Se você se sente grato por este conteúdo e quiser materializar essa gratidão, em vista de manter a continuidade do mesmo, apoie-nos: https://apoia.se/outsider - informações: outsider44@outlook.com - Visite> Blog: https://observacaopassiva.blogspot.com

Mostrando postagens com marcador relacionamento. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador relacionamento. Mostrar todas as postagens

domingo, 9 de março de 2014

No autoconhecimento não há esforço


O autoconhecimento vem quando vocês se observam em seu relacionamento com seus companheiros e seus professores, com todas as pessoa à volta; vem quando observam o comportamento do outro, os gestos, a maneira como se veste, como fala, seu desprezo ou bajulação e sua resposta; surge quando vocês observam tudo em vocês , sobre vocês, e se veem a si  mesmos enquanto enxergam o próprio rosto no espelho. 

Pergunta: O que é autoconhecimento, como alcançá-lo?

Krishnamurti: Veem a mentalidade por trás desta pergunta? Não estou falando por desrespeito a quem a formulou, mas vamos considerar a mentalidade de quem pergunta "como alcançá-lo, por quanto posso comprá-lo? O que devo fazer, que sacrifício empreender, qual disciplina, ou meditação devo praticar para consegui-lo?". É como uma mente mecanizada, medíocre, que diz: "Devo fazer isto para conseguir aquilo." As chamadas pessoas religiosas pensam assim; porém o autoconhecimento não surge dessa maneira. Vocês não podem comprá-lo por meio de algum esforço ou prática. O autoconhecimento vem quando vocês se observam em seu relacionamento com seus companheiros e seus professores, com todas as pessoa à volta; vem quando observam o comportamento do outro, os gestos, a maneira como se veste, como fala, seu desprezo ou bajulação e sua resposta; surge quando vocês observam tudo em vocês , sobre vocês, e se veem a si  mesmos enquanto enxergam o próprio rosto no espelho. Quando vocês se olham no espelho, se veem como são, não é? Podem desejar que sua cabeça tivesse um formato diferente, com um pouco mais de cabelo, e o rosto menos feio; mas o fato está ali, claramente refletido no espelho, e vocês não podem afastá-lo e dizer: "Como sou bonito!"

Mas, se puderem olhar o relacionamento exatamente como olham um espelho comum, certamente não haveria fim para o autoconhecimento. É como entrar em um oceano insondável, sem limites. A maioria de nós deseja chegar a um fim, ser capazes de dizer "Cheguei ao autoconhecimento e estou feliz", mas não é assim. Se puderem se olhar sem condenar o que veem, sem se comparar com alguém, sem desejar ser mais belo, ou mais virtuoso, se puderem somente observar como são e como se comportam, então descobrirão que é possível ir infinitamente além. E não haverá fim para a viagem — esse seu mistério, sua beleza.


Krishnamurti — Pense nisso

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Um olhar sobre nossas relações - IV

O que chamamos relação,
é isolamento

A vida é experiência, experiência em relação. Não se pode viver no isolamento; a vida portanto, é relação, e relação é ação. E como adquirir a capacidade de compreender as relações, que é a vida? Não significam as relações, não só comunhão com pessoas, mas também intimidade com coisas e ideias? A vida são relações, que se expressam no contato com coisas, pessoas, ideias. Compreendendo as relações, teremos capacidade para enfrentar a vida de maneira completa, adequada. Nosso problema, portanto, não é ter capacidade — pois esta não é independente das relações — porém, antes, compreender as relações, o que naturalmente produzirá a capacidade de pronta flexibilidade, pronto ajustamento, pronta reação. 

As relações, sem dúvida, são um espelho em que nos descobrimos. Sem relações não existimos. Ser é estar em relação, estar em relação é existir. Só existis em relação, de outro modo não existis, a existência nada significa. Não é porque pensais, que existis, que vos tornais existentes. Existis porque estais em relação, e é a falta de compreensão das relações que causa conflito. 

Ora, não há compreensão das relações porque nos servimos delas apenas como meio de promover alguma realização, promover transformação, promover o "vir a ser". Mas as relações são um meio de autodescobrimento, porque estar em relação é ser, é existência. Sem relações, não existo. Para compreender a mim mesmo, preciso compreender as relações. As relações são um espelho, em que posso ver-me, a mim mesmo. Esse espelho pode deformar ou refletir fielmente o que é. Mas a maioria de nós vê nas relações as coisas que prefere ver; não vê o que é. Preferimos idealizar, fugir, preferimos viver no futuro, a compreender aquelas relações no presente imediato. 

Ora, se examinarmos nossa vida, as relações existentes entre nós, veremos que elas constituem um processo de isolamento. Não estamos verdadeiramente interessados uns nos outros; embora falemos muito a esse respeito, não estamos de fato interessados. Só estamos em relação com alguém enquanto essas relações nos agradam, enquanto nos proporcionam um refúgio, enquanto nos satisfazem. No momento em que ocorre qualquer perturbação, causadora de desconforto para nós, abandonamos essas relações. Em outras palavras, só há relações enquanto estamos satisfeitos. Isso pode parecer uma maneira rude de falar, mas se examinardes realmente vossa vida, com muita atenção, vereis que é um fato. Evitar um fato é viver na ignorância, que nunca pode produzir relações corretas. Se examinarmos nossas vidas e observarmos nossas relações, veremos que elas são um processo de criação mútua de resistência, de uma muralha por sobre a qual nos olhamos e nos observamos, uns aos outros. Conservamos sempre a muralha e permanecemos atrás dela, quer seja da muralha psicológica, quer seja da material, da muralha econômica, da muralha nacional. Enquanto vivemos no isolamento, atrás da muralha, não há relações entre nós. Vivemos fechados, porque achamos muito mais agradável, muito mais seguro. O mundo está tão fracionado, há tanto sofrimento, tanta dor, guerra, destruição, miséria, que desejamos fugir e viver dentro das muralhas protetoras de nosso ser psicológico. As relações, pois, no caso de quase todos nós, são, de fato, um processo de isolamento, e é bem óbvio que tais relações criam uma sociedade, também causadora de isolamento. É isso, exatamente, o que está acontecendo no mundo inteiro: vós permaneceis no vosso isolamento, e estendeis a mão por cima da muralha, chamando a isso nacionalismo, fraternidade, ou o que quiserdes, mas o fato é que continuam a existir os governos soberanos, com seus exércitos. Enquanto apegados às vossas limitações, pensais poder criar a unidade mundial, a paz mundial — coisa de todo impossível. Enquanto tiverdes uma fronteira nacional, econômica, religiosa, ou social, é bem claro que não pode haver paz no mundo. 

O processo de isolamento está ligado à busca de poder. Quer estejamos buscando o poder individualmente, quer para um grupo racial ou nacional, haverá isolamento, porque o próprio desejo de poder, de posição, é separatismo. Afinal, é isso o que cada um deseja, não é verdade? Cada um quer ocupar uma posição poderosa, uma posição de domínio, seja no lar, seja no escritório, seja num regime burocrático. Procura cada um o poder e nessa busca de poder fundará uma sociedade baseada no poder — militar, industrial, econômico, etc. — o que também é evidente. O desejo de poder não é, por sua própria natureza, causador de isolamento? Julgo muito importante compreender isso, porque o homem que deseja um mundo pacífico, um mundo em que não haja guerras, não haja destruição e miséria, em escala aterradora, imensurável, deve compreender esta questão fundamental. Um homem afetuoso, benevolente, não tem espírito de poderio e portanto não está ligado a nacionalidade nem a bandeira alguma. Esse homem não tem bandeira. 

Não há coisa tal como viver no isolamento; nenhum país, nenhum povo, nenhum indivíduo pode viver no isolamento. Entretanto, porque estais em busca de poder, de tantas maneiras diferentes, criais o isolamento. O nacionalista é uma praga, porque, com seu espírito nacionalista, patriótico, está construindo uma muralha de isolamento. Tão identificado está com seu país, que ergue uma muralha contra outro país. Que acontece quando construímos uma muralha contra alguma coisa? Essa coisa fica a chocar-se constantemente contra vossa muralha. Quando resistis a uma coisa, essa própria resistência indica que estais em conflito com ela. O nacionalismo, por consequência, que é um processo de isolamento, que é um resultado de busca de poder, não pode trazer paz no mundo. O homem que é nacionalista e fala de fraternidade, está mentindo, está vivendo em estado de contradição. 

Pode-se viver no mundo sem o desejo de poder, de posição, de autoridade? Pode-se, é claro. Vivemos assim quando não nos identificamos com uma coisa "maior". Essa identificação com uma coisa "maior" — o partido, a pátria, a raça, a religião, Deus — é busca de poder. Porque vós mesmos sois vazios, embotados, sois fracos, gostais de identificar-vos com uma coisa maior. Esse desejo de identificação com uma coisa maior é desejo de poder. 

As relações são um processo de auto-revelação e se, desconhecendo a nós mesmos, desconhecendo as tendências de nossa mente e do nosso coração, procuramos apenas estabelecer uma ordem externa, um sistema, uma fórmula engenhosa, o que estabelecermos terá pouca significação. O importante é que compreendamos a nós mesmos em relação com os outros. As relações se tornam, assim, não um processo de isolamento, mas um processo no qual descobrimos nossos próprios "motivos", nossos próprios pensamentos, nossos próprios desígnios; e esta descoberta é o começo da libertação, o começo da transformação.

Jiddu Krishnamurti — A primeira e última liberdade     

Um olhar sobre nossas relações - III

A complexidade dos relacionamentos

Relacionamentos são complexos e difíceis, e poucos conseguem sair deles ilesos. Embora quiséssemos que fosse estático, duradouro e contínuo, o relacionamento é um movimento, um processo que deve ser profunda e completamente entendido, e não forçado a se conformar a um padrão interno ou externo. A conformidade, que é a estrutura social, perde seu peso e autoridade somente quando há amor. O amor no relacionamento é um processo purificador, pois revela os mecanismos do Eu. Sem essa revelação, o relacionamento tem pouca importância. 

Mas como lutamos contra essa revelação! A luta assume muitas formas: controle ou submissão, medo ou esperança, ciúme ou aceitação e assim por diante. A dificuldade é que nós não amamos; e se de fato amamos, queremos que isso funcione e uma forma particular, não lhe damos liberdade. Nós amamos com nossas mentes e não com os nossos corações. A mente pode se modificar, mas o amor, não. A mente pode se tornar invulnerável, mas o amor, não; a mente pode sempre se retrair, ser exclusivista, tornar-se pessoal ou impessoal. O amor não é para ser comparado e tolhido. Nossa dificuldade está naquilo que chamamos de amor, que realmente é da mente. Enchemos nossos corações com as coisas da mente e mantemos nossos corações sempre vazios e cheios de expectativas. É a mente que se apega, que é ciumenta, que controla e destrói. Nossa vida é dominada pelos centros físicos e pela mente. Nós não amamos e deixamos em paz, mas ansiamos ser amados; nós damos a fim de receber, que é a generosidade da mente, não do coração. A mente está sempre buscando garantia, segurança; e pode o amor ser garantido pela mente? Pode a mente, cuja própria essência é temporal, perceber o amor, que é sua própria eternidade? 

Mas mesmo o amor do coração tem seus próprios truques; pois corrompemos tanto nosso coração que ele é hesitante e confuso. É isso que torna a vida tão dolorosa e cansativa. Em um momento nós achamos que temos amor e no próximo ele é perdido. Aí entra uma força imponderável, que não é da mente, cujas fontes não podem ser sondadas. Essa força é mais uma vez destruída pela mente; pois nessa batalha a mente, invariavelmente, parece ser a vitoriosa. Esse conflito dentro de nós mesmo não será resolvido pela mente astuta ou pelo coração hesitante. Não há um meio, uma maneira de fazer esse conflito terminar. A própria busca por um meio é outro anseio da mente por domínio, para livrar-se do conflito e ficar tranquila, para ter amor, para tornar-se algo. 

Nossa maior dificuldade é estar ampla e profundamente atentos ao fato de que não existem meios para o amor como um objetivo desejável da mente. Quando entendemos isso real e profundamente, há uma possibilidade de receber algo que não é desse mundo. Sem o toque desse algo, façamos o que quisermos, não poderá haver felicidade duradoura no relacionamento. Se você receber essa graça e eu não, naturalmente, estaremos em conflito. Você pode não estar em conflito, mas eu estarei; e em minha dor e tristeza eu me desligarei. A dor é tão exclusiva quanto o prazer, e até que exista aquele amor que não seja uma construção minha, o relacionamento será dor. Se houver a benção daquele amor, você nada poderá fazer a não ser me amar pelo que sou, pois então não moldará o amor segundo o meu comportamento. Quaisquer que sejam os truques da mente, somos independentes; embora possamos estar em contato um com o outro em alguns pontos, a integração não é com você, mas dentro de mim. Essa integração não é resultado da mente em nenhum momento; ela toma forma somente quando a mente está inteiramente silenciosa, tendo alcançado o limite da suas forças. Somente assim não existe dor no relacionamento. 

Jiddu Krishnamurti — Comentários sobre o viver       

Um olhar sobre nossas relações - II

Família:
o auto-interesse egocentrado
Você considera o casamento uma instituição para estabelecer uma família? A família não é uma unidade em oposição à sociedade? Não é o centro do qual todas as atividades se irradiam, um relacionamento exclusivo que domina todas as outras formas de relacionamento? Ela não é uma atividade fechada em si mesma que produz divisão, separação, o importante e o humilde, o poderoso e o fraco? A família como um sistema parece resistir a tudo; cada família se opõe a outras famílias, outros grupos. A família, como sua propriedade, não é uma das causas da guerra? 

(...) A família como está agora é uma unidade de relacionamento limitado, fechada em si mesma e exclusiva. Os reformadores e os supostos revolucionários tentaram abolir esse espírito de família exclusivista que gera todo tipo de atividade antissocial; mas ela é um centro de estabilidade como o oposto da insegurança, e a atual estrutura social no mundo inteiro não pode existir sem essa segurança. A família não é uma simples unidade econômica, qualquer esforço para resolver essa questão nesse nível obviamente fracassará. O desejo por segurança não é apenas econômico, mas muito mais profundo e complexo. Se o homem destruir a família, encontrará outras formas de segurança por meio do Estado, do coletivo, da crença e assim por diante, que, por sua vez, gerará os próprios problemas. Precisamos entender o desejo por segurança interior e psicológica, e não simplesmente substituir um padrão de segurança por outro. 

Então o problema não é a família, mas o desejo de estar seguro. O desejo de segurança não é, em qualquer nível, exclusivo? Esse espírito de exclusividade revela-se na família, na propriedade, no Estado, na religião, etc. Esse desejo de segurança interior não estabelece formas exteriores de segurança  que são sempre exclusivas? O próprio desejo de estar seguro destrói a segurança. Exclusão e separação devem, inevitavelmente, produzir desintegração; o nacionalismo, o antagonismo de classes e a guerra são seus sintomas. A família como meio de segurança interior é uma fonte de desordem e catástrofe social. 

(...) Somente quando não procurarmos a segurança interior é que poderemos viver exteriormente seguros. Enquanto a família for o centro da segurança, haverá desintegração social; enquanto a família for usada como um meio para um fim autoprotetor, deverá haver conflito e infelicidade.(...) Enquanto eu usá-la, ou outra pessoa, para minha segurança psicológica, interior, terei de ser exclusivo; eu serei o mais importante, eu terei o maior significado; é a minha família, a minha propriedade. O relacionamento de utilidade é baseado na violência; a família como meio de segurança interior mútua provoca conflito e confusão. 

(...) Usar o outro como meio de satisfação e segurança não é amor. O amor nunca é segurança; o amor é um estado no qual não há o desejo de estar seguro; é um estado de vulnerabilidade; é o único estado no qual a exclusividade, a animosidade e o ódio são impossíveis. Nesse estado, a família pode tomar forma, mas ela não será exclusiva, fechada em si mesma. 

(...) É bom estar consciente dos comportamentos habituais do próprio pensamento. O desejo interior de segurança expressa-se exteriormente pela exclusão e violência, e, enquanto seu processo não for totalmente entendido, não poderá haver amor. O amor não é outro refúgio na busca por segurança. O desejo por segurança precisa cessar totalmente para o amor existir. O amor não é algo que possa ser produzido por meio da compulsão. Qualquer forma de compulsão, em qualquer nível, é a própria negação do amor.(...) Só o amor pode produzir uma revolução ou transformação radical no relacionamento; e o amor não é um produto da mente. O pensamento pode planejar e formular estruturas magníficas de esperança, mas só levará a mais conflito, confusão e infelicidade. O amor existe quando a mente astuta e fechada em si mesma não existe.

Jiddu Krishnamurti — Comentários sobre o viver 

Um olhar sobre nossas relações - I

É possível haver algum relacionamento entre nós quando usamos a nós mesmos para nossa satisfação mútua? Quando você usa outra pessoa para seu conforto, como usa um móvel, você está se relacionando com aquela pessoa? Você está se relacionando com o móvel? Você pode chamá-lo de seu e isso é tudo; mas você não tem um relacionamento com ele. De modo semelhante, quando você usa outra pessoa em seu proveito psicológico ou físico, geralmente chama essa pessoa de sua, você a possui; e a posse é relacionamento? O Estado usa o indivíduo e o chama de seu cidadão; mas ele não tem relacionamento com o indivíduo. Ele simplesmente o usa, como uma ferramenta. Uma ferramente é uma coisa morta, e não pode haver relacionamento com aquilo que está morto. Quando usamos o homem com um propósito, ainda que nobre, nós o queremos com um instrumento, uma coisa morta. Não podemos usar uma coisa viva, então nossa demanda é por coisas mortas. O uso de outro torna aquela pessoa o instrumento morto de nossa satisfação. O relacionamento pode existir apenas entre os vivos, e o uso é um processo de isolamento. É esse processo de isolamento que gera conflito, antagonismo entre o homem e o homem. 
(...)
A existência é relacionamento; existir é estar relacionado. Relacionamento é sociedade. A estrutura de nossa sociedade atual, por se basear no uso mútuo, produz violência, destruição e infelicidade; e se o suposto Estado revolucionário não alterar os fundamentos desse uso, só poderá produzir, talvez um nível diferente, ainda mais conflito, confusão e antagonismo. Enquanto precisarmos psicologicamente um dos outros, e nos usarmos não poderá haver relacionamento. Relacionamento é comunhão; e como poderá haver comunhão se houver exploração? Exploração envolve medo — e o medo, inevitavelmente, leva a todo tipo de ilusões e infelicidade. O conflito só existe na exploração, e não no relacionamento. O conflito, a oposição e a inimizade existem entre nós quando há o uso de outro como um meio de prazer, de realização. Esse conflito, obviamente, não pode ser resolvido pelo uso dele mesmo como um meio para uma meta autoprojetada; e todos os ideais, todas as utopias, são autoprojetados. perceber isso é essencial, pois assim conseguiremos experienciar a verdade de que o conflito em qualquer forma destrói o relacionamento, o entendimento. Só há entendimento quando a mente está silenciosa; e a mente não está silenciosa quando está presa a uma ideologia, dogma ou crença ou quando está associada ao padrão da própria experiência, de suas lembranças. A mente não está silenciosa quando ela é disciplinada, controlada e verificada; essa mente é uma mente morta, está se isolando por meio de várias formas de resistência, criando assim, inevitavelmente, infelicidade para si mesma e para os outros. 

A mente só está silenciosa quando não está presa em pensamentos, que é a rede da própria atividade. Quando a mente está quieta, não tornada quieta, um fator verdadeiro, o amor, toma forma.

Jiddu Krishnamurti

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Observando a exata natureza de nossas relações

Antes de alterar a sociedade, temos de compreender toda a nossa estrutura, a maneira do nosso pensar, a maneira da nossa ação, a natureza das nossas relações com pessoas, ideias e coisas. A revolução na sociedade deve começar com a revolução no nosso próprio pensar e agir. A compreensão de nós mesmos é de importância precípua, se desejamos realizar uma transformação radical na sociedade; e a compreensão de nós mesmos é autoconhecimento. Ora, temos feito do autoconhecimento uma coisa extremamente difícil e remota. As religiões tornaram o autoconhecimento muito místico, abstrato e distante; mas se examinarmos com cuidado, veremos que o autoconhecimento é muito simples e requer, apenas, atenção às relações; e ele é essencial, se desejamos uma revolução fundamental na estrutura da sociedade. Se você, o indivíduo, não compreende as tendências do seu próprio pensamento, e das suas atividades, a mera realização de uma revolução superficial na estrutura exterior da sociedade só criará mais confusão e sofrimento. Se não conhece a si mesmo, se segue outra pessoa, sem conhecer todo o processo do seu próprio pensar e sentir, você será, obviamente, levado a mais confusão e mais desastres. Afinal de contas, a vida é relação, e sem relações não há possibilidade de vida. Não há vida no isolamento, porque o viver é um processo de relações; e as relações não se efetuam com abstrações, mas sim com a propriedade, com pessoas, com ideias. Em suas relações, você vê a si mesmo, tal como é, não importa como seja, se feio ou belo, se sensível ou grosseiro; no espelho das relações você vê com precisão todo problema novo, toda estrutura de si mesmo, tal como é. Porque você julga impossível alterar fundamentalmente as suas relações, procura fugir, intelectual ou misticamente, e essa fuga só criará novos problemas, mais confusão e mais desastres. Mas se, ao invés de fugir, você examinar a sua vida de relação e compreender toda a estrutura dessas relações, terá a possibilidade de ultrapassar aquilo que está muito próximo. Por certo, para ir longe precisamos começar com o que está muito próximo; mas esse começo com o que está próximo é dificílimo para a maioria de nós, porquanto desejamos fugir do que é, do fato do que somos. Sem compreendermos a nós mesmos não podemos ir longe; e nós estamos em relação contínua, visto que não há existência sem relações. A vida de relação, pois, é o imediato, e para ultrapassarmos o imediato precisamos compreender as relações. Mas preferimos examinar o que está muito distante, o que chamamos Deus ou a Verdade, do que promover uma revolução fundamental em nossas relações; e essa fuga para Deus ou para a Verdade é de toda fictícia, irreal. As relações são a única coisa que temos, e sem compreendermos essas relações nunca descobriremos o que é a realidade ou Deus. Assim, para que se realize uma modificação completa da estrutura social, da sociedade, precisa o indivíduo purificar as suas relações, e essa purificação das relações é o começo da sua própria transformação.

Jiddu Krishnamurti — O que estamos buscando?  



quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O chamado amor, não passa de auto-interesse

Questionador: O amor, tal como o conhecemos e vivenciamos, é uma fusão entre duas pessoas, ou entre os membros de um grupo; ele é excludente e há nele tanto a dor como alegria. Quando o senhor diz que o amor é a única solução para os problemas da vida, está dando à palavra uma conotação que dificilmente vivenciamos. Um homem comum como eu pode conhecer o amor no sentido que o senhor lhe dá?

Krishnamurti: Todos podem conhecer o amor, mas só quando são capazes de encarar os fatos com grande clareza, sem resistência, sem justificação, sem a explicação que os destrói — apenas olhe as coisas com muita atenção, observe-as com muita clareza e minuciosamente. Ora, o que é aquilo a que damos o nome de amor? A pessoa que fez a pergunta diz que ele é excludente e que, nele, conhecemos a dor e a alegria. O amor é excludente? Descobriremos quando examinarmos aquilo que denominamos amor, o que o chamado homem comum denomina amor. Não existe o homem comum. Há apenas o homem, que é você e eu. O homem comum é uma entidade fictícia inventada pelos políticos. Há apenas o homem, que é você e eu, que estamos em aflição, com dor, com ansiedade, com medo.

Ora, o que é a nossa vida? Para descobrir o que é o amor, comecemos com o que sabemos. O que é o nosso amor? Em meio à dor e ao prazer, sabemos que ele é excludente, pessoal minha mulher, meus filhos, meu país, meu Deus. Conhecemo-lo como uma chama em meio à fumaça, conhecemo-lo por meio da perda quando o outro se vai. Logo, conhecemos o amor como sensação, não é verdade? Quando dizemos que amamos, conhecemos o ciúme, conhecemos o medo, conhecemos a ansiedade. Quando vocês dizem que amam alguém, tudo isso está envolvido: a inveja, o desejo de possuir, de ter, de dominar, o medo de perder e assim por diante. Tudo isso chamamos de amor, e não conhecemos o amor sem medo, sem invejam, sem posse; simplesmente verbalizamos o estado do amor sem medo; dizendo ser ele impessoal, puro, divino ou Deus sabe mais o que, porém, o fato é que somos ciumentos, somos dominadores, somos possessivos. Só conheceremos esse estado do amor quando o ciúme, a inveja, a possessividade, o domínio, chegarem ao fim; e enquanto possuirmos, jamais amaremos.

A inveja, a posse, o ódio, o desejo de dominar a pessoa ou coisa qualificada de meu, o desejo de possuir e de ser possuído — tudo isso é um processo de pensamento, não? O amor é um processo do pensamento?  O amor é uma coisa da mente? Na realidade, para a maioria de nós, ele é. Não digam que não — é um absurdo fazê-lo. Não neguem o fato de que o seu amor é uma coisa da mente. Ele por certo é; do contrário, vocês não possuiriam, vocês não dominariam, vocês não diriam “é meu”. Como vocês dizem, o amor de vocês é uma coisa da mente; assim, o amor, para vocês, é um processo de pensamento. Vocês podem pensar na pessoa a quem amam, mas pensar na pessoa a quem ama é amor? Quando vocês pensam na pessoa a quem amam? Vocês pensam nela quando ela se foi, quando ela está longe, quando ela os deixou. Mas quando ela não os perturba mais, quando vocês podem dizer “ela é minha”, vocês não têm de pensar nela. Vocês não têm de pensar nos seus móveis; eles são partes de vocês — o que constitui um processo de identificação destinado a evitar que vocês sejam perturbados, a evitar problemas, ansiedade, tristeza. Assim, vocês só sentem falta da pessoa a quem dizem amar quando estão perturbados, quando estão sofrendo; e enquanto possuem a pessoa, vocês não têm de pensar nela, porque na posse não há distúrbio. Mas quando a posse é perturbada, vocês começam a pensar e dizem “eu amo essa pessoa”. Logo, seu amor é uma mera reação da mente, não é? O que significa que o seu amor não passa de uma sensação, e a sensação sem dúvida não é amor. Vocês pensam na pessoa quando vocês estão juntos? Quando vocês possuem, retêm, dominam, controlam, quando podem dizer “ela é minha” ou “ele é meu”, não há problema. E a sociedade, tudo quanto vocês construírem ao redor de si mesmos, os ajuda a possuir para evitar que vocês sejam perturbados, para vocês não pensarem nisso. O pensamento vem quando vocês estão perturbados — e vocês estão fadados a ser perturbados enquanto seu pensamento for aquilo que chamam de amor.

O amor com certeza não é uma coisa da mente. É porque as coisas da mente ocuparam o nosso coração que não temos amor. As coisas da mente são o ciúme, a inveja, a ambição, o desejo de ser alguém, alcançar o sucesso. Essas coisas da mente tomam conta do coração de vocês, e vocês dizem então que amam; mas como podem amar se têm no coração todos esses elementos geradores de confusão? Quando há fumaça, como pode haver uma chama pura? O amor não é uma coisa da mente e é a única solução dos nossos problemas. O amor não é da mente, e o homem que acumulou dinheiro ou conhecimento nunca pode conhecer o amor, pois vive com as coisas da mente; suas atividades são da mente e tudo aquilo que toca ele transforma num problema, numa confusão, numa tortura.

Logo, o que chamamos de nosso amor é uma coisa da mente. Olhem para si mesmos e verão que o que estou dizendo é obviamente verdadeiro; do contrário, nossa vida, nosso casamento, nossos relacionamentos seriam totalmente diferentes; teríamos uma nova sociedade. Ligamo-nos aos outros não por meio de uma fusão, mas de um contrato chamado de amor, casamento. O amor não funde nem ajusta — não é pessoa nem impessoal: é um estado de ser. O homem que deseja fundir-se com algo maior, unir-se a outra pessoa, está evitando a angústia, a confusão; mas a mente ainda se encontra em separação, que significa desintegração. O amor não conhece a fusão nem a difusão; ele não é pessoal nem impessoal; é um estado de ser que a mente não pode encontrar — ela pode descrevê-lo, designá-lo por um termo, nomeá-lo, mas a palavra, a descrição, não é o amor.

Só quando a mente se aquietar conheceremos o amor, e esse estado de quietude não é algo a ser cultivado. Cultivar ainda é ação da mente; a disciplina ainda é produto da mente, e uma mente disciplinada, controlada, subjugada, uma mente que resiste, explica, não pode conhecer o amor. Vocês podem ler, podem escutar o que está sendo dito sobre o amor, mas isso não é o amor. Só quando vocês dão fim às coisas da mente, só quando seu coração está livre das coisas da mente, há amor. E vocês vão então saber o que é amar sem separação, sem distância, sem tempo, sem medo — e isso não está reservado a uns poucos. O amor não conhece hierarquias; há somente amor. Só há os muitos e o um, a exclusão, quando não se ama. Quando se ama, não existe o “você” nem o “eu”. Nesse estado, há apenas uma chama sem fumaça.

Jiddu Krishnamurti — Bombaim, 12/03/1950

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O que de fato está acontecendo em nossos relacionamentos?

Questionador: A nossa vida se acha esvaziada de qualquer impulso verdadeiro de benevolência, e procuramos preencher esse vazio com a caridade organizada e a justiça compulsória. O sexo é a nossa vida. O senhor poderia lançar alguma luz sobre esse tema indigesto?

Krishnamurti: Para traduzir a pergunta: o nosso problema está no fato de a nossa vida ser vazia e de não conhecermos o amor; conhecemos sensações, conhecemos a publicidade, conhecemos exigências sexuais, mas não há amor. E como se faz para transformar esse vazio, como encontrar essa chama sem fumaça? esta é por certo a pergunta, não é? Então, vamos descobrir juntos a verdade desse assunto. 

Por que a nossa vida é vazia? Embora estamos muito ativos, embora escrevamos livros e frequentemos o cinema, embora nos divertamos, amemos e vamos ao escritório, nossa vida é vazia, tediosa, mera rotina. Por que os nossos relacionamentos são tão superficiais, estéreis e sem muito sentido? Conhecemos a nossa vida suficientemente bem para saber que a nossa existência tem muito pouco significado; citamos frases e ideias que aprendemos — o que fulano ou beltrano disseram, o que os mahatmas, os santos mais recentes ou os antigos santos disseram. Se não for um líder religioso, seguimos um líder político ou intelectual, seja Marx, Adler ou Cristo. Somos apenas fitas gravadas que repetem, e damos a essa repetição o nome de conhecimento. Aprendemos, repetimos, e a nossa vida continua extremamente superficial, entediante e repulsiva. Por que? Por que é assim? Por que atribuímos tanta importância às coisas da mente? Por que a mente veio a se tornar tão importante na nossa vida — quando digo mente refiro-me às ideias, ao pensamento, à capacidade de raciocinar, de avaliar, de contrabalançar, de calcular? Por que damos uma ênfase tão extraordinária à mente? O que não significa que devemos nos tornar emotivos, sentimentais e melosos. Conhecemos esse vazio, esse extraordinário sentimento de frustração. Por que há na nossa vida essa vasta superficialidade, esse sentimento de negação? Não há dúvida de que só podemos compreende-lo quando o abordamos por meio da consciência do relacionamento. 

O que de fato está acontecendo em nossos relacionamentos? Nossos relacionamentos não constituem um auto-isolamento? Não são todas as atividades da mente um processo de salvaguarda, de busca de segurança, de isolamento? Não é esse pensamento, que dizemos ser coletivo, um processo de isolamento? Não é toda a ação da nossa vida um processo de auto-encerramento? Vocês podem vê-lo na sua vida diária. A família tornou-se um processo de auto-isolamento e, sendo isolada, deve existir em oposição. Assim, todas as nossas ações estão levando ao auto-isolamento, que cria essa sensação de vazio; e, sendo vazios, procuramos preencher o vazio com rádios, com barulho, com tagarelices, com fofocas, com a leitura, com a aquisição de conhecimento, com a respeitabilidade, o dinheiro, a posição social e por aí afora. Mas tudo isso é parte do processo de isolamento e, portanto, apenas reforça o isolamento. Assim, para a maioria de nós, a vida é um processo de isolamento, de negação, de resistência, de ajustamento a um padrão; e, naturalmente, nesse processo não há vida, havendo, por conseguinte, uma sensação de vacuidade, uma sensação de frustração. Claro que amar alguém é estar em comunhão com essa pessoa, não num determinado grau, mas completa, integral e profusamente; porém, nós não conhecemos esse amor. Só conhecemos o amor como sensação — os meus filhos, a minha mulher, a minha propriedade, o meu conhecimento, a minha realização; e isso é novamente um processo de isolamento. A nossa vida, em todas as direções, leva à exclusão; ela é um impulso de auto-isolamento da parte do pensamento da parte do pensamento e do sentimento; às vezes conseguimos nos comunicar com o outro. Eis porque existe esse enorme problema. 

Ora, esse é o estado atual da nossa vida — respeitabilidade, posse e vazio — e a pergunta é como proceder para irmos além dele. Como ir além dessa solidão, desse vazio, dessa insuficiência, dessa pobreza interior? A meu ver, a maioria de nós não deseja fazê-lo. A maioria de nós fica satisfeita com a maneira como é; é muito cansativo descobrir uma coisa nova, e por isso preferimos permanecer como estamos — e aí reside a verdadeira dificuldade. temos muitas coisas que nos dão segurança; construímos paredes ao redor de nós mesmos, com as quais nos sentimos satisfeitos e, ocasionalmente, há um murmúrio vindo de além da parede; há de vez em quando um terremoto, uma revolução, uma pertubação que logo neutralizamos. Desse modo, a maioria de nós na realidade não quer ir além do processo de auto-isolamento; Tudo o que procuramos é um substituto, a mesma coisa noutra forma. Nossa insatisfação é bem superficial; queremos uma coisa nova que nos satisfaça, uma nova segurança, uma nova maneira de nos proteger — o que é, mais uma vez, o processo de isolamento. O que estamos procurando, a bem dizer, não é ir além do isolamento, mas reforçá-lo de modo que ele venha a ser permanente e livre de interferências. São poucos os que desejam derrubar as barreiras e ver o que existe para além disso que chamamos de vacuidade, solidão. Aqueles que buscam um substituto para o antigo ficarão satisfeitos ao descobrir algo que proporcione uma nova segurança, mas há evidentemente quem queira ir além disso; por isso, prossigamos com eles. 

Ora, para ir além da solidão, do vazio, é preciso compreender todo o processo da mente. O que é isso que chamamos de solidão, de vazio? Como sabemos que é vazio, que é solidão? A partir de que critério vocês dizem que é isto ou áquilo? Quando vocês dizem que é solidão, que é vazio, qual é a referência? Vocês só podem sabê-lo a partir das medidas proporcionadas pelo antigo. Vocês dizem que algo é vazio, vocês o nomeiam, e julgam tê-lo compreendido. Não será o próprio ato de nomear um empecilho à sua compreensão? A maioria de nós sabe o que é a solidão, da qual estamos tentando escapar. A maioria de nós tem consciência dessa pobreza interior, dessa insuficiência interior. Não se trata de uma reação abortiva, mas de um fato; e ao lhe dar um nome não o podemos dissolver — ele está presente. Ora, como conhecemos seu conteúdo, como chegamos a saber qual é a sua natureza? Vocês conhecem alguma coisa por lhe dar um nome? Vocês me conhecem ao me chamar por um nome? Vocês só podem me conhecer quando me observam, quando têm comunhão comigo, mas chamar-me por um nome, dizer que sou isso ou aquilo, obviamente coloca fim à comunhão comigo. De modo semelhante, para se conhecer a natureza daquilo que denominamos solidão, tem de haver comunhão com ela, e a comunhão não é possível se vocês a nomeiam. Para compreender alguma coisa, é preciso antes de tudo fazer cessar o ato de nomear. Se desejam de fato entender seu filho — o que duvido — o que vocês fazem? Vocês olham para ele, observam-no a brincar, contemplam-no, estudam-no. Em outras palavras, vocês amam aquilo que desejam compreender. Quando vocês amam alguma coisa, há naturalmente comunhão com essa coisa, mas o amor não é uma palavra, em nome, um pensamento. Vocês não podem amar aquilo a que dão o nome de solidão porque não têm plena consciência dela, porque a abordam com medo — não medo da solidão, mas de outra coisa. Vocês não pensaram sobre solidão porque não sabem de fato o que ela é. Não riam; isto não é um argumento inteligente. Pensem bem no assunto enquanto falamos e verão todo o seu alcance. 

Logo, aquilo que denominamos o vazio é um processo de isolamento que é o produto do relacionamento cotidiano, porque, no relacionamento, consciente ou inconscientemente, estamos procurando a exclusão. Vocês querem ser o proprietário exclusivo daquilo que lhes pertence, da mulher ou do marido, dos filhos; querem caracterizar a coisa ou pessoa como meu, o que evidentemente significa aquisição exclusiva. Esse processo de exclusão deve inevitavelmente levar a um sentimento de isolamento; e como nada pode viver em isolamento, há conflito, e estamos tentando escapar desse conflito. Todas as formas de fuga que podemos conceber — as atividades sociais, a bebida, a busca de Deus, os rituais religiosos, a realização de cerimônias, a danças e outras diversões — estão no mesmo nível; e se vemos na vida diária esse processo total de fuga do conflito e queremos suplantá-lo, temos de compreender o relacionamento. Só quando a mente não está escapando de nenhuma maneira é possível estar em comunhão direta com aquilo a que damos o nome de solidão: o só; e para haver comunhão com isso, tem de haver afeição, tem de haver amor. Em outras palavras, vocês têm de amar a coisa para compreendê-la. O amor é a única revolução, e o amor não é uma teoria nem uma ideia; ele não segue nenhum livro nem padrão de comportamento social. 

Logo, a solução do problema não vai ser encontrada nas teorias, que servem somente para aumentar o isolamento. Ela só será encontrada quando a mente, que é pensamento, não estiver empenhando em fugir da solidão. A fuga é um processo de isolamento, e a verdade é que só pode haver comunhão quando há amor. Só então é resolvido o problema da solidão. 

Jiddu Krishnamurti — Bombaim, 12 /02/1950

Como é o seu relacionamento com o outro?

Por que sua mente se amolda? Vocês já se fizeram essa pergunta? Vocês acaso se dão conta de que se amoldam a um padrão? Pouco importa qual seja o padrão, se vocês mesmos o estabeleceram para si ou ele foi estabelecido para vocês. Por que estamos sempre nos amoldando? Onde há o amoldar-se não pode haver liberdade, e isto é óbvio. No entanto, a mente está sempre em busca de liberdade — quanto mais inteligente, quanto mais alerta, quanto mais consciente ela é, tanto maior sua exigência de liberdade. A mente se amolda, imita, porque há mais segurança em agir assim, em seguir um padrão. Esse fato é evidente. Vocês sabem tudo o que fazem, socialmente, porque é melhor amoldar-se. Vocês podem ser educados no exterior, ser grandes cientistas, ou políticos, mas têm um temor secreto de que, se não forem ao templo ou não fizerem as coisas usuais que lhes foram ensinadas, algo de ruim possa sobrevir; por isso, vocês se amoldam. O que acontece à mente que se amolda? Queiram por gentileza, examinar essa interrogação. O que acontece com a sua mente quando vocês se amoldam? Antes de tudo, há uma total negação da liberdade, uma total negação do exame independente. Quando vocês se amoldam, há medo. Certo? Desde a infância a mente é treinada para imitar, para amoldar-se ao padrão que a sociedade estabeleceu — ser aprovado em exames, formar-se, se tiver sorte conseguir um emprego, casar-se, e ponto final. Vocês aceitam esse padrão e tremem de medo de não segui-lo. 

Em consequência, vocês negam interiormente a liberdade, vivem interiormente temerosos, têm a sensação interior de não ser livres para descobrir, indagar, pesquisar, questionar. E isso produz desordem nos nossos relacionamentos. Vocês e eu estamos tentando mergulhar profundamente nessa questão, ter dela uma real introvisão, perceber-lhe a verdade. E é a percepção da verdade que liberta a mente; não alguma prática, nem a atividade da indagação, mas a efetiva percepção daquilo "que é". 

Causamos a desordem nos relacionamentos, tanto interior como exteriormente, mediante o medo, o amoldar-se, a avaliação, que é comparação. O nosso relacionamento se acha em desordem, não apenas o relacionamento uns com os outros, por mais íntimo que seja, como também o relacionamento exterior. Se vemos essa desordem com clareza, não lá fora mas aqui dentro, no mais profundo do nosso ser, se vemos todas as implicações disso, a partir dessa percepção vem a ordem. Então não teremos de viver segundo uma ordem imposta. A ordem não tem padrão, ela não é um esquema dado; ela vem da compreensão do que é a desordem. Quanto mais vocês entendem a desordem no relacionamento, tanto maior é a ordem. Logo, temos de descobrir o que é o nosso relacionamento uns com os outros. 

Como é o seu relacionamento com o outro? Você tem algum relacionamento ou seu relacionamento é com o passado? O passado, com suas imagens, sua experiência, seu conhecimento, dá origem ao que vocês denominam relacionamento. Mas o conhecimento no relacionamento gera desordem. Estou em relação com vocês. Sou o seu filho, o seu pai, a sua mulher, o seu marido. Temos vivido juntos; vocês têm me magoado e eu a vocês. Vocês têm me perseguido, têm me importunado, têm me tiranizado, têm dito coisas duras pelas minhas costas e na minha frente. Eu tenho vivido com vocês há dez anos ou há dois dias, e essas lembranças permanecem, lembranças das ofensas, das irritações, do prazer sexual, dos aborrecimentos, das palavras brutais e assim por diante. Tudo isso está registrado nas células do cérebro que contêm a memória. Assim, meu relacionamento com vocês se baseia no passado. O passado é a minha vida. Se atentarem para isso, vocês hão de perceber como a mente, a vida, a atividade de vocês está arraigada no passado. O relacionamento arraigado no passado inevitavelmente gera desordem. Quer dizer, o conhecimento no relacionamento traz desordem. Se vocês me magoaram, eu me lembro disso; vocês me magoaram ontem ou há uma semana e isso permanece na minha mente; é o conhecimento que tenho de vocês. Esse conhecimento impede o relacionamento; esse conhecimento gera desordem. Portanto, a questão é: quando vocês me magoam, me lisonjeiam, quando me escandalizam, pode a mente varrer isso de si no mesmo momento sem registrá-lo? Vocês tentam fazer isso?

(...) Digamos que ontem alguém tenha me tratado com aspereza, fazendo-me acusações inverídicas. Aquilo que foi dito fica registrado, e a mente identifica a pessoa com esse registro, agindo de acordo com ele. Quando a mente está agindo no relacionamento com o conhecimento desses insultos, das palavras ríspidas, das falsas acusações, esse conhecimento no relacionamento traz a desordem. Ficou claro? Ora, como a mente faz para não registrar no momento do insulto, no momento da bajulação? Porque, para mim, o que há de mais importante na vida é o relacionamento. Sem relacionamento, só pode haver desordem. A mente que vive em ordem, numa ordem total, que é a forma mais elevada de ordem matemática, não pode permitir nem por um momento que a sombra da desordem desça sobre ela. E essa desordem vem à existência quando a mente age com base em seu prévio conhecimento no relacionamento. Portanto, como procede a mente para não registrar o insulto, mas saber que o insulto, bem como a bajulação, ocorreram? Pode ela saber que eles ocorreram e ainda assim não registrá-los, de maneira a ser sempre límpida, saudável, íntegra no relacionamento? 

Esse assunto lhes interessa? Veja bem, se isso de fato lhes interessa, trata-se do maior problema da vida: como levar uma vida em relacionamento na qual a mente jamais tenha sido magoada, jamais tenha sido distorcida. Ora, será isso possível? Fizemos uma pergunta impossível. Trata-se de uma pergunta impossível, e temos de descobrira resposta impossível. Porque o possível é medíocre, já está pronto; mas se faz uma pergunta impossível, a mente tem de encontrar a resposta. A mente têm condições de fazê-lo? Isso é amor. A mente que não registra insultos nem bajulações sabe o que é o amor. 

Pode a mente nunca, jamais, absolutamente nunca registrar o insulto ou a bajulação? Isso é possível? Se a mente puder encontrar a resposta para essa pergunta, teremos resolvido o problema do relacionamento. Vivemos em relacionamento. O relacionamento não é uma abstração, mas um fato diário, cotidiano. Quer você vá para o escritório, volte e durma com sua mulher, quer brigue com ela, você está sempre em relacionamento. E se não há ordem nesse relacionamento entre você e outra pessoa, ou entre você e muitas pessoas ou uma única pessoa, você cria uma cultura que vai gerar, em última análise, desordem, como se faz hoje. Portanto, a ordem é absolutamente essencial. Para descobri-lo, pode a mente, embora tenha sido insultada, magoada, pisada, embora tenha ouvido palavras brutais dirigidas a si, nunca, nem mesmo por um segundo, reter essas coisas? Porque assim que essas coisas são retidas, já há o registro, e elas já deixaram uma marca nas células cerebrais. Percebam a dificuldade da questão. Pode a mente fazer isso, de modo a permanecer inteiramente inocente? A mente inocente é a mente que não pode ser magoada. Como não pode ser magoada, ela não vai magoar a outra. Ou, isso é possível? Toda forma de influência, toda forma de incidente, toda forma de dano, de desconfiança, é lançada sobre a mente. Pode a mente nunca registrar e, assim, manter-se muito inocente, muito límpida? Vamos descobri-lo juntos. 

Chegaremos a isso perguntando o que é o amor. Será o amor produto do pensamento? O amor se acha no campo do tempo? O amor é prazer? O amor é algo que se pode ser cultivado, praticado, construído pelo pensamento? Ao averiguar isso, temos de nos aprofundar na pergunta: o amor é prazer — sexual ou de alguma outra espécie? A nossa mente procura o prazer o tempo inteiro: ontem fiz uma boa refeição, o prazer da refeição é registrado e desejo mais, uma refeição ainda melhor ou o mesmo tipo de refeição amanhã. Encantei-me muito com o pôr-do-sol, com a observação da lua por entre as folhas ou com a visão de uma onda lá longe no mar. Essa beleza gera um enorme deleite, e isso é um prazer imenso. A mente o registra e deseja vê-lo repetir-se. O pensamento pensa sobre o sexo, pensa, detém-se longamente nele, deseja vê-lo repetir-se; e a isso vocês dão o nome de amor. Estou certo? Não se embaracem quando falamos de sexo; ele é parte de sua vida. Vocês o tornaram repulsivo porque negaram todos os tipos de liberdade exceto esta.

Então o amor é prazer? Será o amor produto do pensamento, assim como ocorre com o prazer? O amor é inveja? Pode amar aquele que é invejoso, ganancioso, ambicioso, violento, amoldável, submisso, totalmente em desordem? Então, o que é o amor? Ele não é, evidentemente, nada disso. Ele não é prazer. Entendam, por favor, a importância do prazer. O prazer é mantido pelo pensamento; em consequência, o pensamento não é amor. O pensamento não pode cultivar o amor. Ele pode cultivar, e cultiva, a busca do prazer, assim como cultiva o medo, mas não pode criar amor, nem fabricá-lo. Vejam a  verdade. vejam-na e vocês haverão de expulsar de si mesmos, de uma vez por todas, a ambição e a cobiça. Portanto, mediante a negação, vocês chegam à coisa sobremodo extraordinária chamada amor, que é coisa positiva. 

A desordem no relacionamento significa que não há amor, e essa desordem existe quando há o amoldar-se. Assim, a mente que se amolda a um padrão de prazer ou ao que pensa ser o amor jamais pode saber o que é o amor. A mente que compreendeu todo o processo de amadurecimento da desordem alcança uma nova ordem que é virtude e que é, por conseguinte, amor. É a vida de vocês, e não a minha. Se não viverem dessa maneira, você serão muito infelizes, ver-se-ão tomados pela desordem social e levados sempre de roldão por essa correnteza. Só o homem que escapa dessa correnteza sabe o que é o amor, o que é ordem.

Jiddu Krishnamurti — Madras 16/12/1972

 
           

domingo, 11 de agosto de 2013

Um olhar sobre o ego, o sexo e as relações

Você provou aquele estado em que não existe "ego", ainda que por alguns segundos, por um dia, ou como seja; e onde está o "ego" está o conflito, o sofrimento, a luta. Por isso, existe o constante desejo de repetição daquele estado livre do "ego". Mas, o problema central é o conflito, em diferentes níveis, e como renunciar ao "ego". Você procura a felicidade, esse estado de isenção do "ego" com todos os seus conflitos, o qual você encontra momentaneamente no ato sexual. Ou você se disciplina, luta, controla, ou mesmo, se destrói pelo refreamento; o que significa que está procurando se libertar do conflito, orque, com a cessação do conflito, há deleite. Se podemos ficar livres do conflito, temos a felicidade em todos os diferentes níveis da existência. 

O que é que faz vir o conflito? Como surge esse conflito, no seu trabalho, nas suas relações, no ensinar, em todas as coisas? Até mesmo quando você escreve um poema, até mesmo quando canta, pinta, existe conflito. Como se origina esse conflito? Ele origina-se do desejo de "vir a ser"? Você pinta, deseja expressar-se pela cor, deseja ser o melhor pintor do mundo. Estuda e se preocupa, e espera que o mundo aplauda a sua arte. Mas, sempre que há o desejo de "vir a ser" "o mais...", tem de haver conflito. É o impulso psicológico que exige "o mais..." O desejo de ser "o mais..." é psicológico; esse desejo existe quando a psique, a mente, está empenhada em "vir a ser", em procurar, em perseguir um determinado fim, um determinado resultado. Quando você deseja ser uma Mahatma, quando deseja ser um santo, quando deseja compreender, quando pratica a virtude, quando tem consciência de classe, como entidade "superior", quando se serve das suas faculdades para o seu próprio engrandecimento — tudo isso, evidentemente, é indício de uma mente interessada no "vir a ser". E, por conseguinte, tanto mais conflito há de existir. Uma mente que está à procura do "mais...", não está consciente do "que é", porquanto vive sempre no "mais" — no que lhe agradaria ser, e nunca no "que é". Enquanto você não dissolver todo o conteúdo daquele conflito, essa libertação do "ego", por meio do sexo (ou de outro fator), continuará a ser um problema medonho. 

Senhor, o "ego" não é uma entidade objetiva que se possa estudar ao microscópio, ou aprender nos livros, ou compreender por meio de citações de palavras de outros, por mais poderosas que sejam tais citações. Ele só pode ser compreendido na vida de relação. Afinal de contas, o conflito existe nas relações, seja nas relações com a propriedade, com uma ideia, com sua esposa, ou com o seu vizinho; e sem se resolver esse conflito fundamental, o apegar-nos a esta única forma de libertação, por meio do sexo, é obviamente um indício de desequilíbrio. É isso, exatamente, o que acontece conosco. Estamos desequilibrados, porque fizemos do sexo a nossa única via de fuga; e a sociedade, a chamada civilização moderna, ajuda-nos nesse sentido. Considere os anúncios, os cinemas, os gestos sugestivos, as posturas, as aparências. 

A maioria de vocês se casaram ainda muito jovens, quando ainda muito poderoso o impulso biológico. Tomaram uma esposa ou um marido, e com essa esposa ou marido vocês têm, de qualquer maneira, de passar o resto da vida. Suas relações são unicamente físicas, e tudo o mais tem de se lhe ajustar.E que acontece, então? Você é, porventura, intelectual, e sua esposa altamente sentimental. Onde está a comunhão com ela? Ou ela é muito prática e você é sonhador, vago, um tanto indiferente. Onde está o seu contato com ela? Você é "super-sexual", ela não; mas você se serve dela, porque tem seus direitos. Como pode haver comunhão entre você e ela, quando você se serve dela? Os casamentos, hoje em dia, estão baseados nessa ideia, nesse impulso; mas começam a surgir contradições e conflitos cada vez mais numerosos, na vida conjugal, e daí o divórcio. 

Esse problema, pois, requer um manejo inteligente, o que significa que temos de alterar toda a base de nossa educação, e isso requer compreensão, não só dos fatos da vida, mas da nossa existência de cada dia; requer, não apenas que se conheça e se compreenda o impulso biológico, o impulso sexual, mas também que se veja a maneira de atender a ele inteligentemente. Mas, na atualidade, não procedemos assim, não é verdade? É um assunto proibido, uma coisa secreta, de que só se fala entre quatro paredes. Na época em que o impulso é mais poderoso, e sem consideração de mais nada, juntamo-nos um ao outro para o resto da vida. Veja o que o indivíduo faz a si próprio e ao outro. 

Como pode o indivíduo intelectual harmonizar-se, comungar, com o sentimental, o pouco inteligente ou o ignorante? Que comunhão pode haver, então, além do sexo? A dificuldade de tudo isso consiste em que o preenchimento do impulso sexual, do impulso biológico, torna necessárias certas regras sociais; por isso, existem as leis relativas ao casamento. Vocês dispõem de todos os meios de possuir aquilo que lhes proporciona prazer, segurança, conforto; mas, o que dá prazer constante embota a mente. Assim como o sofrimento constante insensibiliza a mente, assim também o prazer constante murcha a mente e o coração. 

E como você pode ter amor? Positivamente, o amor não é coisa da mente. O amor não é o mero ato sexual, ou você acha que é? O amor é algo que a mente não pode, de forma nenhuma, conceber. O amor é algo que não se pode formular. E, sem amor, vocês contraem relações, sem amor vocês se casam. E depois, na vida conjugal, "vocês se ajustam um ao outro". Bela frase! Vocês se justam um ao outro, e isso, mais uma vez, é um processo intelectual, não? Ela casou-se com você, mas você é uma repulsiva massa de carnalidade, dominado por suas paixões. Ela é obrigada a conviver com você. Detesta a casa, o ambiente, o horrível de tudo isso, a sua brutalidade, mas diz: "sou casada e tenho de conformar-me com isso". Assim, como meio de autoproteção, ela cede e, com o tempo, começa a dizer "eu te amo". Veja que, quando, pelo desejo de segurança, nós nos conformamos com algo feio, esse feio começa a parecer-nos belo, visto que isso é uma forma de autoproteção; se assim não fosse, seríamos magoados, poderíamos ser totalmente destruídos. Vemos, pois, que p que era feio, horrendo, gradualmente se tornou belo. 

Tal ajustamento é, evidentemente, um processo mental. Todos os ajustamentos o são. Mas o amor, por certo, é incapaz de ajustamento. Vocês o sabem, Senhores, (não é verdade?) que, se amam alguém, não existe "ajustamento". O que há é completa fusão. É só quando não existe amor que começamos a ajustar-nos. E esse ajustamento se chama matrimônio. Daí resulta o fracasso do casamento, porque ele é a própria fonte de conflito, uma batalha entre duas pessoas. Esse problema é extraordinariamente complexo, como todos os problemas, mas esse o é mais, porque se trata de apetites e impulsos grandemente poderosos. 

Nessas condições, uma mente que está apenas a ajustar-se nunca pode ser casta. Uma mente que busca felicidade no sexo, nunca será casta. Embora haja, por momentos, nesse ato, a abdicação do "ego", o esquecimento próprio, o desejo mesmo dessa felicidade, que é produto da mente, faz a mente impura. A castidade só existe quando há amor; sem amor, não há castidade. E o amor não é coisa susceptível de cultivar-se. Só há amor quando há o completo esquecimento de si mesmo, pelo indivíduo, e para que tenha a ventura desse amor, precisa o indivíduo ficar livre, pela compreensão da vida de relação. Então, havendo o amor, tem o ato sexual significação inteiramente diferente. Esse ato não é, então, uma fuga, um hábito. O amor não é um ideal: o amor é um estado. Não pode haver amor onde há "vir a ser". Só onde está o amor está a castidade, a pureza; mas uma mente que "vem a ser" ou tenta "vir a ser" casta, não tem amor. 

Jiddu Krishnamurti — O que te fará feliz?       

Por que tantas pessoas amam coi­sas em vez de pessoas?

Ouvi contar...

O dr. Ahrams foi chamado à loja de Mulla Nasruddin, onde Nasruddin jazia inconsciente. Dr. Abrams cuidou dele por um longo tempo e, finalmente, conseguiu revivê-lo.

“Como você conseguiu beber aquilo, Nasruddin? Você não viu o rótulo na garrafa? Estava escrito ‘veneno’!”

“Vi, doutor”, respondeu Nasruddin, “mas eu não acre­ditei.”

“Por que não?”, perguntou o dr. Abrams.

Nasruddin respondeu: “Porque sempre que acredito em alguém sou enganado”.

Pouco a pouco, as pessoas aprendem a não acreditar, a não confiar, a permanecerem cronicamente em dúvida. E isso ocorre tão vagarosamente, em doses tão pequenas, que você nunca está alerta para o que está acontecendo com você. Quando vê, é tarde demais.

É isso o que as pessoas chamam de experiência. Diz-se que uma pessoa é experiente quando ela perdeu contato com o coração. Dizem então: “Esse é um homem muito experiente, muito esperto, muito astuto; ninguém pode enganá-lo”.

Talvez ninguém possa enganá-lo, mas ele enganou a si mesmo. Ele perdeu tudo aquilo que era valioso; ele perdeu tudo.

Então, um fenômeno muito peculiar acontece: não se pode amar pessoas, porque pessoas podem enganar. Começa-se a amar coisas, então. Como há uma grande necessidade de amar, as pessoas vão buscando substitutos: alguém ama a sua casa, alguém ama o seu carro, alguém ama as suas roupas, alguém ama o seu dinheiro...

É claro, a casa não pode enganá-lo, o amor não corre risco. Você pode amar o carro - um carro é mais confiável do que uma pessoa real. Você pode amar o dinheiro - o dinheiro é uma coisa morta, está sempre sob seu controle. Por que tantas pessoas amam coisas em vez de pessoas? E até mesmo quando, às vezes, amam uma pessoa, elas tentam reduzir a pessoa a uma coisa.

Se você ama uma mulher, você está, de imediato, pronto para reduzi-la tornando-a sua esposa. Você está pronto para reduzi-la a determinado papel: o papel de esposa, mais previsível do que a realidade de uma amada.

Se você ama um homem, você está pronta para possuí-lo como uma coi­sa. Você quer que ele seja seu marido, porque um amante é mais líquido, nunca se sabe... Um marido parece algo mais sólido. Pelo menos, existe a lei, existe o tribunal, existe a polícia, existe o Estado, que dão certa solidez ao marido. Um amante parece ser como um sonho: não tão substancial.

Assim que as pessoas se apaixonam, elas estão prontas para o casamento - tal é o medo do amor. E seja quem for que amemos, começamos a tentar controlar. Esse é o conflito que permanece entre esposas e maridos, mães e filhos, irmãos e irmãs, amigos - quem vai possuir quem? Isso significa: quem vai definir quem, quem vai reduzir quem a uma coisa? Quem será o senhor e quem será o escravo?

Mulla Nasruddin sentou-se, resmungando, para beber; e um amigo lhe disse: “Você parece mal hoje, Mulla. O que houve?”

Nasruddin disse: “Meu psicanalista disse que estou amando o meu guarda-chuva e que essa é a fonte dos meus problemas”.

“Amando seu guarda-chuva?!”

“É. Isso não é ridículo? Ora, eu gosto dele, eu respeito o meu guarda-chuva, gosto da companhia dele. Mas... amor?”

Mas o que mais é amor? Se você aprecia a companhia do seu guarda-chuva, se você o respeita, se você gosta do seu guarda-chuva, o que mais é amor?

Amor é respeito, um tremendo respeito; amor é um gostar profundo; e amor é pura alegria com a presença daquele que você ama. O que mais é amor? Mas as pessoas amam coisas - uma necessidade profunda é, de alguma forma, preenchida por substitutos.

Lembre-se: a primeira calamidade é a pessoa tornar-se orientada-pela-cabeça. A segunda calamidade é a pessoa começar a substituir a necessidade de amor por coisas. Então, você está perdido, perdido na terra desértica. Então, você nunca alcançará o oceano. Então, você simplesmente se dissipará e evaporará. Então, sua vida toda será um puro desperdício.

No momento em que você toma conhecimento de que é isso o que está acontecendo, mude o fluxo: faça todos os esforços para contatar novamente o coração. É isso o que os bauls chamam de amor - refazer o contato com o coração para desfazer o que foi feito a você pela sociedade.

Osho, em "Vida, Amor e Riso"

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Torne-se consciente de seu medo da liberdade

“Olhe uma rosa: ela é bela, mas não existe liberdade alguma de florescer ou não florescer. Não existe problema, não existe escolha. A flor não pode dizer, ‘Eu não quero florescer’, ou ‘Eu me recuso’. Ela nada tem a dizer, nenhuma liberdade. É por isso que a natureza é tão silenciosa (…)

Com o surgimento do homem, pela primeira vez aparece a liberdade. O homem tem a liberdade de ser ou não ser. Por outro lado, surge a angústia, o medo de que ele possa ou não ser capaz, medo do que vai acontecer. Existe um tremor profundo. Todo momento é um momento em suspense. Nada é seguro ou certo, nada é previsível com o homem: tudo é imprevisível.

Nós conversamos a respeito da liberdade, mas ninguém gosta de liberdade. Nós falamos sobre liberdade, mas criamos escravidão. Toda liberdade nossa é apenas uma troca de escravidão. Nós seguimos mudando de uma escravidão para outra, de um cativeiro para outro. Ninguém gosta de liberdade porque liberdade cria medo. Com a liberdade você tem que decidir e escolher. Nós preferimos pedir a alguém ou a alguma coisa para nos dizer o que fazer – à sociedade, ao guru, às escrituras, à tradição, aos pais. Alguém deve nos dizer o que fazer: alguém deve mostrar o caminho, para que possamos seguir – mas nós não conseguimos nos mover por nós mesmos. A liberdade existe, mas existe o medo.

É por isso que existem tantas religiões. Não é por causa de Jesus, de Buda ou de Krishna. É por causa de um enraizado medo da liberdade. Você não consegue ser simplesmente um homem. Você tem que ser um hindu, um muçulmano ou um cristão. Apenas por ser um cristão, você perde a sua liberdade; sendo um hindu, você não é mais um homem – porque agora você diz, ‘eu seguirei uma tradição. Eu não vou caminhar no inexplorado, no desconhecido. Eu seguirei num caminho bem marcado com pegadas. Eu caminharei atrás de alguém; eu não seguirei sozinho. Eu sou um hindu, assim eu seguirei com uma multidão; eu não caminharei como um indivíduo. Se eu me mover como um indivíduo, sozinho, haverá liberdade. Então, a todo momento eu terei que decidir, eu terei que gerar a mim mesmo, a todo momento estarei criando a minha alma. E ninguém mais será responsável: somente eu serei o responsável final.’

Nietzche disse ‘Deus está morto e o homem está totalmente livre.’ Se Deus está realmente morto, então o homem está totalmente livre. E o homem não tem tanto medo da morte de Deus: ele tem muito mais medo da sua liberdade. Se existe um Deus, então tudo está bem. Se não existe Deus, então você foi deixado totalmente livre – condenado a ser livre. Agora faça o que você gosta e sofra as conseqüências, e ninguém mais será responsável, só você.

Erich Fromm escreveu um livro chamado ‘O Medo da Liberdade’. Você se apaixona e começa a pensar em casamento. O amor é uma liberdade; o casamento é uma escravidão. Mas é difícil encontrar uma pessoa que se apaixona e não pense imediatamente em casamento. Existe o medo porque o amor é uma liberdade. O casamento é uma coisa segura; nele não existe medo. O casamento é uma instituição – morta; o amor é um evento – vivo. Ele se move; ele pode mudar. O casamento nunca se move, nunca muda. Por causa disso o casamento tem uma certeza, uma segurança.

O amor não tem certeza nem segurança. O amor é inseguro. A qualquer momento ele pode sumir de vista da mesma forma como apareceu do nada. A qualquer momento ele pode desaparecer! Ele é muito sobrenatural; ele não tem raízes na terra. Ele é imprevisível. Por isso, ‘é melhor casar. Assim, fincamos raízes. Agora esse casamento não vai evaporar no nada. Ele é uma instituição!’

Em toda situação – exatamente como no amor –, quando encontramos liberdade, nós a transformamos em escravidão. E quanto mais cedo melhor! Assim nós podemos relaxar. Por isso, toda história de amor termina em casamento. ‘Eles se casaram e viveram felizes para sempre.’

Ninguém está feliz, mas é bom terminar a história ali porque em seguida vai começar o inferno. Por isso toda história termina no momento mais bonito. E qual é esse momento? É quando a liberdade se torna escravidão! E isso não é apenas com o amor: isso é com tudo. Assim o casamento é uma coisa feia; é provável que venha a ser. Toda instituição tende a ser uma coisa feia porque ela é apenas um corpo morto de algo que um dia foi vivo. Mas com uma coisa viva, a incerteza provavelmente estará presente.

‘Vivo’ quer dizer que pode mover, pode mudar, pode ser diferente. Eu amo você; no próximo momento eu posso não amar. Mas se eu sou o seu marido, ou sua esposa, você pode ter a certeza de que no próximo momento eu também serei seu marido, ou sua esposa. Isso é uma instituição. Coisas mortas são muito permanentes; coisas vivas são momentâneas, mutáveis, estão num fluxo.

O homem tem medo de liberdade, mas a liberdade é a única coisa que faz de você um homem. Assim, nós somos suicidas – ao destruir nossa liberdade. E com essa destruição nós estamos destruindo toda nossa possibilidade de ser. Então você acha que ter é bom porque ter significa acumular coisas mortas. Você pode continuar acumulando; não existe um fim para isso. E quanto mais acumula, mais seguro você fica.

Eu digo que agora o homem tem que caminhar conscientemente. Com isso eu quero dizer que você tem que estar consciente de sua liberdade e também consciente de seu medo da liberdade.

Como usar essa liberdade? A religião nada mais é do que um esforço no sentido da evolução consciente, em saber como usar essa liberdade. O esforço de sua vontade agora é significativo. Qualquer coisa que você esteja fazendo não voluntariamente é apenas parte do passado na escala da evolução. O seu futuro depende de seus atos com vontade. Um ato muito simples feito com consciência, com vontade, dá a você um certo crescimento – ainda que seja um ato comum.

Por exemplo, você resolve jejuar, mas não porque você não tem comida. Você tem comida; você pode comê-la. Você tem fome; você pode comer. Você resolve jejuar: isso é um ato voluntário – um ato consciente. Nenhum animal pode fazer isso. Um animal jejua algumas vezes, quando não existe fome. Um animal terá que jejuar quando não existir alimento. Mas somente o homem pode jejuar quando existe ambos: a fome e o alimento. Isso é um ato voluntário. Você usa a sua liberdade. A fome não consegue incitar você. A fome não consegue empurrar você e o alimento não consegue puxar você.

Esse jejum é um ato de sua vontade, um ato consciente. Isso dará a você mais consciência. Você sentirá uma liberdade sutil: livre do alimento, livre da fome – na verdade, no fundo, livre do seu corpo, e ainda mais fundo, livre da natureza. A sua liberdade cresce e a sua consciência cresce.

Na medida que sua consciência cresce, a sua liberdade cresce. Elas são correlacionadas. Seja mais livre e você será mais consciente; seja mais consciente e você será mais livre.”

Osho

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Só pode haver relação no total abandono do “eu”


Nesta tarde, talvez possamos considerar (não intelectual­mente, porém realmente, com nosso coração, nossa mente, todo o nosso ser), talvez possamos dispensar toda a atenção à questão das relações, não só entre os homens, mas também à relação do homem com a natureza, com o universo, com tudo o que vive. Porém, como já observamos, a sociedade nos está fazendo, e nós estamos ficando cada vez mais mecânicos, superficiais, insensíveis, indiferentes. Uma horrível matança está ocorrendo no Extremo Oriente e nos mantemos relativamente despreocupa­dos. Alcançamos grande prosperidade, mas essa prosperidade nos está destruindo, porque nos estamos tornando indiferentes e indolentes, porque nos mecanizamos, perdendo a estreita relação com todos os homens e todos os entes vivos; e parece-me impor­tantíssimo fazermos esta pergunta: Que é relação — se de fato alguma relação existe — e que lugar compete, nessa relação, ao amor, ao pensamento e ao prazer?

(...) Que é nossa vida, que exige relações profundas, seja com a esposa, o marido, os filhos, a família, seja com a comunidade ou outra entidade qualquer? (...) Temos um problema imenso, que é o de compreender a existência, de aprender a viver. E,       como disse­mos, viver é relação, não há viver se não estamos em relação. E, como a maioria de nós não se acha em relação, no sentido mais profundo da palavra, tentamos identificar-nos com alguma coisa — com a nação, com um dado sistema ou filosofia, ou certo dogma ou crença.               É isto que se observa no mundo: a identificação de cada indivíduo com alguma coisa — com a família ou com sua própria pessoa — e eu não sei o que significa “identificar-se consigo mesmo”.

Esta existência fragmentária, separativa, leva inevitavelmente a várias formas de violência.(...) “Ser respeitável” é ser moral em conformidade com uma coisa deveras imoral. Em tais condições, há alguma espécie de relação? Relação significa estar em con­tato, profundamente, fundamentalmente, com a natureza, com outro ente humano — estar em relação, não de sangue, como membro de uma família, ou como marido e mulher, pois isso difi­cilmente pode chamar-se “estar em relação”. (...) Quase todos nós temos imagens acerca de nós mesmos e a imagem de outrem; temos tais imagens, nas relações.(...) quando conhecemos uma pessoa intimamente, dela já formamos uma imagem; a própria intimidade implica a imagem que tendes da pessoa (...) E há a imagem da sociedade, e as imagens que temos acerca de Deus, da verdade, de tudo.

Como se origina essa imagem? E, se ela existe — e ela existe, pode-se dizer, em todas as pessoas — como é então possível haver qualquer relação real? Relação significa estar profundamente em contato um com outro. Dessa relação pode nascer a cooperação, o trabalhar juntos, fazer coisas juntos. Mas, se há alguma imagem — eu com uma imagem de vós, e vós com uma imagem de mim — que relação pode haver, a não ser a relação de uma ideia, de um símbolo, de certa memória, que se torna a imagem? Estão essas imagens em relação, e é nisso que consistem as relações? Pode haver amor, no verda­deiro sentido desta palavra(...), pode haver efetivamente esse sentimento de amor quando as relações são pura­mente conceituais, entre imagens, e não relações reais? Só pode haver relação entre os entes humanos quando aceitamos o que é, e não o que deveria ser. Estamos sempre vivendo no mundo das fórmulas, dos conceitos, que são imagens do pensamento. Pode, pois, o pensamento, o intelecto, estabelecer relações cor­retas? Pode a mente, o cérebro, com todos os seus instrumentos de autoproteção(...) pode esse cérebro, que é inteiramente reação da memória e do pensa­mento, estabelecer relações corretas entre os seres humanos? Que lugar compete à imagem, ao pensamento, nas relações? Há realmente lugar para eles?

(...) se perdestes a relação com a natureza, como podeis estar em relação com o homem? Quanto mais vivemos na cidade, tanto menos estamos em contato com a natureza. Quando saís a passear, num domingo, olhais as árvores e dizeis “Que bonitas!” e retornais à vossa vida de rotina, dentro de gavetas, chamadas casas ou apartamentos. Estais perdendo a relação com a natureza. Prova-o o fato de visitardes os museus e passardes uma manha inteira a contemplar quadros — abstrações de “o que é” — o que demonstra que perdestes realmente, totalmente, o contato e a relação com a natureza. Quadros, con­certos, estátuas, tornaram-se de enorme importância, e nunca olhais uma árvore, um pássaro, o esplendor de uma nuvem.

Ora, que são relações? Temos, de fato, alguma espécie de relação? Vivemos tão fechados, tão absorvidos em proteger-nos, que nossas relações se tornaram apenas superficiais, sensuais, aprazíveis. Se nos examinarmos em silêncio(...), se observarmos a nós mes­mos tais como realmente somos, talvez possamos descobrir o quanto estamos a isolar-nos todos os dias, a erguer em torno de nós muralhas de defesa, de medo. Olhar a nós mesmos é mais importante e de maior necessidade do que nos observarmos de acordo com um especialista. Se vos olhais de acordo com Jung ou Freud, ou Buda, ou outrem, estais a olhar-vos com olhos alheios. Estamos sempre fazendo isto; para olhar, já não dispomos de nossos próprios olhos, e eis porque estamos perdendo a beleza que há em olhar.

Pois bem; quando vos olhais diretamente, não descobris que vossas atividades diárias (vossos pensamentos, vossas am­bições, vossa agressividade, vossa constante ânsia de ser amado e de amar, a constante tortura do medo, a agonia do isolamento), não descobris que essas coisas são fortemente separativas e causa­doras de profundo isolamento? E, nesse profundo isolamento, que relação podeis ter com outro, com esse outro que também se isola com sua ambição, sua avidez, sua avareza, sua ânsia de domínio, de posse, de poder, etc.? Eis, pois, duas enti­dades chamadas entes humanos a viverem em seu próprio isola­mento, a gerarem filhos, etc., mas sempre no isolamento. E a cooperação entre essas duas entidades isoladas torna-se mecâ­nica; alguma cooperação, entretanto, é necessária entre eles, para que possam viver, ter família, trabalhar num escritório ou numa fábrica, mas eles permanecem sempre entidades isoladas, com suas crenças e dogmas, suas nacionalidades(...). O isolamento, portanto, é, essencialmente, o fator do estado de “não relação”. E nas pseudo-relações desse isolamento o prazer se torna da máxima importância.

(...)Se nossa relação é produto do prazer sexual, ou do prazer derivado da família, da propriedade, do domínio, do controle, do medo de nos vermos desprotegidos, privados de segurança interior e, por conseguinte, sempre a buscar o prazer — então que lugar com­pete ao prazer nas relações? A exigência de prazer destrói todas as relações, sejam sexuais, sejam de outra espécie. E, se bem observarmos, veremos que todos os nossos chamados “valores morais” baseiam-se no prazer, embora o disfarcemos com a “virtuosa” moralidade de nossa respeitável sociedade.

Assim, quando nos interrogamos, quando olhamos fundo em nós mesmos, percebemos essa atividade de auto-isolamento, esse “eu”, esse “ego”, a erguer defesas em torno de si, e essas próprias defesas são o “eu”. Este “eu” é isolamento, é ele que produz fragmentos, que produz o “olhar” que se fragmenta em pensador e pensamento. (...) É ou não é um fato que estamos vivendo na dependência de uma imagem, de uma fórmula, de um fragmento que nos está isolando? Não foi por causa desse isolamento que o medo, com sua dor e prazer (produtos do pensamento), se tornou existente? Tenta então aquela imagem identificar-se com algo que seja permanente, com Deus, com a verdade, com a nação, a bandeira, etc.

Assim, se o pensamento é velho (e ele é sempre velho e, por conseguinte, nunca é livre), como pode ele compreender as relações? As relações estão sempre no presente vivo (não no passado morto, da memória, das lembranças, do prazer e da dor), as relações estão ativas agora; “estar em relação” significa justamente isso. Ao olhardes para outra pessoa com olhos cheios de afeição, de amor, estabelece-se uma relação ime­diata. Quando sois capaz de olhar uma nuvem com olhos que a estão vendo pela primeira vez, há então uma relação profunda. Mas, se o pensamento se intromete, então essa relação se converte em imagem. Assim, pergunta-se: Que é o amor? O amor é prazer? O amor é desejo? É o amor a lembrança de uma mul­tiplicidade de coisas que formastes e conservastes — a respeito de vossa esposa, de vosso marido, de vosso próximo, da socie­dade, da comunidade, de vosso Deus? Pode-se chamar a isso amor?

Se o amor é produto do pensamento (como de fato é, na maioria dos casos), então esse amor está fechado entre cercas, emaranhado na rede do ciúme, da inveja, do desejo de dominar, de possuir e ser possuído, da ânsia de ser amado e de amar. Pode, então, haver amor a um e amor a todos? Se amo um, destruo o amor para com outros? E como, para a maioria de nós, o amor é prazer, companhia, conforto, segregação na família e o sentimento de segurança que nela se encontra existe, aí, realmente amor? Pode um homem que está acorrentado à fa­mília amar o seu próximo? Podeis discorrer teoricamente acerca do amor, ir à igreja para amar a Deus (o que quer que isso signifique) e, no dia seguinte, ir para o trabalho e destruir o vosso próximo — porque estais em competição com ele, ambicio­nando o seu cargo, as suas posses, e desejando melhorar a vós mesmos, comparando-vos com ele. Assim, quando, dentro em vós existe essa atividade, da manhã à noite, e mesmo durante o sono em sonhos, podeis estar em relação? Ou relação é coisa de todo diferente?

Só pode haver relação quando há total abandono do “eu”, do “ego”. Quando não existe “eu”, estais então em relação; nesta, não há separação de espécie alguma. Provavelmente, nunca experimentamos esse estado de total negação (não intelectual, porém real), de total cessação do “eu”. E talvez seja esse estado que a maioria de nós está buscando, sexualmente ou pela identi­ficação com uma coisa superior. Todavia, esse processo de identificação com uma coisa superior deriva do pensamento; e o pensamento é sempre velho (como o “eu”, o “ego”, ele pertence ao passado).(...) Como é possível abandonar de todo esse processo isolante, esse processo que se centraliza no “eu”? Como é possível isso? (...) Como pode o “eu”, cujas atividades diárias são motivadas pelo medo, pela ansiedade, pelo desespero, a tristeza, a confusão e a esperança — como pode esse “eu” que se separa de outro pela identificação com Deus, com seu condicionamento, sua sociedade, suas atividades morais e sociais, com o Estado — morrer, desaparecer, para que o ente humano possa estar em relação? Porque, se não estamos em relação, iremos viver em guerra uns com os outros. Poderá não haver matança mútua, porque isso se está tornando muito perigoso, a não ser, talvez, em terras muito longínquas. Como podemos viver de modo que não haja separação, de modo que possamos cooperar realmente?

Há tanta coisa por fazer neste mundo — acabar com a pobreza, viver com felicidade, viver deleitosamente em vez de viver na agonia e no medo, edificar uma sociedade de espécie com­pletamente diferente, com uma moralidade superior. Isso, porém, só se tornará possível quando a moralidade da atual sociedade for totalmente negada. Há tanto que fazer, e que não poderá ser feito enquanto estiver em funcionamento o processo de isolamento. Falamos do “eu”, do “meu”, e do “outro”; “o outro” está do outro lado do muro, e o “eu” e o “meu” deste lado. Como pode, pois, essa essência da resistência, que é o “eu”, ser totalmente abandonada? Porque esta é realmente a questão mais importante, em todas as relações — já que percebemos que a relação entre imagens não é relação nenhuma e que, quando existe tal qualidade de relação, há necessariamente conflito e estamos sempre em guerra uns com os outros.

(...)Vós tendes vivido num espaço criado pelo “eu” (um espaço limitadíssimo). O espaço que o “eu” criou entre uma pessoa e outra (o processo de isolamento), é esse o único espaço que conhecemos, o espaço entre ele próprio e a circunfe­rência (a fronteira que o pensamento criou). Nesse espaço é que vivemos; nele há divisão. Dizeis: “Se abandono a mim mesmo, ou se abandono o centro que é o “eu”, ficarei vivendo num vácuo.” Mas, já alguma vez abandonastes o “eu”, de fato, real­mente, de modo que dele não tenha ficado nenhum resquício? Já vivestes neste mundo nesse estado de espírito — no vosso tra­balho, com vossa esposa ou marido? Se alguma vez já vivestes assim, deveis saber que há um estado de relação em que o “eu” não existe, um estado que não é utópico, que não é coisa sonhada ou experiência mística, irracional, porém um estado possível: viver numa dimensão em que todos os entes humanos estejam relacionados.

Mas essa possibilidade só existe se compreendemos o que é o amor. E, para existirmos, para vivermos nesse estado, temos de compreender o prazer (sustentado pelo pensamento) e todo o seu mecanismo. Então, se poderá ver instantaneamente todo o complicado mecanismo que construímos para nós mesmos e em redor de nós. Não há necessidade de percorrermos todo o pro­cesso analítico, ponto por ponto. Toda análise é fragmentária e, por essa porta, não virá resposta nenhuma.

Existe este imenso e complexo problema da existência, com seus temores, ansiedades, esperanças, passageira felicidade e alegrias, mas a análise não pode resolvê-lo. O que o resolverá é abarcá-lo, no seu todo, num rápido lance de olhos. Só podemos compreender uma coisa quando a olhamos (não com o olhar prolongado, exercitado, do artista, do cientista ou do homem que se exercitou para “olhar”), só podemos compreender uma coisa quando a olhamos com toda a atenção, quando a vemos, em seu conjunto, num relance de olhos. E, assim, vos sentireis livres. Estareis então fora do tempo. O tempo se deterá e, por conseguinte, terá fim o sofrer. O homem entregue à amargura ou ao medo não está em relação. Como pode um homem ambicioso de poder estar em relação? Ele poderá ter família, dormir com sua mulher, mas não está em relação. Quem compete com outro não está em nenhuma relação. E toda a nossa estrutura social, com sua moralidade, se baseia na competição. Achar-se em relação, fundamental e essencialmente, significa a cessação do “eu”, gerador da separação e do sofrimento.


Krishnamurti – 25 de abril de 1968 – Onde está a bem-aventurança

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill