autoridade e da rejeição de todos os desejos de experiência — e essa é realmente a plenitude da maturidade — torna-se a mente completamente silenciosa. Só nesse silêncio — que é SUMAMENTE ativo — pode verificar-se uma revolução total na psique. Só então está a mente apta a criar uma nova sociedade. Torna-se necessária uma nova sociedade, uma nova comunidade, constituída de pessoas que, embora vivendo no mundo, a ele não pertençam. A você é que cabe o dever de criar essa comunidade.


Jiddu Krishnamurti — A importância da transformação

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Que se entende por mudança?

Para responder a esta pergunta, é necessário examinar a questão do "observador e a coisa observada" — sendo "observador" não só a percepção visual, mas também o que está atrás dela: memória, pensamento, idiossincrasias, preconceitos, um estado condicionado. Ele é o censor, o experimentador, o juiz, o avaliador. Todo esse feixe de "memórias" constitui o observador. E esse observador está sempre a se modificar, a mudar; não é um observador estático, a não ser sob pressão, tensão, necessidade. Há sempre um processo modificador em ação dentro do próprio observador. E enquanto existir "observador", existirá "coisa observada" — o oposto.

Quando uma pessoa diz que sente cólera, ciúme, que é violenta — está existente o observador, a afirmar que a pessoa é violenta; a violência está separada do observador. O observador, portanto, separou-se daquilo a que chama "violência". Diz ele, então, "Tenho de dominá-la, de encontrar meios e modos de reprimir, de mudar, de sublimar esta qualidade, esta violência; mas o observador criou a violência; ele é que é violento, e não a coisa que observa como violência. Portanto, o observador é a coisa observada. Isto é, o observador separa-se da coisa observada e cria uma distancia entre si e aquilo a que observa. O experimentador, que exige experiência, com essa própria exigência separa-se da experiência e, desse modo, cria a ânsia, o desejo de mais experiência e, portanto, conflito. Ele, o experimentador, criou um espaço entre si e a coisa a que quer experimentar. Mas o experimentador é a coisa que quer experimentar. Assim, quando diz: "preciso mudar, percebo a necessidade de mudança", ele, o observador, o experimentador, o pensador projeta um padrão, uma ideia daquilo que deveria ser, e querendo tornar-se isso, cria o conflito, contradição, porque se separou da coisa que deseja observar. Pode esse observador existir sem movimento de espécie alguma? Porque todo movimento de sua parte, para efetuar uma mudança dentro de si mesmo, cria o oposto e ele se vê enredado no conflito do oposto. Mas o observador é a coisa observada e, ao perceber isso, que significa então mudança?

Espero que isso não esteja abstrato demais; veremos.

Vemos, pois, que a total inação é mudança radical. Inação total por parte do observador e, portanto, inexistência do observador. Se você se examinar, sem ser teoricamente, nem por meio das palavras do orador, se se observar realmente verá isso ocorrer em si mesmo. O padrão do oposto se fixou através de milênios  bom e mau, Deus e Diabo, etc. etc. Esta luta constante entre o bom e o mau continua existente porque o observador é tanto o bom como o mau, e o cultivo do "bom" é cultivo do observador e não do "bom". Assim, se compreendemos isso, se o observamos em nós mesmos, verificamos que só é possível a mudança quando não há nenhum movimento por parte do observador. Por conseguinte, a inação total é revolução total.

Jiddu krishnamurti — A essência da maturidade

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A vida é agir e relacionar-se

No mundo à nossa volta, vemos confusão, miséria e desejos conflitantes e, compreendendo este caos mundial, as pessoas mais coerentes e sérias — não as que estão fingindo, mas as que de fato se preocupam — naturalmente verão a importância de refletir sobre o problema da ação. Há a ação coletiva e a ação individual; a ação de massa tornou-se uma abstração, um meio de fuga conveniente para escapar da ação individual. Ao imaginar que este caos, esta miséria, este desastre que está constantemente aumentando possa ser de alguma forma transformado ou organizado pela ação das massas, o indivíduo torna-se um irresponsável. A massa é por certo uma entidade fictícia, a massa são vocês e sou eu. Só quando vocês e eu não entendemos a relação da verdadeira ação é que nos voltamos para a abstração chamada a massa e, por isso, nos tornamos irresponsáveis em nossa ação. Para a ação da reforma, procuramos um líder ou nos voltamos para a ação coletiva, organizada, que novamente é ação da massa. Quando procuramos um líder para dirigir a ação, invariavelmente escolhemos uma pessoa que achamos que nos ajudará a transcender os nossos problemas, a nossa miséria. Contudo, pelo fato de escolhermos um líder a partir de nossa confusão, o próprio líder está confuso. Não escolhemos um líder diferente de nós mesmos. Não podemos fazer isso. Só podemos escolher um líder que, como nós mesmos, está confuso; portanto, esses líderes, esses guias e os assim chamados gurus espirituais invariavelmente nos levam a maior confusão, a mais miséria. Visto que os escolhemos a partir de nossa própria confusão, quando seguimos um líder estamos unicamente seguindo a nossa própria e confusa projeção de nós mesmos. Assim sendo, essa ação, embora possa produzir um resultado imediato, invariavelmente leva a outro desastre.

Portanto, vimos que a ação da massa — embora seja valiosa em certos casos — está destinada a levar ao desastre, à confusão, e a acarretar irresponsabilidade da parte do indivíduo, e vimos que seguir um líder significa também aumentar a confusão. No entanto, temos de viver. Viver é agir; viver é relacionar-se. Não há ação sem relacionamento, e não podemos viver isolados. Não existe o isolamento. A vida é agir e relacionar-se. Portanto, para entender a ação que não crie mais infelicidade, mais confusão, temos de entender a nós mesmos, com todas as nossas contradições, nossos traços contraditórios, nossas muitas facetas que estão constantemente em luta umas contra as outras. Enquanto não entendermos a nós mesmos, a ação deverá inevitavelmente levar a mais conflito, a mais infelicidade.

Assim sendo, nosso problema é agir com entendimento, e esse entendimento só vem com o autoconhecimento. Afinal, o mundo é uma projeção de mim mesmo. O mundo é o que eu sou. O mundo não é diferente de mim, o mundo não está contra mim. O mundo e eu não somos entidades separadas. A sociedade sou eu; não há dois processos diferentes. O mundo é uma extensão de mim mesmo, e, para entender o mundo, tenho de entender a mim mesmo. O indivíduo não está em oposição à massa, à sociedade, porque a sociedade é o indivíduo. Sociedade é relacionamento entre vocês, eu e o outro. Só há oposição entre indivíduo e sociedade quando o indivíduo se torna irresponsável. Portanto, temos um problema a considerar. Há uma crise extraordinária que atinge todos os países, pessoas e grupos. Qual o relacionamento que há entre nós, vocês e eu, e essa crise, e como devemos agir? Por onde devemos começar para provocar uma transformação? Como eu disse, se considerarmos a massa não há saída, visto que a massa implica um líder, e a massa sempre é explorada pelos políticos, pelo sacerdote e pelos espertos. E uma vez que vocês e eu fazemos parte da massa, temos de assumir a responsabilidade pela nossa ação, ou seja, temos de entender a nossa própria natureza, temos de entender a nós mesmos. Entender a nós mesmos não significa nos isolarmos do mundo, porque isolar-se do mundo significa afastar-se e não podemos viver afastados. Assim sendo, temos de entender a ação no relacionamento, e esse entendimento depende da percepção de nossa natureza conflitiva e contraditória. Acho que é uma tolice conceber um estado em que haja paz e para o qual possamos olhar. Só pode haver paz e tranquilidade quando entendemos a nossa natureza e quando não pressupomos um estado que não conhecemos. Pode haver um estado de paz, mas a simples especulação sobre esse estado é inútil.

Para agir corretamente, deve haver pensamento correto; para pensar corretamente, deve haver autoconhecimento, e o autoconhecimento só pode existir por meio do relacionamento, não do isolamento. O pensamento correto só ocorre quando entendemos a nós mesmos, e desse conhecimento surge a ação correta. A ação correta é a que surge do entendimento de nós mesmos, não de uma parte de nós mesmos, mas de todos os aspectos de nós mesmos, da nossa natureza contraditória, de tudo o que somos. À medida que entendemos a nós mesmos, há ação correta, e dessa ação surge a felicidade. Além do mais, queremos felicidade. Felicidade é o que a maioria de nós está procurando por meio de várias formas, por meio de várias fugas — fugas através da atividade social, do mundo burocrático, da diversão, do culto e da repetição de frases, do sexo, e de inumeráveis outras fugas. Vemos que essas fugas não trazem a felicidade duradoura; elas apenas dão um alívio temporário; fundamentalmente, não há nada de verdadeiro nelas, nenhum deleite duradouro. Penso que só encontraremos esse prazer, esse êxtase, a verdadeira alegria de sermos criativos, quando entendermos a nós mesmos. Não é fácil entender a nós mesmos; esse entendimento requer certa vivacidade, certa percepção. Essa vivacidade, essa percepção só podem surgir quando não nos condenamos, não nos justificamos; porque, no momento em que há uma condenação ou uma justificação, o processo do entendimento se encerra. Quando condenamos alguém, deixamos de entender essa pessoa, e quando nos identificamos com ela, novamente deixamos de entendê-la. Dá-se o mesmo conosco. É difícil observar, ficar passivamente consciente de quem são vocês; mas dessa consciência advém um entendimento, uma transformação do que existe, e só nessa transformação é que se abrem as portas para a realidade.

Então, nosso problema é a ação, o entendimento e a felicidade. Não há base para o verdadeiro raciocínio a não ser que conheçamos a nós mesmos. Sem o autoconhecimento não tenho base para o pensamento — apenas posso viver num estado de contradição, como faz a maioria de nós. Para provocar uma transformação no mundo, que é o mundo do relacionamento, tenho de começar por mim mesmo. Vocês podem argumentar que “provocar uma transformação do mundo desse modo exigirá um tempo infinitamente longo”. Se estivermos buscando resultados imediatos, naturalmente acharemos que a demora será muito grande. Os resultados imediatos são prometidos pelos políticos; mas receio que para um homem que está em busca da verdade não há resultados imediatos. É a verdade que transforma, não a ação imediata; só quando cada um descobrir a verdade haverá felicidade e paz no mundo. O nosso problema é viver no mundo sem pertencer a ele, e trata-se de um problema de uma busca das mais sérias, porque não podemos nos recolher, não podemos renunciar, porém temos de ter a consciência de nós mesmos. Compreender a si mesmo é o começo da sabedoria. Ter consciência de nós mesmos é entender o nosso relacionamento com as coisas, pessoas e ideias. Enquanto não compreendermos a importância e o significado do nosso relacionamento com as coisas, pessoas e ideias, a ação que implica o relacionamento inevitavelmente provocará conflitos e lutas. Assim, um homem verdadeiramente sério tem de começar por si mesmo; ele tem de ficar passivamente consciente de todos os seus pensamentos, sentimentos e ações. Novamente, não se trata de uma questão de tempo. Não há fim para o autoconhecimento. Este só existe de momento a momento e, portanto, há uma felicidade criativa a cada novo momento.

Jiddu Krishnamurti — Nova Delhi, 14 de novembro de 1948


domingo, 11 de agosto de 2013

A transformação do amor está na suprema insatisfação

A transformação não é um resultado final. A transformação não é um resultado. Todo resultado implica resíduo, implica uma causa e um efeito. Onde há causalidade, há necessariamente efeito. O efeito é meramente o resultado de seu desejo de ser transformado. Quando você deseja ser transformado, , ainda está pensando em "vir a ser", nunca pode conhecer o que é o ser. A verdade é o ser, momento por momento; e a felicidade que tem continuidade não é a felicidade. A felicidade é aquele estado que está fora do tempo. Esse estado atemporal só pode manifestar-se quando há extraordinária insatisfação — não a insatisfação que descobriu uma via de fuga, mas a insatisfação que não tem saída alguma, que não tem possibilidade de fuga, que já não busca preenchimento. Só então, em tal estado de suprema insatisfação, pode despontar a Realidade. Essa realidade não pode comprar-se, vender-se, repetir-se, e não pode colher-se nos livros. Ela tem de ser achada momento por momento, no sorriso, na lágrima, sob a folha morta, nos pensamentos erradios, na plenitude do amor. Porque o amor não é diferente da verdade. O amor é aquele estado no qual o processo do pensamento, como tempo, desapareceu de todo. E onde está o amor, há transformação, Sem amor, nada significa a revolução, porque em tal caso a revolução é só destruição, decomposição, desgraça cada vez maior e cada vez mais geral. Onde há amor há revolução, porque o amor é transformação, momento por momento. 

Jiddu Krishnamurti — O que te fará feliz?  

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O pensamento nunca pode produzir uma revolução vital

Um estado de relações baseado no pensamento, que é costume, que é hábito, produz, infalivelmente, uma sociedade estática, e a ação do reformador, que deseja modificar essa sociedade, é sempre ação de morte, de escuridão, ou a reação de uma mente estática. Se você observar, poderá verificar que o que nos faz cediços, na vida de relação, é o pensar, pensar, pensar... o calcular, julgar, pesar , o ajustar-nos; e a única coisa que pode nos libertar disso é o amor, que não é um processo de pensamento. Não se pode pensar no amor. Podemos pensar na pessoa que amamos, mas não podemos pensar no amor. 

Assim, pois, o homem que ama é o verdadeiro revolucionário e é a pessoa verdadeiramente religiosa; pois, o que é realmente religião, não está baseado no pensamento, ou na crença, ou nos dogmas. Uma pessoa que é como um saco de crença e dogmas não é uma pessoa religiosa, é uma pessoa estúpida; ao passo que o homem que realmente ama é o verdadeiro revolucionário, e nele há transformação. 

Assim, pois, o amor não é um processo de pensamento; não podemos pensar no amor; Você pode, talvez, imaginar o que ele seja, mas isso representa meramente um processo de pensamento, e não é amor; e o homem que ama é o homem verdadeiramente religioso, quer ame um só, quer ame a todos. O amor não é nem pessoal em impessoal; é amor — ele não conhece fronteiras, não conhece classes nem raças. O homem que ama é revolucionário; só ele é revolucionário. O amor não é produto do pensamento, porquanto o pensamento é resultado da memória, resultado de condicionamento, e só pode produzir morte e decomposição. 

Vemos, pois, que só pode haver uma verdadeira revolução, uma transformação fundamental, quando existe o amor, e essa é a religião mais sublime. Esse estado se manifesta quando cessa o processo do pensamento, quando renunciamos a esse processo. Só podemos renunciar a uma coisa depois de a compreendermos, e não rejeitando-a. Uma comunidade, uma sociedade, um grupo pode ser verdadeiramente revolucionário e transformar-se continuamente, apenas num tal estado e não em conformidade com uma fórmula; porque toda fórmula é mero produto de um processo de pensamento e, portanto, intrinsecamente, a causa de um estado estático. Pode-se ver também que o ódio não pode produzir uma revolução radical, porquanto, inevitavelmente, tudo aquilo que resulta de conflito, antagonismo, confusão, não pode ser real, não pode ser criadoramente revolucionário. O ódio é o resultado desse processo de pensamento; o ódio é pensamento; e aquela transformação que o amor traz só pode realizar-se ao cessar o processo do pensamento; por consequência, o pensamento não pode, nunca, produzir uma revolução vital. 

Jiddu Krishnamurti — 6 de fevereiro de 1949

quinta-feira, 7 de março de 2013

A mutação mental que ocorre sem drogas e sem desejo

O homem tem tentado todos os meios para fugir dos problemas, evitá-los ou encontrar algum pretexto para não resolvê-los. Falta-nos provavelmente a capacidade, a energia, o impulso necessários para os resolvermos e, tão habilmente preparamos as nossas vias de fuga, que nem sequer percebemos que estamos fugindo. Uma mudança total me parece ser necessária, uma radical revolução da mente, revolução que não seja uma "continuidade modificada", porém uma total mutação psicológica que liberte a mente, de todo, de sua sujeição ao tempo; que a torne capaz de ultrapassar a estrutura do pensamento, não para ingressar numa certa região metafísica, porém, sim, numa dimensão atemporal, onde ela não estará fechada em sua estrutura e seus problemas.... Temos tentando muitos meios, inclusive o L.S.D., crenças, dogmas, seitas religiosas, disciplinas, meditação. E, ao fim de tudo isso, a mente tem permanecido exatamente a mesma: vulgar, estreita, limitada, ansiosa, ainda que tenha passado por períodos de iluminação, lucidez. É isso o que está fazendo a maioria de nós, em nosso esforço para alcançarmos uma certa visão, uma clareza, algo que não seja produto do pensamento — para sempre voltar ao mesmo estado de confusão. A liberdade parece inexistente... Não sabemos o que significa liberdade. Só somos capazes de formar uma imagem, uma ideia, uma conclusão, a respeito dela — o que ela deve ser, o que não deve ser. Para a experimentarmos, para a encontrarmos realmente, requer-se muito exame, muita penetração do nosso processo pensante.

Nessa tarde, desejo investigar se é possível ao homem, ao ente humano, libertar-se inteiramente do medo, do esforço, de toda espécie de ansiedade. Essa libertação deve ser inconsciente, isto é, não deve ser deliberadamente provocada. Para compreendermos esta questão temos de examinar o que significa mudança. Nossa mente está acorrentada, condicionada pela sociedade, por nossa experiência, nossa herança racial, enfim, por todas as influências a que o homem está sujeito. Pode um ente humano libertar-se de tudo isso e, por si mesmo, descobrir um estado mental inteiramente incontaminado pelo tempo? Afinal, é isso o que todos nós estamos buscando. Cansados das diárias experiências da vida, de seu tédio, de sua trivialidade, desejamos alcançar, através da experiência, algo muito superior. Chamamos esse estado de Deus, uma visão, ou damos-lhe não importa o nome.

(...) Nós temos de mudar. Há em nós muito do animal: agressividade, violência, avidez, ambição, busca de sucesso, esforço para dominar. Podem esses remanescentes do animal ser totalmente erradicados, de modo que a mente deixe de ser violenta, agressiva? A menos que a mente se encontre em perfeita paz, em completa tranquilidade, não há a possibilidade de descobrir-se nada novo. Sem esse descobrimento, sem a transformação da mente, ficaremos meramente vivendo no processo temporal da imitação, continuaremos com o que era, a viver no passado. O passado não só está presente, mas também o presente é o passado.

Que se entende por mudança? Ela é uma inadiável necessidade, porquanto nossa vida é bastante trivial, vazia, monótona e estúpida, sem significação. Ter de frequentar diariamente um escritório durante os próximos quarenta anos, gera alguns filhos, estar sempre à procura de entretenimento, na igreja ou no campo de futebol — tudo isso, para um homem amadurecido, é muito pouco significativo. Sabemos disso, mas não sabemos o que devemos fazer; não sabemos como deter o processo temporal.

(...) Mudança, para a maioria de nós, significa um movimento em direção ao conhecido. Ora, isso não é uma mudança real, porém, uma continuação do que era, num padrão modificado. Todas as revoluções sociais se baseiam nessa espécie de mudança... Mas, isso não é nenhuma mudança, porém, mera reação; e a reação é sempre "imitativa".

Quando falamos de mudança, não se trata de mudança ou mutação de o que era para o que deveria ser. Espero que estejais observando o processo de vosso próprio pensar e percebendo não só a necessidade de mudança, mas também o vosso condicionamento, as limitações, os temores, as ansiedades, a total solidão e monotonia da vida. Estamos nos perguntando se essa estrutura pode ser totalmente demolida, para que possa se tornar existente um novo estado mental. Esse estado mental não pode ser preconcebido; se assim for, trata-se meramente de um conceito, de uma ideia; e uma ideia nunca é real.

(...) Só conhecemos o esforço como meio de efetuar qualquer mudança — mudança motivada sempre pelo prazer ou pela dor, pela recompensa ou a punição. Para se compreender a mudança, no sentido que damos à palavra, no sentido de mutação, de transformação total da mente, temos de investigar a questão do prazer. Se não compreendermos a estrutura do prazer, a mudança ficará sempre na dependência de prazer e da dor, da recompensa ou da punição. O que todos queremos é prazer, cada vez mais prazer — ou o prazer físico, do sexo, das posses, do luxo, etc. — o qual é muito fácil de compreender e de rejeitar — ou o prazer psicológico, no qual estão baseados todos os nossos valores morais, éticos, espirituais.

(...) O animal só deseja prazer. E, como disse, há muito do animal em nós. A menos que compreendamos a natureza da estrutura do prazer, a mudança ou mutação será uma mera forma de continuidade do prazer, no qual está sempre contida a dor... Que é prazer? Por que busca a mente com tanta persistência essa coisa chamada prazer? Por prazer entendo o sentir-nos superiores, psicologicamente, a violência e seu oposto, a não violência. Cada oposto contém o oposto respectivo; a não violência, por conseguinte, não é, de modo nenhum, não violência. A violência proporciona grande prazer. Há enorme prazer em adquirir, em dominar; e, psicologicamente, no sentimento de possuir uma certa capacidade, de ter alcançado um objetivo importante, no sentimento de ser inteiramente diferente de outra pessoa. Nesse princípio do prazer estão baseadas as nossas relações; nele se alicerçam os nossos valores éticos e morais. O prazer supremo não é só o sexo, porém a ideia de termos descoberto Deus, de termos descoberto algo totalmente novo. Estamos constantemente a esforçar-nos por alcançar esse prazer supremo. Alteramos os padrões de nossas relações. Não gosto de minha mulher e procuro vários pretextos para escolher outra mulher. É dessa maneira que estamos vivendo — nessa batalha constante, nessa luta interminável. Nunca refletimos sobre o que é o prazer, sobre se, psicologicamente, existe um estado real de prazer. Por meio do pensamento concebemos ou formulamos o prazer e desejamos alcançar esse prazer. O prazer, pois, pode ser produto do pensar.

Cumpre compreender tudo isso muito profundamente, perceber com máxima clareza a estrutura inteira do prazer, em vez de tratarmos de nos livrar dele, que é falta de maturidade. É isso o que fazem os monges, por todo este mundo. Estamos empregando a palavra "compreender" num sentido não intelectual, não emocional: no sentido de vermos uma coisa com toda a clareza, tal como é e não como gostaríamos que fosse; sem a interpretarmos de uma certa maneira, conforme nosso temperamento. Então, quando compreendemos uma coisa, isso não significa que uma mente individual a compreendeu, porém, sim, que há um total percebimento desse fato. Seria bastante absurdo e insincero, de nossa parte, dizermos: "Não estou em busca de prazer". Todos o estão buscando.

Para compreendermos o prazer, temos de examinar não só a questão do pensar, mas também a estrutura da memória... O prazer se torna existente por causa de uma experiência deleitável. A experiência foi-se, mas a lembrança ficou. Então a memória reage e, por meio do pensamento, deseja a repetição daquele prazer. A memória está sempre a esforçar-se. Isto é simples. O pensamento ocupa-se sempre com as coisas que proporcionam prazer — sexo, sucesso, etc.

(...) O meio cultural em que vivemos nos impôs certos padrões de comportamento, certos padrões de pensamento, certos padrões de moralidade. Quanto mais antiga a cultura ou civilização, tanto mais condicionada a mente se torna. Existe aquele padrão, que a mente está sempre a imitar, a seguir, sempre a ajustar-se a ele. Esse processo chama-se "ação". Se trata-se de atividade puramente técnica, está a mente meramente a copiar, a repetir, a acrescentar alguma coisa ao que era. Por que atuamos com uma ideia?...

(...) Vejo-me aflito. Psicologicamente, acho-me num estado de terrível perturbação. Tenho a ideia sobre o que devo fazer, o que não devo fazer, como proceder para alterar esse estado. Essa ideia, essa fórmula, esse conceito me impede de olhar o fato — o que é. A ideação e a fórmula são fugas ao que é. Há ação imediata em presença de um grande perigo. Não há então nenhuma ideia. Não formulamos primeiramente uma ideia, para agirmos de acordo com ela.

A mente se tornou preguiçosa, insensível, por causa da fórmula que lhe proporciona um meio de fuga à ação em presença do que é... Que necessidade tenho de uma ideia?... Quando sente fome, não há nenhuma ideia a esse respeito. Depois é que vem a ideia relativa ao que devemos comer; então, conforme dita-nos o desejo do prazer, comemos. Só há ação em relação ao que é, quando nenhuma ideia existe sobre o que se deve fazer a respeito do fato com que nos defrontamos, o qual é o que é.  

(...) Este é um problema que exige muito percebimento, e não um dado estado espiritual, absurdo, místico: percebimento das palavras que usais, do que falais, do que fazeis, do que pensais. Deveis estar conscientes de tudo isso, para começardes a descobrir por vós mesmos todos os movimentos de vossa mente, que é também a mente de todos os outros entes humanos do mundo. Não precisais de ler nenhuma filosofia ou psicologia, para descobrirdes o processo de vossa própria mente. Ele está à vossa frente; tendes de aprender a olhá-lo; e para olhá-lo, deveis estar conscientes não só das coisas externas, mas também dos movimento interiores. O movimento exterior é também o movimento interior; não existe "exterior" e "interior". É um movimento de constante intercâmbio. Tendes de estar conscientes desse movimento; mas não precisais ingressar num mosteiro para aprenderdes a estar consciente, o que tendes de fazer é apenas manter-vos vigilantes, todos os dias, ao entrardes num ônibus, num carro, ao fazerdes qualquer coisa. Isso exige enorme atenção, atenção significa energia. Começareis assim a descobrir como a energia se dissipa por causa de nosso interminável tagarelar e, por conseguinte, pela vigilância, começareis a estar conscientes sem escolha, sem gostar ou não gostar, sem condenação. Começareis a observar, simplesmente: a observar vossa maneira de andar, de falar, de tratar os outros. Esse mesmo ato de observar, sem nenhuma fórmula, produz uma tremenda energia. Não precisais tomar drogas para terdes energia. Vereis então por vós mesmos, que se opera uma mutação, sem a terdes desejado.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Por que não se experimenta algo que ultrapassa a mera observação?


Pergunta: Há muitos anos que vos ouço, e já me tornei bastante treinado em observar meus pensamentos e manter-me cônscio de tudo o que faço, mas nunca atingi as "águas profundas", nem experimentei a transformação de que falais. Por que?

Krishnamurti: Acho bastante clara a razão porque nenhum de nós experimenta algo que ultrapassa a mera observação. Pode haver raros momentos de um estado emocional, que nos permite ver, assim dizer, a claridade do céu por entre as nuvens, mas eu não me refiro a coisa dessa espécie. Todas as experiências dessa natureza são passageiras e de muito pouca satisfação. O interrogante deseja saber por que, depois de tantos anos de vigilância, não atingiu “águas profundas”. Por que deveria atingi-las? Compreendeis? Pensais que, pela vigilância dos vossos pensamentos, ides obter uma recompensa: se fizerdes isto, ganhareis aquilo. Em verdade não estais vigilante, em absoluto, visto que a vossa mente está toda interessada em obter aquela recompensa. Pensais que pelo observar, pelo estar vigilante, sereis mais amorosos, sofrereis menos, sereis menos irritadiço, alcançareis algo superior; assim, a vossa vigilância é uma operação de compra. Com esta moeda quereis comprar tal coisa, o que significa que vossa vigilância é um processo de escolha; por conseguinte, não é vigilância, não é atenção. Estar vigilante é observar sem escolha, é a pessoa ver a si mesma exatamente como é, sem nenhum movimento do desejo, para alterar o que vê, o que é dificílimo; mas isso não quer dizer que permanecereis no vosso estado presente. Não sabeis o que acontecerá, se virdes a vós mesmo como sois, sem desejardes modificar o que vedes. Compreendeis?

Vou aduzir um exemplo e apreciá-lo em todos os seus aspectos, para melhor esclarecimento. Suponhamos que eu sou violento, como o é a maioria das pessoas. Toda a nossa civilização é violenta, mas não pretendo examinar agora a anatomia da violência, pois não é este o problema que estamos considerando. Sou violento, e percebo que o sou. Que acontece? Minha reação imediata é a de fazer alguma coisa a esse respeito, não é verdade? Digo que me devo tornar não-violento. É isso o que dizem há séculos todos os instrutores religiosos — que quando uma pessoa é violenta, deve tornar-se não violenta. E assim, começo a exercitar-me, a fazer as coisas necessárias, de ordem ideológica. Mas depois percebo quanto isto é absurdo, porque a entidade que observa a violência e deseja transformá-la em não-violência, continua violenta. Agora, o que me interessa já não é a manifestação daquela entidade, mas a própria entidade. Espero que estejais seguindo tudo isso.

Ora, que entidade é essa, que diz: “Não devo ser violenta”? Essa entidade é diferente da violência, que ela está observando? São dois estados diferentes? Compreendeis, senhores, ou isto é abstrato demais? Já estamos chegando ao fim da palestra, e provavelmente vos sentis um tanto fatigados. Ora, não pode haver dúvida de que a violência e a entidade que diz “Tenho de transformar a violência em não-violência” são a mesma entidade. Reconhecer este fato é por fim a todos os conflitos, não achais? Já não existe então o conflito que há no esforço que faço para modificar-me, porque percebo que o próprio movimento da mente para não ser violento é produto da violência. O interrogante indaga porque razão não consegue ir além dessas lutas superficiais da mente. Pela razão muito simples de que, consciente ou inconscientemente, a mente está sempre a buscar alguma coisa, e esta mesma busca produz violência, competição, o sentimento de total insatisfação. Só quando a nossa mente está na mais completa quietude, existe a possibilidade de serem atingidas as águas profundas.

Krishnamurti – Realização sem esforço – pág. 85 à 87 – 21 de agosto de 1955

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Compreendendo a anatomia da fundamental transformação interior

Para a maioria de nós, se já temos refletido nestes assuntos, a idéia de transformação deve ser um tanto confusa; porque já vimos que as chamadas revoluções, embora tenham produzido certos efeitos externos, talvez benéficos, se tornaram, afinal, profundamente prejudiciais ao homem. É bem de ver que a transformação fundamental deve ser algo mais do que simples mudança de uma estreita esfera de pensamento para outra. Com as coisas correndo como estão, no mundo, pode-se perceber a necessidade de mudança radical de alguma espécie, não só nos níveis econômico e social, mas também profundamente, no íntimo de cada um de nós; e para os que pensam verdadeiramente, a sério nestas questões, o problema deve ser o de como produzir a transformação. A transformação operada mediante compulsão, em qualquer forma, não é, obviamente, transformação nenhuma. Se sou forçado ou influenciado a transformar-me, isso não é uma verdadeira transformação, porquanto estou apenas me ajustando a um padrão que me foi imposto de fora ou que eu próprio estabeleci. Tampouco a transformação consiste em adaptar-se a pessoa a um certo ambiente, pois isso é apenas ajustar-se a um modelo que se julga será benéfico ou um melhor método de vida.

Ora, se se percebe que o ajustamento, o conformismo, ou qualquer espécie de mudança operada pela compulsão o por determinada influência não é mudança nenhuma, como então promover a mudança? A transformação fundamental é evidentemente essencial, não só neste país mas no mundo inteiro; e como pode iniciar-se essa transformação não resultante de compulsão, conformismo ou ajustamento?

Pensamos em geral que o ajustamento, a adaptação, ou o sermos obrigados a agir num certo sentido, é um processo de transformação, e nunca tivemos dúvidas sobre se isso é realmente uma transformação revolucionária. Eu não acho que seja; porque, se observardes a vós mesmos quando vos estais adaptando, ajustando, quando vos deixais influenciar ou compelir, vereis que apenas vos encaixais num padrão de pensamento, antigo ou moderno, e que vossa essência íntima em nada mudou.

Portanto, o problema é: como podemos mudar radicalmente, essencialmente? Não sei se já tendes pensado bem nisso, pois em geral permitimos de bom grado que nos ajustem a um padrão; pensamos ser suficiente produzir uma transformação parcial no mundo, e com isso nos satisfazemos. Mas, se examinardes a questão com profundeza, tereis então de interrogar-vos como será possível transformar a totalidade de nosso ser, de nossa consciência, como se poderá operar uma revolução completa no pensar e na apreciação dos valores. Porque, evidentemente, só essa transformação revolucionária, profunda, interior, no âmago de nosso ser, pode efetivamente libertar a força criadora da realidade e criar um mundo de todo diferente. Se não houver essa fundamental transformação interior, o mero ajustamento externo, a aquisição de mais alguns conhecimentos, o estabelecimento de mais algumas reformas, etc., é realmente uma coisa muito superficial. É como vestir uma capa nova, enquanto por baixo continuam existentes as mesmas condições antigas. Assim, se a questão deveras vos interessa, como pode uma pessoa mudar inteiramente?

Permiti-me sugerir-vos escutardes o que estou dizendo sem emitir julgamento, sem dizer que é impossível. Por favor, não traduzais o que se está dizendo nos termos dos vossos próprios conhecimentos, nem o escuteis em atitude defensiva, comparando-o com o que outros vos disseram ou com o que lestes nos livros sagrados — que não são mais sagrados do que outro livro qualquer. Escutar é uma tarefa bem difícil; em geral, nunca prestamos ouvidos senão à voz de nosso próprio pensar, de modo que, na realidade, nada nos é comunicado. Escutar com julgamento, comparando o que se ouve com o que já se sabe ou leu, é uma forma de distração. Mas, se sois capaz de escutar sem comparação, com atenção natural, então o próprio ato de escutar é um ato de meditação que, indubitavelmente, gera profunda transformação. Tentai de quando em quando observar-vos, para ver se escutais realmente alguma coisa, o que vossos amigos dizem, o que diz vosso marido ou esposa, o que diz vosso patrão — e vereis que vossa mente está sempre totalmente ausente. Simulais estar escutando, mas só escutais pela metade; ou tendes medo, ou estais enfadado, ou simplesmente não desejais escutar e, portanto, não há comunicação direta. Como disse, o escutar, por si só, opera um extraordinário milagre. O próprio ato de escutar produz uma compreensão imensa, sem esforço algum de vossa parte; e, uma vez que vos achais aqui e eu vos estou falando, desejo sugerir, se permitis, que escuteis para descobrir o que estou tentando transmitir-vos.

A meu ver, uma transformação fundamental — não um "ressurgimento religioso" mas uma revolução religiosa —precisa ser efetuada, porquanto, sem ela, os nossos problemas se multiplicarão; embora tenhamos geladeiras e outras coisas mais, ir-nos-emos tornando cada vez mais superficiais e teremos tribulações maiores ainda. E para se operar essa transformação profunda, no íntimo de nosso ser, não há dúvida de que temos de investigar o problema da consciência e compreender a anatomia da transformação.   A maioria de nós procura transforma-se mediante esforço, não é verdade? Isto é, vemos que somos cruéis e dizemos: "Preciso transformar-me"; e, assim, empenhamo-nos em nos transformar, tentamos forçar-nos, pela disciplina, a não ser cruéis. Ora, examinemos o impulso que nos leva a desejar modificar-nos, porque, se não compreendemos esse impulso, se não compreendemos totalmente esse processo de consciência que diz: "Preciso modificar-me", não é possível nenhuma transformação básica, ainda que haja ajustamentos superficiais.

Por favor, não escuteis o que estou dizendo comparando-o com o que lestes acerca da consciência no Bagavagita ou noutro livro qualquer, porque o que estamos tentando fazer não é comunicar idéias, porém, antes, experimentar diretamente o que estamos escutando. A menos que experimentemos o que estamos escutando, estas palestras nenhum valor terão; serão apenas mais um conjunto de idéias, um processo de "mentalização", o qual, por mais interessante que pareça, nenhuma significação terá. Mas se, ao contrário, vós e eu estivermos realmente escutando o que se está dizendo — vós aí sentados e eu aqui a falar-vos —, se, através da descrição verbal, cada um de nós está observando o funcionamento de sua própria mente, então acho que estas palestras serão realmente úteis.

Estamos, pois, tentando descobrir como poderemos transformar-nos, não apenas superficialmente, mas no âmago de nosso ser, e isto significa que temos de investigar a questão da consciência. Quando pergunto a mim mesmo o que é a consciência, existe um interrogante separado da pergunta, não é verdade? Existe a entidade que fez a pergunta e está aguardando a resposta; e esse "processo" é o começo da consciência, não é? O interrogante diz: "Preciso saber como funciona a consciência" — e começa então a investigar; e tanto a investigação como a resposta dependem de como ele fez a pergunta.

Por outras palavras: Eu desejo saber o que é a consciência, e não se trata de uma pergunta vã ou simplesmente curiosa. Pergunto a mim mesmo o que é a consciência, porque vejo que preciso transformar-me fundamentalmente, que a totalidade de meu ser precisa passar por uma transformação completa. Ora, essa transformação revolucionária se efetua por meio de uma série de esforços por parte daquele que diz: "Preciso transformar-me"? Deve ele desenvolver a necessária qualidade de vontade, e transformar-se de acordo com essa vontade? Compreendeis?
Estou-me interrogando e espero estejais também perguntando a vós mesmos o que é esta consciência, este "eu" que diz "Preciso transformar-me". Qual a impulsão, a ação, a força do inquiridor que tenta modificar-se? Esse processo acha-se na esfera da consciência, na esfera do pensar, não é verdade? Estais seguindo? Isso não é muito complexo, porém, bem simples.

Quando desejo modificar-me, já tenho o modelo ou a idéia segundo a qual devo modificar-me. Isto é verdade, não? Ora, isso é realmente transformação ou é tão só um movimento do "conhecido" para outro "conhecido"? Compreendeis? Porque sou cruel, digo que devo ser bondoso. O "processo" de esforçar-me para ser bondoso é um movimento no sentido de uma coisa já conhecida; e isso é realmente transformação? Há transformação se me movimento para algo que conheço? Ora, por certo, só há transformação se a mente se move para o desconhecido. Quando ela persegue aquilo que já experimentou, seu movimento é meramente uma continuação do conhecido em forma modificada e, por conseguinte, não é transformação nenhuma.

Suponhamos que, sendo violento, tenho o ideal de "não-violência". O ideal já é conhecido. Imaginei o que não é ser violento e, portanto, o ideal nasceu de meu atual estado de violência, e quando me modifico no sentido desse ideal, estou-me movendo dentro da esfera do conhecido; por coseguinte, isso não é transformação. Esse é o "processo" inteiro da consciência, não? Senhores, não concordeis comigo, pois tendes de pensar nisso de maneira completa, senti-lo integralmente.

Forcejo para transformar-me em conformidade com o que chamo o ideal e que é o oposto daquilo que experimentei como "violência"; consequentemente, criei um conflito entre o que é  e o que deveria ser, e considero esse conflito necessário para se produzir a modificação. Tudo isso é "processo" da consciência, não? Quer consciente, quer inconsciente, esse "processo" é a consciência. Se vós mesmos o virdes claramente, descobrireis algo extraordinário.

Estou, pois, perguntando a mim próprio se há transformação ao esforçar-me para transformar-me. Quando me esforço para transformar-me, há transformação ou apenas o ajustamento a um padrão estabelecido por mim mesmo ou por algum agente externo? Isto é, qualquer espécie de transformação baseada na tradição ou na autoridade não é transformação nenhuma, porque então nos estamos apenas ajustando a uma idéia, e todas as idéias fazem parte do "conhecido", resultam do fundo (background) que as "projeta". Assim, qualquer mudança operada por meio do esforço em direção àquilo que chamamos "ideal" — que é o "conhecido" — não é transformação nenhuma. Quando se persegue o ideal da "não violência", por exemplo, deseja-se alcançar um certo estado por meio de compulsão, ajustamento a padrão — e isso é outra forma de violência.

A consciência é esse movimento do conhecido para o desconhecido, movimento de compulsão, de esforço. Ao dizer o comunista: "Eu tenho o correto padrão da existência", esse padrão origina-se daquilo que ele já conhece. Ele cria uma utopia consoante com seu conhecimento e interpretação da história e, se é um homem importante, leva a cabo o seu plano, enquanto nós, a massa do povo, nos submetemos. É isso o que tem acontecido, numa ou noutra forma, em todas as partes do mundo. Os Shankaras, os líderes, os instrutores têm idéias, nós as lemos e a elas nos ajustamos e pensamos que nos estamos transformando. Poderá ocorrer um ajustamento superficial, mas não há transformação nenhuma, no sentido a que me refiro, isto é, a transformação total do nosso ser, de forma que nossa maneira de pensar seja totalmente nova.

O que é novo não pode produzir-se mediante esforço, mediante movimentação do conhecido para o conhecido, ou seja, a perseguição do ideal. E, no entanto, é isso que estais fazendo em vossa vida de cada dia, não é verdade? Percebeis que sois ambicioso, ou cruel, ou invejoso, e dizeis: "Preciso transformar-me", e começais a ajustar-vos ao padrão de um ideal que vós ou outros estabeleceram, e pensais que essa é uma importantíssima transformação. Mas, se realmente o examinardes, se penetrardes todo o processo psicológico do pensar, vereis que enquanto a mente está pensando em termos de uma dualidade, tal seja a "violência" e "não violência", enquanto se empenha em ajustar-se ao oposto daquilo que ela é — o qual é meramente a projeção do conhecido e, portanto, uma continuação da mesma coisa em forma modificada — não pode haver transformação básica.

O importante, pois, é compreender, perceber ou experimentar realmente a falsidade de vosso esforço para vos transformardes. Os gurus, os mahatmans, os mestres e todos os livros religiosos vos mandam forcejar, controlar-vos, disciplinar-vos, e ao perceber que esse esforço é realmente falso significa que deveis ser capaz de olhá-lo sem a autoridade do líder, político ou religioso, inclusive eu próprio. Para "experimentardes" a verdade ou a falsidade do que vedes, não podeis interpretá-lo de acordo com outra pessoa, não importa quem seja ela. Se penetrardes essa questão a perceberdes claramente, por vós mesmo, que não pode haver transformação enquanto há ajustamento, isto é, enquanto vos estais obrigando a adaptar-vos a um padrão estabelecido por vós ou por outro — se perceberdes realmente a verdade ou a falsidade disso, vereis então que vossa mente se despojou de toda e qualquer autoridade; e não é esse o verdadeiro começo  de uma revolução fundamental?

parece-me haver necessidade — principalmente no tempo presente — de pessoas vivamente interessadas nessas coisas — mas não me refiro às que se dedicam seriamente ao Gita, ao comunismo, ou a outro padrão qualquer, porquanto elas são simplesmente "conformistas". Refiro-me às pessoas que séria e ardentemente desejam descobrir como efetuar em si mesmas uma revolução total. Apresenta-se, assim, a questão: Pode a mente libertar-se do conhecido? — pois só então há transformação fundamental.

Notai, por favor, senhores, que isto requer muita penetração, investigação. Não concordeis comigo, mas examinai, meditai, dissecai vossa mente, para descobrirdes a verdade ou a falsidade de tudo isso. Saber o que é o "conhecido" pode produzir transformação? Preciso ter conhecimentos para construir uma ponte; mas há necessidade de minha mente sabem em que vai transformar-se? Certo, se sei qual será o estado de minha mente depois de transformar-me, então já não há transformação. Esse conhecimento é prejudicial à transformação, porquanto se torna um meio de satisfação e, enquanto existir um centro em busca de satisfação, recompensa ou segurança, não há transformação nenhuma. E todos os nossos esforços baseiam-se nesse centro constituído pela idéia de recompensa, punição, êxito, ganho, não é verdade? Eis o que interessa à maioria de nós, e se ele nos ajuda a obter o que desejamos, mudaremos; mas essa mudança não é, de modo nenhum, a verdadeira transformação. Assim, a mente que deseja achar-se, fundamentalmente, profundamente, num estado de transformação, num estado de revolução, deve livrar-se do "conhecido". Ela então se torna sobremodo tranquila, e só nesse estado poderá experimentar a transformação radical indispensável.

Krishnamurti - O Homem Livre - Ed. Cultrix - pág. 29 à 34 
Nova Deli - 21 de outubro de 1956
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill