Se você se sente grato por este conteúdo e quiser materializar essa gratidão, em vista de manter a continuidade do mesmo, apoie-nos: https://apoia.se/outsider - informações: outsider44@outlook.com - Visite> Blog: https://observacaopassiva.blogspot.com

Mostrando postagens com marcador sofrimento. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador sofrimento. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Só a mente de toda atenta, pode amar


Só a mente de toda atenta, pode amar

PERGUNTA: Gandhiji recorria ao jejum, como meio de modificar o coração dos outros. Seu exemplo tem sido seguido por muitos líderes, na Índia, que consideram o jejum como meio de purificar a si mesmos e à sociedade ambiente. Pode o sofrimento espontâneo ser purificador, e há purificação "vicária"?

KRISHNAMURTI: Sem nada aceitar nem rejeitar, investiguemos esta questão. Dizem que o sofrimento é necessário como meio de purificar a mente. Filosofias inteiras e religiões estão baseadas nesta ideia de que alguém, sofrendo por vós, vos purifica. Isso é possível? E que entendemos por sofrimento? Há o sofrimento causado pela fome, pelo debilitamento, pela doença, pela deterioração física. Uma sociedade baseada na aquisição e na inveja, há de criar inevitavelmente sofrimentos físicos — os que têm e os que nada têm. Isto é bem óbvio. E há o sofrimento psicológico: se eu vos amo e vós não me amais, sofro. Se sou ambicioso e desejo preencher-me numa posição preeminente, e algo acontece que me impede de alcançá-la, vejo-me frustrado e sofro. Dizemos que o sofrimento é um processo inevitável, e como tal o aceitamos; nunca pomos isso em dúvida, nunca perguntamos se é necessário sofrer psicologicamente.

E posso sofrer para o bem de outro? Posso transformar a sociedade pelo meu exemplo? Quando há exemplo, que acontece? Estabelece-se a autoridade; o seguir a autoridade gera temor; e o temor gera a mediocridade da mente superficial. Somos criados com base nessa ideia de que o exemplo, o herói, o santo, o guia, o guru, é necessário; e tornamo-nos, assim, seguidores, sem iniciativa própria, discos de gramofone, a repetir o mesmo velho padrão. Quando nos limitamos a seguir, perdemos todo o sentimento de individualidade, a plenitude da compreensão individual, e isso, muito evidentemente, não resolve os nossos problemas.

E também, se é preciso jejuar, porque jejuar publicamente? Porque tanto espalhafato, barulho, publicidade, tanto toque de caixa? Porque desejais produzir impressão no povo, e o povo é facilmente impressionável. E depois, que se segue? As pessoas se transformaram? Vossa intenção, quando jejuais é de impressionar outras pessoas ou de descobrir o vosso próprio estado mental? Se quereis impressionar outras pessoas, isto é de muito pouca significação, já que é um mero expediente político, visando à exploração.

Mas se é vossa intenção realizar a purificação própria, a compreensão, é necessário o jejum? O que é necessário é penetração, clareza mental, não em dados períodos do ano, mas a todos os momentos, o que significa: estar plenamente vigilante, nas relações. É esta vigilância que vos revela o que sois. Não há dúvida de que um estômago repleto torna a mente embotada; mas embotada se torna também a mente que pratica um sistema, para se esclarecer. A mente, de toda evidência, se embota pela prática de uma virtude. E, no entanto, pensamos que sofrer, jejuar, oferecer exemplos, são coisas necessárias para se promover a transformação da sociedade. Positivamente, o exemplo gera a autoridade — não importa saber se ela é nobre, ou estúpida, ou histórica. E quando submetidos à tirania do exemplo, nossa mente está apenas a ajustar-se a um padrão. O padrão pode ser amplo ou estreito, mas é sempre padrão, molde, e a mente que segue um padrão é, sem dúvida, muito superficial.

O ajustamento, evidentemente, é uma maldição. Mediante ajustamento, pode a mente ser livre? A mente precisa escravizar-se para se tornar livre ou a liberdade deve existir desde o começo? A liberdade não é uma coisa que se vai ganhar, como recompensa, no fim da vida; não é a finalidade da vida, porque a mente que é incapaz de ser livre agora, nunca descobrirá o que é verdadeiro.

A sociedade não pode ser transformada pelo exemplo. A sociedade poderá reformar-se, operar certas mudanças pela revolução política ou econômica, mas só o homem religioso pode operar uma transformação fundamental na sociedade; e o homem religioso não é aquele que se submete à fome como um exemplo para transformar a sociedade. O homem religioso não está interessado, em absoluto, na sociedade, porque a sociedade está baseada na aquisição, na inveja, na ganância, na ambição, no medo. Isto é, uma mera reforma do padrão da sociedade só pode alterar a superfície, produzir uma forma mais respeitável de ambição. Mas o homem verdadeiramente religioso está totalmente fora da sociedade, porque não é ambicioso, não tem inveja, não está seguindo nenhum ritual, dogma ou crença; só esse homem pode transformar fundamentalmente a sociedade, e não o reformador. O homem que quer arvorar-se em exemplo cria conflitos, torna mais forte o medo e faz nascer várias formas de tirania.

É muito estranha esta nossa adoração dos exemplos, modelos, dos ídolos. Não queremos o que é puro, verdadeiro em si mesmo; queremos intérpretes, exemplos, mestres, gurus, para, por seu intermédio, alcançarmos alguma coisa — e tudo isso é puro absurdo, um meio de explorar a outros. Se cada um de nós fosse capaz de pensar claramente desde o começo, ou de reeducar-se para pensar claramente, todos esses exemplos, mestres, gurus, sistemas, se tornariam completamente desnecessários, como realmente são.

Vede, senhores, o mundo, infelizmente, é exigente demais para a maioria de nós; as circunstâncias são-nos pesadas demais, nossas famílias, nossa nação, nossos guias, nossos empregos prendem-nos firmemente, mantêm-nos escravizados — e vagamente esperamos, de alguma maneira, encontrar a felicidade. Mas esta felicidade não vem vagamente, não vem se estais escravizados pela sociedade, se sois escravo do ambiente. Ela só vem, quando a mente está em liberdade — e isso não significa liberdade de pensamento. O pensamento nunca é livre. Mas a mente pode ser livre, e essa liberdade vem, não quando penetramos as múltiplas camadas do inconsciente, analisando a memória dos incidentes e experiências, mas só quando há atenção completa. No processo da auto-análise tem de haver sempre o analista; mas o analista faz parte da coisa analisada, assim como o pensador faz parte do pensamento, e se não compreendeis o problema central, só havereis de aumentar os problemas e criar mais sofrimentos.

A mente não pode ser tornada esclarecida, pura, "inocente", por nenhum método, nenhuma disciplina, nem pela prática de qualquer virtude. A virtude é essencial, mas a virtude cultivada não é virtude. O sofrimento, naturalmente, tem de ser compreendido. Enquanto existir o "eu", o "ego", tem, de haver sofrimento. O homem evita esse sofrimento, mas nesse próprio evitar do sofrimento, ele fortalece o "ego", e todas as suas atividades sociais, suas reformas, só podem criar mais malefícios, mais aflições. Isto também se vos tornará óbvio, se refletirdes um pouco.

Assim, há necessidade de ação completamente dissociada da sociedade, uma maneira de pensar não contaminada pela sociedade, porque só então se tornará possível a verdadeira revolução — que não é revolução superficial, num nível único, econômico, social ou de outra ordem. A revolução total tem de realizar-se no próprio homem e só então a mente pode resolver os crescentes problemas da sociedade.

Agora, tendes escutado tudo isso, concordando ou discordando; mas, como já disse, não há nada com que concordar ou de que discordar. Tudo isso são fatos e, conhecedores desses fatos, que ides fazer? Por certo, é muito importante averiguar isso. Retornareis à sociedade de que sois prisioneiros, ou escutastes com atenção completa? Se escutastes com toda a atenção, esta atenção produzirá sua ação própria e nada tereis que fazer. Isso é como o amor. Amai, e agireis. Mas, sem amor, não importa o que façais — praticando, disciplinando, reformando — o coração nunca se esclarecerá. E é isto que está acontecendo no mundo. Temos exemplos, disciplinas, técnicas maravilhosas e, no entanto, os nossos corações estão vazios, porque repletos das coisas da mente. E quando vazios os nossos corações, as nossas soluções para tantos problemas são também vazias. Só a mente capaz de atenção completa sabe amar, porque esta atenção é ausência do "eu".

Krishnamurti, Segunda Conferência em Madrasta, 15 de janeiro de 1956
Da Solidão à Plenitude Humana

domingo, 1 de abril de 2018

O sofrimento é atividade egocêntrica

O sofrimento é atividade egocêntrica

A semana passada falamos da vida holística (uma maneira de viver sem fragmentação, sem divisões, ao contrário de nossas vidas). Analisamos essa questão com bastante profundidade. Vimos que as causas da fragmentação são os diferentes fatores de nossa vida social, moral e religiosa que nos dividem em hindus, muçulmanos, cristãos, budistas, etc. As religiões são as máximas responsáveis desta catástrofe. Também falamos do tempo (o passado com todas recordações, a acumulação de experiências, etc.) Dizemos que o tempo se modifica no presente e segue para o futuro. Assim é a nossa vida. Segundo os biólogos e os arqueólogos, levamos mais de três milhões e meio de anos vivendo na Terra. Durante este longo período chamado “evolução”, temos acumulado muita memória. Também falamos da limitação da memória e do pensamento, e de como essa limitação divide o mundo geográfica, nacional e religiosamente.

[...] Nossas vidas, nossa vida cotidiana está em desordem. Isso significa uma contradição: dizer uma coisa e fazer outra, crer em algo e atuar de maneira totalmente diferente a como o faríamos. Essa contradição gera desordem. Pergunto-me se todos nos percebemos desse problema. Segundo parece, cada vez há mais e mais desordem no mundo, devido aos maus governos, à economia e às condições sociais. Sempre está presente a ameaça da guerra, que cada vez parece mais iminente, mais e mais pressionada, e os governos de todo o mundo, inclusive das pequenas nações, estão comprando armamento. Em todo o mundo há uma enorme desordem, e nossas vidas diárias também bebem dessa fonte, ainda que constantemente tratemos de conseguir ordem. Queremos ordem, porque sem ela, os seres humanos, sem dúvida, se destruirão entre eles.

Espero que compartilhemos este tema, que pensemos, observemos e escutemos juntos, para ter um diálogo no qual possam participar. Não se trata de acumular umas poucas ideias ou conclusões, senão que juntos devemos averiguar por que vivemos em desordem, e se pode haver uma completa ordem em nossas vidas e, portanto, na sociedade.

Nós temos criado a sociedade com nossa cobiça, nossa ambição, nossa inveja e com nosso conceito de liberdade individual. Essa sensação de individualidade tem gerado enorme desordem. Por favor, não estamos acusando a ninguém; tão só observamos o que ocorre no mundo. Em nossas vidas, tal como vivemos depois destes milhões de anos, segue havendo desordem, apesar de que sempre buscamos ordem, porque sem ordem não é possível funcionar com liberdade e de maneira holística. Assim, pois, devemos descobrir o que é ordem, não como um projeto, não como algo que devemos enquadrar e logo seguir. A ordem é algo muito ativo, muito vivo; não se adapta a nenhum modelo, seja idealista, histórico, conclusões dialéticas ou imposições religiosas. As religiões de todo o mundo se apoiam em certas leis, imposições e preceitos, mas os seres humanos não os seguem de nenhuma maneira. De modo que vamos descartar todas estas conclusões ideológicas e crenças religiosas, que nada têm que ver com nossa existência cotidiana. Já temos aceitado e seguido leis impostas pelas religiões, mas só tem gerado mais fanatismo, etc.

O que é a ordem? É possível descobrir o que é ordem quando nossos cérebros estão confusos e em desordem? Por isso devemos saber o que é desordem e não o que é a ordem, porque quando não há desordem, naturalmente aparece a ordem. Estão de acordo? Uma das causas da desordem, talvez a maior causa, seja o conflito. Se há conflito (não só entre homem e mulher, senão também entre nações, religiões, crenças e fés) deve haver desordem.

[...] Devemos estudar a questão de se vivemos nessa ilusão de que somos indivíduos separados. A teoria comunista, como talvez saiba a maioria, diz que somos o resultado de nosso meio ambiente e, em consequência, se modificamos nosso ambiente, também modificaremos os seres humanos. Isso é totalmente absurdo, como se torna patente quando se observa a Rússia totalitarista. O domínio de uns poucos e o controle do pensamento, entre outras coisas, não tem colocado fim a individualidade como se esperava, senão totalmente o contrário. De modo que uma das maiores causas da desordem em nossas vidas se deve a que cada um acredita que é livre, cada um pensa em sua própria realização, em seus desejos, em suas ambições, em seus prazeres particulares. Descubramos se a individualidade é um fato ou se é uma ilusão largamente estabelecida e respeitada. Podemos investigá-lo juntos sem aceitá-lo ou negá-lo? É uma tolice dizer: “Estou de acordo com você”, ou “Não estou de acordo”. Não estão de “acordo” ou em “desacordo” com o nascer ou pôr do Sol; é um fato. Nunca dizem: “Estou de acordo de que o Sol nasce pelo leste”. Assim, pois, podemos deixar de lado esse conceito de estar de acordo ou em desacordo, e investigar sem preferências, sem resistências, se existe realmente a individualidade ou se existe algo totalmente diferente?

Nossa consciência é o resultado de um milhão de anos ou mais. Contém toda a essência animal e primitiva, visto que viemos do animal, da natureza. Vemos que no mais profundo de nossas consciências, ainda há fortes respostas animais: estão os medos e o desejo de segurança. Tudo isso faz parte de nossa consciência. Nossas consciências também contém inumeráveis crenças, fés, reações, ações, diferentes recordações, medos, prazeres, sofrimentos e essa busca de total segurança. Isso é tudo o que somos. Podemos pensar que temos uma parte divina, mas isso só faz parte de nosso pensar. Acreditamos que toda essa consciência pertence a cada um de nós, não é verdade? O cristianismo, o hinduísmo e as demais religiões sustentam que somos almas separadas.

Bem, agora, nós o questionamos. Você não compartilha do sofrimento com o resto dos seres humanos? Os homens de todo o mundo têm diferentes tipos de medo e de prazeres. Eles sofrem e você também o faz. Eles rezam e fazem todo tipo de absurdas cerimônias, igual a vocês; e buscam estímulos e sensações através de cerimônias, igual a vocês. De modo que compartilhamos a consciência com toda a humanidade; você é a humanidade inteira. Primeiro, veja a lógica de tudo isto. Qualquer ser humano sofre na Terra, independente de sua religião ou crença. Todo ser humano sofre, profunda ou superficialmente, e trata de escapar desse sofrimento. Mas essa consciência, que consideramos “minha”, que é “nossa consciência pessoal”, não é um fato, porque todos os seres humanos que vivemos nesta maravilhosa e bela Terra (que pouco a pouco destruímos) passamos pelos mesmos problemas: dor, ansiedade, solidão, desespero, lágrimas, risos, contradições, o conflito entre o homem e a mulher, entre o esposo e a esposa. Bem, se temos essa consciência, somos indivíduos? Porque você é isso, sua consciência. Não importa o que pense ou imagine, suas tendências, suas atitudes, seus talentos e seus dons, já que tudo isso é compartilhado pelo resto dos seres humanos, que são exatamente como você ou semelhantes. Isso é um fato lógico. E a lógica tem seu lugar. Você deve pensar com clareza, com lógica, com sanidade, raciocinando. Mas a lógica se baseia no pensamento. Por mais lógico que possa ser, o pensamento é limitado. Por isso deve ir mais além do pensamento, mais além dos limites do raciocínio e da lógica.

Você é a humanidade inteira; não somos indivíduos. Escutem esta informação: você são a humanidade inteira; são a humanidade, não são indianos nem todas essas absurdas divisões. Ao escutar uma afirmação como esta, a convertem numa abstração? Quer dizer, convertem esse fato numa ideia? O fato é uma coisa e a ideia a respeito do fato é outra. O fato é que vocês acreditam que são indivíduos. Suas religiões, suas vidas cotidianas, seus condicionamentos lhes faz crer que são indivíduos. E se alguém como o orador lhes diz: “analisem-no com cuidado, estão seguros de que é assim?” A princípio resistem e respondem: “O que está dizendo?”. O descartam. Mas se escutam detidamente, então acabamos compartilhando essa informação de que são a humanidade inteira. Como escutam essa afirmação, como escutam seu som? A convertem numa ideia afastada do fato e logo perseguem essa ideia?

Ao escutar a afirmação de que sua consciência, com todas as reações e ações, é compartilhada por toda a humanidade, porque cada ser humano passa pelo desespero, a sensação de solidão, o sofrimento e a dor, igual a você, como escuta essa afirmação? A recusa ou a examina? A analisa ou tão só diz: “Que besteira?” O que está fazendo, não amanhã, senão agora? Qual é a sua reação? Pode escutar sua profundidade, seu som, sua beleza, sua imensidade, sua tremenda responsabilidade, ou tratá-la de forma superficial, verbal, dizendo: “Sim, a entendo intelectualmente”. O entendimento intelectual pouquíssimo significado. Deve estar em seu sangue, em suas entranhas, e daí surge uma qualidade diferente no cérebro, uma qualidade holística, não fragmentada. A fragmentação é o que cria a desordem. Nós, como indivíduos, temos fragmentado a consciência humana e, portanto, vivemos em desordem.

Perceber que somos a humanidade inteira é amor. Então não matará a ninguém, não fará dano a ninguém. Se afastará de qualquer agressão, da violência e da crueldade das religiões. Nossa consciência é uma com a humanidade. Não veem a beleza, a imensidão disso. Regressarão a seus próprios padrões, pensando que todos somos indivíduos; lutarão, se esforçarão, competirão, cada um tratando de preencher seu próprio pequeno e detestável ego. Sim, senhor, isso não significa nada para você, porque regressará ao seu modo de viver. De modo que é preferível que não escute nada de tudo isto. Se escuta uma verdade e não atua, essa verdade se converte em veneno. Por isso nossas vidas são muito opacas e superficiais.

Também devemos falar juntos do porque o homem busca sempre o prazer: de possuir, de realizar, de poder, de ter um status. Está o prazer sexual, que se mantém com o incessante pensamento centrado no sexo, o imaginar, o criar representações e imagens, quer dizer, o pensamento estimula o prazer, e as sensações se convertem em prazer. Assim, pois, devemos compreender o que é o prazer e por que o buscamos. Não dizemos que é bom ou mal. Não estamos condenando o prazer, da mesma maneira que não fazemos o mesmo com o desejo. O desejo é parte do prazer. Realizar um desejo é a mesma natureza do prazer. O desejo pode ser a causa da desordem, cada um querendo realizar seu próprio e particular desejo.

Assim que juntos vamos estudar se o desejo é uma das maiores causas da desordem; devemos explorar o desejo, não condená-lo, não escapar dele, nem tratar de reprimi-lo. Quase todas as religiões dizem: “Reprima o desejo”, o qual é absurdo. Vejamos: o que é o desejo? Façam-se essa pergunta. Seguramente muitos de nós nunca nos temos questionado. O aceitamos como parte da vida, como um instinto natural do homem ou da mulher e, em consequência, dizemos: “por que devemos nos preocupar?” Há pessoas que renunciam ao mundo, que ingressam em mosteiros, e tratam assim de reprimir seus desejos adorando a um símbolo ou a uma pessoa. Tenham presente que não estamos condenando o desejo. Tratamos de descobrir o que é e por que o homem leva milhões de anos preso no solo do desejo físico, senão também no psicológico, na rede dos desejos.

[...] Estamos observando o desejo, sua origem, e por que sempre os seres humanos estão presos no desejo. Se têm um pouco de dinheiro querem mais; se têm um pouco de poder, querem mais. E o poder em todas as suas formas, seja sobre sua esposa ou seus filhos, político ou religioso, é uma coisa abominável. É maléfico, porque não tem nada que ver com a verdade. Assim, qual é a origem do desejo? Vivemos de sensações; se não as tivéssemos, sejam elas biológicas e psicológicas, seríamos seres humanos mortos; não é certo? O grasnar de um corvo atua sobre o tímpano e os nervos, e esse som se traduz como o grito do corvo. Isso é uma sensação. A sensação surge do escutar ou de ver, e logo vem o contato. Você vê um jardim muito bem cuidado: tem uma cor verde intensa, perfeita, não têm ervas daninhas. É belo de contemplar. Primeiro o vê, então, se é sensível, se aproxima e toca a relva. Quer dizer, primeiro vê, depois há um contato, e logo se produz a sensação.

Vivemos de sensações; são necessárias. Se você não é sensível está embotado, está meio morto, como a maioria das pessoas. Tomemos um exemplo simples. Observa um belo sári ou camisa em uma tenda. A vê. Entra na tenda e a toca; ao tocá-la surge uma sensação e diz: “Deus meu, que textura tão bela!” O que ocorre mais tarde?...

Vejo um belo automóvel, tocam o abrilhantado, sua forma e seu perfil. Daí surge uma sensação. Mais tarde, o pensamento interfere e diz: “Que fantástico seria tê-lo, que bonito seria dirigi-lo!” Que ocorreu? O pensamento interferiu e deu forma à sensação, acrescentou à sensação a imagem de si mesmo sentado no automóvel e o dirigindo. Nesse momento, nesse segundo, quando o pensamento cria a imagem de si mesmo sentado no automóvel, surge o desejo. O desejo aparece quando o pensamento lhe dá forma, quando cria uma imagem da sensação. Bem, agora, esta é uma expressão da existência, é parte da vida. Mas vocês têm aprendido a reprimir, a dominar ou a viver com o desejo e todos os seus problemas. Então, se compreendem isso, não intelectualmente, senão de verdade, se entendem que o pensamento da forma à sensação, e um segundo depois surge o desejo, a pergunta seguinte é: podemos ver e tocar o automóvel, o qual é uma sensação, mas não permitir que o pensamento crie uma imagem? Trata-se de manter um intervalo.

Mas também deve-se averiguar o que é a disciplina, já que está relacionada com o desejo. A palavra disciplina procede do termo discípulo cujo significado etimológico é “aquele que aprende”. Um discípulo é aquele que aprende (aprender, não conformar-se, não controlar, não reprimir, não obedecer, não seguir, senão o contrário, aprender através da observação). Assim, estamos aprendendo sobre o desejo. Aprender não é memorizar. A maioria estão treinados, em especial se pertencem ao exército, a disciplinar-se segundo um padrão, a copiar, a seguir, a obedecer. Mas se você aprende, então esse mesmo aprender tem sua própria ordem; não há necessidade de impor uma ordem mediante uma lei ou qualquer outra coisa. Aprender, descobrir se é possível que a sensação floresça sem permitir que o pensamento interfira, manter a sensação e o pensamento separados. O farão? Se o fazem, verão, descobrirão que o desejo tem seu lugar. E quando se compreende a natureza do desejo, o conflito cessa.

Também devemos falar do amor, do sofrimento e da morte. Tudo isto é muito sério porque afeta a sua vida diária. Não se trata de um jogo intelectual, pois que afeta a sua vida; não a de outros, senão à maneira em que se vive há milhões de anos. Observem isso. Tudo isto têm criado grandes estragos no mundo. Todos querem uma posição de destaque, realizar algo, ser algo. E se observamos, vemos que há um enorme sofrimento. Cada ser humano no mundo, tanto se ocupa uma posição destacada como se é um simples aldeão ignorante, passa por esse enorme sofrimento. Pode ser que não reconheça a natureza, a beleza e a força do sofrimento, mas passa por essa dor igual a sua. Os seres humanos têm padecido do sofrimento durante milhões de anos, e não têm solucionado este problema, senão, ao contrário, porque tratam de fugir dele. Qual é a relação entre o sofrimento, o amor e a morte? É possível colocar fim ao sofrimento? Essa é uma das perguntas que a humanidade tem se feito durante um milhão de anos. É possível terminar com a dor, a ansiedade, a tristeza e o sofrimento?

O sofrimento não é só particular, senão que também se inclui o da humanidade. Historicamente, tem havido cinco mil anos de guerras. Isso significa que cada ano muitas pessoas matam a outras para garantir a segurança de sua tribo, sua religião, sua nação, sua comunidade e sua proteção individual, entre outras coisas. Percebem o que as guerras fazem, dos estragos que geram? Quantos milhos têm chorado, quantos milhões têm sido feridos, têm perdido os braços, pernas, olhos, e inclusive seus rostos? Vocês não sabem nada de tudo isto. Bem, é possível colocar fim ao sofrimento e toda a dor que isso implica? O que é o sofrimento? Não sabem o que é? Lhes envergonha reconhecê-lo? Quando seu filho, sua filha ou outro que acredita amar se parte, não tem derramado lágrimas? Não tem sentido uma terrível solidão ao perder para sempre um companheiro? Não se fala da morte, senão dessa coisa imensa que o homem padece sem nunca encontrar uma solução.

Se o sofrimento não cessa, não há amor. O sofrimento é parte de nosso interesse próprio, de nosso egoísmo, de nossa atividade egocêntrica. Possivelmente chora por alguém, por seu filho, por seu irmão, por sua mãe, por quê? Porque perdeu alguém a quem estava unido, a alguém que lhe oferecia companhia e conforto, entre outras coisas. Ao perder essa pessoa se dá conta do muito vazia, do muito solitária, que é sua vida. Então chora. E aparecem muitas outras pessoas dispostas a lhe consolar, e você cai com muita facilidade nessa armadilha do conforto. Há o conforto de Deus, que é uma imagem criada pelo pensamento, ou de alguma ideia ou conceito ilusório. Isso é tudo o que queremos. Nunca questionamos essa urgência, esse desejo de conforto. Nunca questionamos se realmente existe o conforto. Necessita-se de uma cama ou uma cadeira confortável, o que está bem. Mas nunca nos questionamos se existe realmente o conforto psicológico, interno. Por acaso esse conforto não é uma ilusão que você tem convertido em sua verdade?

Você pode converter uma ilusão em sua verdade (a de que você é Deus, de que Deus existe). Esse deus foi criado pelo pensamento, pelo medo. Se não tivesse medo, não haveria nenhum deus. Deus é uma invenção que nasce do medo, da solidão, do desespero e da busca de um conforto duradouro do homem. Nunca nos questionamos se existe satisfação profunda e duradoura. Todos querem sentir-se satisfeitos, não só com a comida, senão também sexualmente, ou conseguindo alguma posição de autoridade e obtendo conforto dessa posição. Questionamo-nos se realmente existe algum tipo de conforto, se existe algo que seja gratificante desde o momento em que nascemos até que morremos. Não escutem só a mim; investiguem, ponham sua energia, seu pensamento, seu sangue e seu coração em descobri-lo. Se não tivessem ilusões, existiria o conforto? Há que se ter em conta que é outro tipo de prazer.

Esse é um problema muito complexo de nossa vida (por que somos tão superficiais, banais, cheios de conhecimentos de outras pessoas e de livros; por que não somos independentes, seres humanos livres para descobrir, por que somos escravos). Não se trata de perguntas retóricas, senão de questionamentos que cada um deve se fazer. No próprio perguntar e duvidar, chega a liberdade. Sem ela, a verdade não tem nenhum sentido.

Amanhã analisaremos a questão do que é uma vida religiosa, e se existe algo totalmente sagrado, santo, algo que não tenha sido inventado pelo pensamento.

Krishnamurti, Bombaim, terceira palestra pública
9 de fevereiro de 1985
_________________________________

quinta-feira, 29 de março de 2018

Na percepção plena, o fim do sofrimento


Na percepção plena, o fim do sofrimento

O amor é desejo?

O ardor, a excitação, é um sinal de amor?

O amor pode existir quando há ambição, agressividade?

Pode haver amor quando um ser humano é ferido desde a infância, quando há sofrimento?

Ou por acaso, esse aroma, isso ao qual temos chamado de amor, existe apenas quando tudo isso acaba?

Tudo isso pode acabar?

Não intelectualmente, nos contentando com explicações adequadas ou com redução do sofrimento e o medo de uma questão científica de substâncias e comportamento químicos.

Como podemos matar outro, seja na guerra ou em uma explosão de violência, se houver amor?

Aparentemente, nós humanos somos prisioneiros na terrível tragédia do hábito, da tradição, da atividade de um cérebro atrofiado por causa de seu funcionamento mecânico.

Tanto nas igrejas do Ocidente como no mundo oriental nos apegamos às crenças, à fé, à constante repetição de infinitos e absurdos rituais, que são o produto do pensamento. E o pensamento é um processo material, como já explicamos e como alguns cientistas começam a aceitar.

A pergunta é: o sofrimento pode terminar? Não só o sofrimento pessoa, mas sim o a humanidade inteira.

Pois o sofrimento não é seu ou meu; é o sofrimento que cinco mil anos de guerra criaram;
o sofrimento pelo qual o ser humano continua se armando para a guerra; o sofrimento da divisão eterna entre os seres humanos: entre católicos e protestantes, hindus, budistas e muçulmanos; entre árabes e judeus, americanos e russos...

Esta divisão permanente é a causa de um terrível conflito mundial. No entanto, parece que não somos conscientes dele, que não nos percebemos do terrível perigo diante do qual nos encontramos; nos valemos de qualquer conhecimento, explicação ou diversão para evitá-lo.

Podemos, em vez de fugir, perceber com sensibilidade da sociedade que o ser humano tem
criado, ver que somos parte disso e que somos, portanto, absolutamente e totalmente responsáveis por tudo o que acontece no mundo?
Queremos descobrir se esse sofrimento que distorce o pensar pode terminar.

Por favor, tenham a bondade de levantar esta pergunta; não porque quem lhes fala, peça que o façam, mas porque é seu sofrimento, o sofrimento da humanidade e não há palavra, explicação nem fuga capaz de acabar com ele: é preciso enfrentá-lo. Ou se o olha de lado, superficialmente, com impaciência, tentando transcendê-lo, isto é, não encara diretamente, ou se está completamente com o que é, sem que nenhum pensamento interfira e distorça a realidade do sofrimento.

O Sofrimento é por um lado autopiedade, tortura autoimposta, abnegação e, por outro lado, as várias atividades do "eu", que tenta satisfazer seus desejos, e o consegue ou fracassa.

Tudo isso, e mais, faz parte do sofrimento.

Você pode olhar diretamente, estar em contato completo com isso?

Esse contato total só é possível se não houver divisão entre você e isso ao que chama de sofrimento.

Você não está separado do sofrimento; sem dúvida, como observador você acredita que está, e para remediar esse sofrimento, tenta escapar, reprimindo-o, analisando-o, ignorando-o, transcendendo-o, pondo-lhe um fim, o que acentua a divisão.

Assim nós temos vivido tradicionalmente; mas o fato é que você está sofrendo, não que você está separado dele: quando você fica com raiva, a raiva não é diferente de você; Quando é violento, você não é diferente da violência.

As figuras religiosas e símbolos que você tem criado fazem parte de você; embora os adore
como se estivessem separados, é o ser humano quem os criou com a mão ou com a mente.

E como essa divisão só gera conflito, deve-se observá-la; observar em primeiro lugar que essa divisão existe, que essa é a tradição.

De acordo com isso, fomos ensinados que o "eu" é separado do sofrimento, da dor, da ansiedade, de medo e até do prazer; nós fomos condicionados a pensar assim de meninos e para quebrar esse condicionamento e, assim, acabar com o conflito, tem que se observar, tem que se estar em contato com esse sofrimento, com esse medo e com esses desejos, eliminando completamente a sensação de que há observador que olha para dentro a partir de fora.

Como em todas as relações entre os seres humanos, o pensamento tem criado uma divisão.

Se você observar seu relacionamento com outro, por mais íntimo que seja, você verá que há uma separação óbvia entre vocês e esta separação, seja nos relacionamentos íntimos, nacionais ou internacionais, necessariamente gerará conflito; essa é a lei.

É por isso que, onde estamos há conflito em todos os nossos relacionamentos.

Então, existe a possibilidade de ser um com o sofrimento, sem qualquer divisão, sem a menor tentativa de superá-lo ou explicá-lo?

Pois nesse contato completo com o sofrimento, a atenção é total, toda a energia é colocada nisso, e é essa energia que age e põe fim ao sofrimento.

Ojai, sexta palestra pública,
17 de maio de 1981
A Atenção e a Liberdade Interior
__________________________________________________

sábado, 21 de março de 2015

Eu sou o guarda do meu irmão

JK: (...) Pode a humanidade viver sem conflito?... Podemos ter paz nesta terra? As atividades do pensamento nunca resultam em paz.

DB: Do que foi dito, parece claro que a atividade do pensamento não pode produzir a paz: gerar o conflito é algo que lhe é inerente. 

JK: Sim, se nós realmente percebêssemos isso, toda a nossa atividade seria totalmente diferente. 

DB: Mas o senhor está dizendo então que há uma atividade que não é pensamento? Que está além do pensamento?

JK: Sim. 

DB: E que não só está além do pensamento mas que também não requer a cooperação do pensamento? Que é possível que essa atividade continue quando o pensamento está ausente?

JK: Este é o ponto fundamental. Já discutimos isso muitas vezes: se há alguma coisa além do pensamento. Não alguma coisa santa, sagrada — não estamos falando disso. Estamos querendo saber é, existe uma atividade que não seja influenciada pelo pensamento. E dizemos que ela existe. E que essa atividade é a forma suprema da inteligência. 

DB: Sim; introduzimos agora a inteligência. 

JK: Eu sei, eu a introduzi de propósito! A inteligência não é a atividade do pensamento astuto. Existe a inteligência para se construir uma corda...

DB: Bem, a inteligência pode usar o pensamento, como o senhor já disse muitas vezes. Ou seja, o pensamento pode ser a ação da inteligência —  poderíamos nos expressar assim?

JK: Sem dúvida. 

DB: Ou poderia ser a ação da memória? 

JK: Aí é que está. Também pode ser a ação nascida da memória, e como a memória é limitada, o pensamento é limitado e tem sua própria atividade, a qual produz então o conflito...(...) Essa inteligência não tem nada a ver com a memória, com o conhecimento.

DB: Ela pode atuar na memória e no conhecimento mas não tem nada a ver com isso...

JK: Isso mesmo. Eu quero dizer: como o senhor descobre se essa inteligência tem alguma realidade e não é apenas imaginação ou ficção romântica? Para se chegar a isso, é necessário examinar toda a questão do sofrimento, se há um fim para o sofrimento. E enquanto o sofrimento, o medo e a busca de prazer existirem, não pode haver amor

DB: Temos aqui muitas questões. Sofrimento, prazer, medo, raiva, violência e ganância —  tudo isso são respostas da memória. 

JK: Sem dúvida. 

DB: Não tem nada a ver com a inteligência. 

JK: Todos são parte do pensamento e da memória. 

DB: E enquanto isso continuar, parece que a inteligência não pode operar no pensamento, ou através do pensamento. 

JK: Isso mesmo. Precisamos, portanto, nos libertar do sofrimento. 

DB: Bem, esse é o ponto fundamental. 

JK: Essa é uma questão realmente muito séria e profunda: se é possível acabar com o sofrimento, que é o fim do eu.

DB: Sim, pode parecer redundante, mas a sensação é a de que eu estou aqui, e que posso sofrer ou não. Ou desfruto as coisas ou sofro. Contudo, acho que o senhor está dizendo que o sofrimento provém do pensamento; que ele é o pensamento.

JK: Identificação. Apego. 

DB: Então, quem é que sofre? A memória pode produzir prazer e, desse modo, quando ela não é eficaz, produz o oposto do sentimento de prazer — dor e sofrimento. 

JK: E não só isso. O sofrimento é muito mais complexo, não? 

DB: Sim.

JK: O que é o sofrimento? O significado da palavra é ter dor, aflição, sentir-se completamente perdido, só. 

DB: Parece-me que não é apenas dor, mas uma espécie de dor muito penetrante, total... (...) Algumas pessoas acham qe através do sofrimento elas se tornam...

JK: ...Inteligentes?

DB:... Purificadas, como se tivessem passado por um crisol. 

JK: Eu sei. Que através do sofrimento você aprende. Que através do sofrimento o seu ego desaparece, se dissolve.

DB: Sim, se dissolve, aprimora-se. 

JK: Não é verdade. As pessoas sofreram muito, quantas guerras, quantas lágrimas, sem falar na natureza destruidora dos governos. E o desemprego e a ignorância...

DB:... Ignorância da doença, da dor, de tudo. Mas o que é realmente o sofrimento? Por que ele destrói a inteligência, ou a impede? O que acontece?

JK: O sofrimento é um choque; eu sofro, tenho uma dor — eis a essência do "eu". 

DB: A dificuldade em relação ao sofrimento é que o eu é que está ali, que está sofrendo. 

JK: Sim. 

DB: E, de algum modo, esse eu está sentindo realmente pena de si mesmo

JK: O meu sofrimento é diferente do seu. 

DB: Sim, ele se isola. Cria um tipo de ilusão. 

JK: Não percebemos que o sofrimento é compartilhado por toda a humanidade. 

DB: Sim, mas se chegássemos a perceber que ele é compartilhado por toda a humanidade?

JK: Então começo a questionar o que é o sofrimento. Ele não é o meu sofrimento. 

DB: Isso é importante. Para compreender a natureza do sofrimento, preciso me desfazer dessa ideia de que ele é meu sofrimento porque, enquanto acreditar que ele é meu, terei uma noção ilusória do problema como um todo. 

JK: E nunca poderei acabar com ele. 

DB: Se você está lidando com uma ilusão, nada pode ser feito a respeito dela. (...)

JK: O sofrimento é comum a toda a humanidade.

DB: Mas o fato de ser comum não é suficiente para torná-lo o mesmo para todos. 

JK: Ele é real. 

DB: O senhor está dizendo que o sofrimento é único, inseparável?

JK: Sim, é o que eu venho dizendo. 

DB: Assim como a consciência humana?

JK: Sim, isso mesmo. 

DB: De modo que quando alguém sofre, toda a humanidade está sofrendo?

JK: A questão é a seguinte: temos sofrido desde o princípio e nunca encontramos uma solução para isso. Não acabamos com o sofrimento. 

DB: Mas eu acho que o senhor disse que a razão pela qual não encontramos uma solução é porque o consideramos como algo pessoal, ou pertencente a um pequeno grupo... e isso é uma ilusão.

JK: Sim.

DB: E qualquer tentativa de se lidar com uma ilusão não pode resolver coisa alguma. 

JK: O pensamento não pode resolver nada psicologicamente. 

DB: Porque o senhor pode dizer que o próprio pensamento divide. O pensamento é limitado e incapaz de perceber que esse sofrimento é único. Desse modo, ele o divide em meu e seu. 

JK: Isso mesmo. 

DB: E isso cria a ilusão, que só pode multiplicar o sofrimento. Parece-me então que a firmação de que o sofrimento é único, não pode ser separado da afirmação de que a consciência humana é única. 

JK: O mundo sou eu: eu sou o mundo.(...) O mundo da sociedade, principalmente o mundo psicológico. 

DB: Dizemos então que o mundo da sociedade, dos seres humanos, é um só, e o que significa quando digo que eu sou o mundo?

JK: Que o mundo não é diferente de mim.

DB: O mundo e eu somos um. Somos inseparáveis. 

JK: Sim. E essa é a verdadeira meditação; você precisa sentir isso, não apenas como uma afirmação verbal; trata-se de uma realidade. Eu sou o guarda do meu irmão. (...) Assim sendo, essa inteligência é real? Você compreende a minha pergunta? Ou trata-se de alguma espécie de projeção fantasiosa, na esperança de que ela resolverá nossos problemas? Eu não penso assim. Ela é uma realidade. Por que o fim do sofrimento significa amor.

Krishnamurti e David Bohm em, O Futuro da Humanidade

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O vício do desabafo, Deus, abafa


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O sofrimento pode lhe dar a chave da vida

Sempre que você sofrer, da próxima vez, não reclame, não crie uma angústia daquilo. Ao contrário, observe, sinta-o, veja-o, olhe para aquilo de todos os ângulos possíveis. Faça daquilo uma meditação e veja o que acontece: a energia que estava indo para a doença, a energia que estava criando sofrimento, é transformada, a qualidade muda. A mesma energia torna-se sua consciência, porque não há duas energias em você, a energia é uma só. 

(...) Quando você sofre, você está dissipando energia, a energia está vazando. Sempre que há sofrimento,sacuda-se. Feche seus olhos e olhe para o sofrimento. Seja ele qual for — mental, físico, existencial —, seja o que for olhe para ele, faça disso uma meditação. Olhe para ele como se ele fosse um objeto. 

Quando você olha para o seu sofrimento como um objeto, você está separado, você não mais está identificado com ele, a ponte foi quebrada. E, então, a energia que estava indo para o sofrimento, não irá, porque a ponte não existe mais. A ponte é a identificação. Você sente que você é o corpo, então, a energia se move para dentro do corpo. Quando quer que você sinta qualquer identificação, sua energia se move aí. 

(...) Sempre que há sofrimento, fique alerta; então a ponte está partida, então não há nenhuma transferência de energia para o sofrimento. E, pouco a pouco, o sofrimento desaparece, porque o sofrimento é seu filho. Você lhe deu nascimento, você é a causa. E, então, você o alimenta, você o rega. E então, ele cresce e você sofre mais ainda. Então, você reclama, você fica miserável, toda a sua atenção fica identificada com o sofrimento. 

(...) Use todo o sofrimento para a meditação e, logo, logo, verá que o sofrimento desapareceu, porque a energia começa a se mover para dentro. Ela não fica se movendo na periferia, para o sofrimento, você não fica alimentando o sofrimento. Parece ilógico, mas essa é toda a conclusão de todos os místicos do mundo: que você alimenta seu sofrimento e gosta dele de modo muito sutil, você não quer ficar bem — deve haver algum investimento nisso. 

(...) Noventa e nove por cento do sofrimento existe porque vocês associaram algo, que parece bom, com o sofrimento. Abandone essa associação. Ninguém mais pode fazer isso por você. Abandone essa associação completamente. O sofrimento está simplesmente desperdiçando sua energia. Não fique envolvido nele, não pense que ele vale a pena. Há somente um único meio em que o sofrimento vale a pena, e esse meio é com consciência. Torne-se consciente.

(...) Sofra reservadamente, sofra tão reservadamente que ninguém jamais fique sabendo do seu sofrimento. E então medite sobre ele: não o jogue para fora, acumule-o dentro e, depois, feche seus olhos e medite sobre ele. Então, a ponte será partida. 

(...) O sofrimento pertence ao reino da morte, a consciência pertence ao reino da vida. Quebre a ponte e você saberá que algo em você, ao seu redor, vai morrer — aquilo que pertence à morte; e algo em você, sua consciência, não vai morrer, ela é imortal, pertence a vida. Eis que o sofrimento pode lhe dar a chave da vida. 

OSHO

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Como conseguir livrar-se do sofrimento?

Você está sempre perguntando como conseguir livrar-se do sofrimento. Perguntando assim, parece que o sofrimento o está segurando e você quer livrar-se dele. Se o sofrimento estivesse lhe segurando, então não seria possível você se livrar dele, porque a posse não estaria em suas mãos, mas nas mãos do sofrimento. Você seria impotente. E se depois de tantas vidas você ainda não conseguiu tornar-se livre, então como conseguir tornar-se livre agora?

Eu digo a você que o sofrimento não o está segurando; você é que está segurando o sofrimento. E se você puder fazer uns experimentos, aceitando o que eu estou dizendo, você irá compreender por si mesmo. E não apenas você compreenderá isso, mas você irá experienciar uma entrega; você saberá como o sofrimento pode ser abandonado. E quando tornar-se bom na arte de abandonar o sofrimento, você irá perceber o que estava arrastando consigo. E ninguém, a não ser você, era responsável por isso. Por qualquer coisa que você tenha experienciado como sofrimento, nenhuma outra pessoa pode ser responsabilizada. Esse era o seu desejo: você queria sofrer. Tudo o que nós desejarmos será permitido. E tudo o que você é, é o fruto dos seus desejos. Nem Deus é responsável, nem a sorte; ninguém tem motivo algum para lhe causar problemas.

A verdade é que a existência está sempre querendo fazer você ficar alegre. Toda essa existência quer que a sua vida se torne um festival... porque quando você está infeliz, você também sai atirando infelicidade por toda a sua volta. Quando você está infeliz, o mau cheiro de suas feridas alcança toda a existência. E quando você está infeliz, a existência também sente dor. Todo esse mundo sente dor quando você está infeliz e sente alegria quando você está alegre. A existência não deseja que você deva ser infeliz. Isso seria suicídio para a própria existência. Mas você está infeliz e para se tornar infeliz você teve que fazer toda sorte de arranjos. E enquanto isso não for destruído, você não será capaz de abrir os seus olhos para a felicidade. "

Osho

domingo, 30 de novembro de 2014

Autoconhecimento não é tranquilizante: é demolição


O medo existe. Tem de ser abandonado. Lembre-se: antes de alcançar a suprema graça você terá de passar por um longo sofrimento. Antes de alcançar o infinito, o eterno, você terá de passar pelo temporal, por toda a história do homem. É inerente, está em todas as células do seu corpo, em todas as células da sua mente e cérebro — e você não pode evita isso. Todo o passado está aí com você, está em você, tem de ser atravessado. É um pesadelo, e um pesadelo muito, muito longo, milhões de anos, mas é necessário passar por ele — essa é a dificuldade. 

O sofrimento tem de ser vivido; esse é o significado de Jesus na cruz. Através do sofrimento ele alcança a ressurreição; através do sofrimento você alcançará o autoconhecimento. Portanto, não tente evitá-lo — não é possível evitá-lo. Quanto mais o fizer, mais oportunidades estará perdendo. Enfrente! Não há nada a ser feito, a não ser enfrentá-lo. E quanto mais intensamente você o enfrentar, mais depressa ele desaparecerá. 

Chega um momento em que você está absolutamente pronto para enfrentá-lo, seja ele o que for — você abandona todas as imagens. Até mesmo num único momento de intenso estado de alerta, você pode chegar ao centro. Mas nesse único momento você terá de sofrer todo o passado da humanidade, toda a história; você terá de sofrer tudo o que aconteceu. 

Conta-se, você já deve ter ouvido, que se uma pessoa afunda nas águas do mar ou de um rio, numa única fração de segundos relembra todo o passado desde o nascimento, as dores do parto — num instante, num 'flash', a vida inteira passa. Isso é verdade. E o mesmo acontece quando você alcança o momento do samadhi, a morte suprema, quando o ego morre completamente. Isso acontece! Mas num único instante você sofre todo o passado da humanidade, não o seu próprio. Esta é a cruz. Você sofre todo o passado da humanidade, porque agora está transcendendo a humanidade. Tem de passar por tudo o que a humanidade já viveu. Tem de sofrer tudo isso. É imenso! A angústia é absoluta! E só então você chega ao centro e a graça torna-se possível. 

O autoconhecimento é difícil porque você não está pronto para passar por nenhum sofrimento. Você pensa no autoconhecimento em termos de tranquilizantes; pensa que o autoconhecimento é tranquilizante. As pessoas vêm a mim e pedem: "Dê-nos a paz, o silêncio." E se alguém promete o silêncio e a paz sem sofrimento, está enganando-o — e facilmente você cairá na armadilha, porque isso é o que você gostaria de ter. Esse é o apelo usado no ocidente por pessoas como Maharashi Mahesh Yogi. Eles não estão lhe dando meditação real, estão lhe dando tranquilizantes. Porque uma meditação tem de passar pelo sofrimento; não é uma brincadeira. 

Você tem de atravessar o fogo e só nesse fogo o seu ego desaparecerá. Olhando para toda a sua feiura, ela desaparece automaticamente. 

Mas Maharishi Mahesh Yogi e outros dizem que o sofrimento é desnecessário: "Eu lhe darei uma técnica — faça tal coisa durante dez minutos de manhã e à tarde e seu ser se tranquilizará. Você sentirá uma paz infinita e tudo ficará bom; em poucos dias você estará iluminado."

Não é tão fácil — é árduo. Truques não funcionarão. Não perca seu tempo com truques.Apenas repetindo um mantra durante dez minutos, como é possível tornar-se Iluminado? 

Você passou pela história e chegou a um ponto, aqui, você chegou a este momento; atravessou milhões de anos — quem vai querer voltar atrás? Porque meditar significa retornar à fonte. Você chegou a este ponto no tempo; precisa voltar, precisa regredir, precisa alcançar o ponto original onde a jornada foi iniciada. E apenas cantando um mantra durante dez minutos toda manhã você pensa que conseguirá isso?

Quem você pensa que está enganando? Você está enganando a si mesmo. Não foi cantando mantras que você chegou onde está. A humanidade viveu, e viveu de milhões de maneiras erradas — vagando, se perdendo, cometendo pecados e assassinatos; guerra, exploração, opressão, dominação. Você tem colaborado com isso, é responsável por isso. Só cantando um mantra durante dez minutos acredita que a responsabilidade desapareceu, que você transcendeu? Chama a essa cantilena de meditação transcendental? Quem você pensa que está enganando? 

A transcendência é possível, mas não através de truques tão fáceis. A transcendência só é possível através da cruz. Só é possível através do sofrimento. E se você estiver pronto, poderá sofrer todo o passado num só instante — mas será um intenso pesadelo. É por isso que um Mestre é necessário — porque você pode enlouquecer completamente. É mover-se em terreno perigoso. O autoconhecimento é a maior entre todas as coisas, mas é também a mais perigosa. Um passo em falso e você enlouquecerá. É por isso que os Budas não são ouvidos. Você também sabe que isso é perigoso. Mover-se em si mesmo é perigoso! Um Mestre é necessário para observar cada passo, senão você cairá num abismo; ficará tonto, a mente simplesmente se fragmentará e será difícil repará-la. 

São esses os problemas, e é por isso que o homem ouve Heráclito, Lao Tsé, Buda, Jesus, mas nunca tenta. Somente alguns poucos tentam. Se você está pronto para tentar, precisa ter consciência do que isto significa. Apenas o desejo de ser feliz não basta. O desejo de conhecer a verdade, sim, não o desejo de ser narcóticos. A meditação também será um narcótico para ele. Quer dormir bem, quer se desligar do que está acontecendo. Ele gostaria de ter um mundo privado de sonhos — é claro, belos sonhos e não pesadelos. Isto é só o que ele quer. Mas um homem que está em busca da verdade não pensa em termos de felicidade. Felicidade ou infelicidade não é esse o ponto. "Preciso conhecer a verdade. Mesmo que doa, mesmo que me conduza ao inferno, estou pronto para passar por ela. Onde quer que me conduza, estou pronto para ir."

O S H O

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O sofrimento é a condição comum por não se saber o que é amor

É bem óbvio que todos somos desiguais. Há uma diferença enorme entre um homem e outro, entre uma mulher e outra. Mas há diferença quando você ama alguém? Há desigualdade? Há nacionalidade? Quando o coração está vazio, tornam-se muito importantes os tipos; dividimos então os seres humanos em classes, cores, raças. Mas quando amamos, há alguma diferença? Quando há generosidade em seu coração, você faz distinção? Você se dá. Só o homem que não é generoso, que vive preocupado com sua conta bancária, só a esse interessa manter essas diferenças e divisões. Para o homem que busca a verdade, não há divisões. Buscar a verdade é estar ativo, é ter sabedoria, é conhecer o amor. O homem que está seguindo por um determinado caminho não pode nunca conhecer a verdade, porque esse caminho é, para ele, exclusivo.  

Todos nós sofremos, todos temos problemas, estamos carregados de preocupações e em conflitos incessantes; a morte, a aflição e o sofrimento são nossos companheiros constantes. (...) Uma vez que todos estamos sofrendo em diferentes níveis de consciência, o que digo é para todos. Todos nós — ricos, pobres remediados — queremos ficar livres do sofrimento. O sofrimento é nossa condição comum; e como todos buscamos uma saída do sofrimento, o que digo é para todos. 

Pois bem, visto que sofremos, nada se ganha em querermos apenas fugir a essa condição. O sofrimento não pode ser compreendido se fugimos dele, mas, sim, se o amamos e compreendemos. 

Compreendemos uma coisa, quando a amamos.

Você compreende sua esposa quando a ama, compreende seu próximo quando o ama — o que não significa deixar-se arrebatar pela palavra "amor". 

A maioria de nós foge ao sofrimento por meio dos inúmeros artifícios engenhosos da mente. O sofrimento só pode ser compreendido quando estamos frente a frente com ele, e não quando buscamos incessantemente dele fugir. Por causa do nosso desejo de evitar o sofrimento, criamos uma civilização de distrações, de religião organizada, com suas cerimônias e práticas; e amontoamos riquezas, explorando os outros. Todas essas coisas são indicativas do nosso empenho de evitar o sofrimento. Sem dúvida, vocês e eu, "o homem da rua", qualquer um pode compreender o sofrimento, bastando que lhe dê atenção. Mas, por desventura, a civilização moderna nos ajuda a fugir por meio de divertimentos, de distrações, de ilusões, de repetições de palavras, etc. Tudo isso nos ajuda a evitar o que é, e por isso precisamos estar cônscios dessas inumeráveis fugas. 

Só quando o homem estiver livre das suas fugas, dissolverá a causa do sofrimento. Para o homem feliz, o homem que ama, não há divisões; ele não é brâmane, nem inglês, nem alemão, nem hindu. Para esse homem não há divisões de "altos e baixos". É porque não amamos que temos todas essas odiosas divisões. Quando você ama, tem um sentimento de riqueza que lhe perfuma a vida e você está pronto a dividir seu coração com outro. Quando o coração está cheio, as coisas da mente fenecem.

Krishnamurti em, A ARTE DA LIBERTAÇÃO

domingo, 21 de setembro de 2014

O sofrimento é resultado do pensamento

Tratemos de averiguar o que é viver. A realidade do viver é a fadiga diária, a rotina, com as respectivas lutas e conflitos; é a dor da solidão, a aflição e sujeira da pobreza e da riqueza, a ambição, a busca de preenchimento, o êxito e a tristeza — que abarcam toda a esfera de nossa vida. Eis o que chamamos viver — ganhar e perder batalhas, e a interminável busca de prazer. 

Contrastando com isso ou como seu oposto há o que se chama "viver religioso" ou "vida espiritual". Mas todo oposto contém decerto a semente de seu próprio oposto e, por conseguinte, ainda que pareça diferente, na realidade não o é. Podem-se mudar as roupas externas, mas a essência íntima do que foi e do que deverá ser é a mesma. Essa dualidade é produto do pensamento, e, portanto, gera mais conflito; esse conflito é uma galeria interminável. Sabemos de tudo isso; outros nos têm dito ou nós mesmos o temos experimentado. Isso é o que se chama viver. 

A vida religiosa não está na outra margem do rio; está neste lado — onde se acham todas as agonias do homem. É este lado que temos de compreender, e a ação da compreensão é o ato religioso — e não cobrir-se de cinzas, cingir os quadris com uma tanga ou a cabeça com uma mitra, ocupar o trono dos poderosos ou ser transportado no dorso de um elefante. 

Ver inteiramente a condição do homem, seus prazeres e aflições, é de primeira importância, e não o especular sobre o que deveria ser uma vida religiosa. "O que deveria ser" é um mito; é a moralidade criada pelo pensamento e a fantasia, moralidade que devemos rejeitar — social, religiosa, profissionalmente. Essa rejeição não vem do intelecto, mas é, com efeito, um sereno abandono do padrão dessa imoral moralidade. 

Portanto, a questão realmente é esta: Temos possibilidade de sair desse padrão? Foi o pensamento quem criou essa medonha desordem e angústia, e ele é que está impedindo tanto a religião como a vida religiosa. O pensamento se julga capaz de sair do padrão, mas, se o faz, isso será ainda um ato de pensamento, porque o pensamento não tem realidade e, por conseguinte, só pode criar outra ilusão. 

Ultrapassar tal padrão não é um ato do pensamento. Isso precisa ser compreendido claramente porque, de contrário, você se verá novamente encerrado na prisão do pensamento. O "você", afinal de contas, é um feixe de memórias, de tradição e do conhecimento acumulado em milhares de dias passados. Assim, só com a terminação do sofrimento — pois o sofrimento é resultado do pensamento — pode-se sair do mundo da guerra, do ódio e da violência. Esse ato de sair é a vida religiosa. Essa vida religiosa não tem crença nenhuma, porque não tem amanhã. 

"Você não está exigindo o impossível, senhor? Não está querendo um milagre? Como posso sair de tudo isso sem o pensamento? O pensamento é meu próprio ser!"

Exatamente! Esse "seu próprio Ser", que é pensamento, tem de acabar. Esse egocentrismo com todas as suas atividades tem de morrer, sem esforço, naturalmente. Só nessa morte se encontra o começo da vida religiosa.

Krishnamurti em, A OUTRA MARGEM DO CAMINHO

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Sem compreensão do sofrimento, não há sabedoria

Esta manhã eu gostaria de falar sobre o sofrimento. É um problema muito complexo, e como não se pode examiná-lo em grandes detalhes, irei, se possível, examinar apenas o essencial.

Sem compreensão do sofrimento, não há sabedoria; o fim do sofrimento é o início da sabedoria. Para compreender o sofrimento e ficar completamente livre dele é preciso uma compreensão, não só dos sofrimentos particulares individuais, mas também do enorme sofrimento do homem. Para mim, sem estar totalmente livre do sofrimento, não pode haver sabedoria, nem a mente é capaz de realmente investigar essa coisa imensurável que pode ser chamada de Deus, ou de qualquer outro nome.

A maioria de nós sofre de diferentes formas - na relação, com a morte de alguém, por não se realizar e definhar, ou tentando ter, tentando tornar-se algo, e chegando ao fracasso total. E há todo o problema do sofrimento físico - doença, cegueira, incapacidade, paralisia, e assim por diante. Por toda a parte há esta coisa extraordinária chamada sofrimento - com a morte à espera na esquina. E nós não sabemos como enfrentar o sofrimento, então ou o adoramos, ou o racionalizamos, ou tentamos fugir dele. Vá a qualquer igreja cristã e você vai descobrir que o sofrimento é adorado; é transformado em algo extraordinário, sagrado, e dizem que só através do sofrimento, através do Cristo crucificado, você pode descobrir Deus. No Oriente, eles têm as suas próprias formas de evasão, outras formas de evitar o sofrimento, e me parece uma coisa extraordinária que tão poucos, seja no Oriente ou no Ocidente, estejam realmente livres do sofrimento.

Seria uma coisa maravilhosa se, no processo de escutar - sem emoção, não sentimentalmente - ao que está sendo dito esta manhã, e antes de deixarem esta tenda, vocês pudessem realmente compreender o sofrimento e se libertarem totalmente dele, porque então não haveria autoengano, nem ilusões, nem angústias, nem medo, e o cérebro poderia funcionar claramente, com agudeza, logicamente. E então, talvez, a pessoa soubesse o que é o amor.

Agora, para compreender o sofrimento, a pessoa tem que investigar todo o processo do tempo. Tempo é sofrimento, não só o sofrimento do passado, mas também o sofrimento que envolve o futuro - a idéia de chegar, a luta para conseguir, a esperança de que algum dia você vai ser alguma coisa, com sua inevitável sombra de frustração. Esta ideia de realização, de se tornar algo no futuro, que é tempo psicológico, é para mim o maior sofrimento - e não o fato de meu filho morrer, ou que minha esposa ou marido me deixa, ou que não sou um sucesso. Tudo isto, parece-me, é bastante trivial, se é que posso usar essa palavra, que espero que vocês não interpretem mal. Existe um sofrimento muito mais profundo, que é tempo psicológico: pensar que vou mudar nos próximos anos, que, com o tempo, vou me transformar, vou afastar-me do hábito, eu vou conseguir libertação, adquirir sabedoria, encontrar Deus. Tudo isto implica tempo - e esse, para mim, é o maior sofrimento. Mas, para investigar profundamente o problema, a pessoa tem que descobrir por que existe sofrimento dentro de si mesma - esta onda de sofrimento em que a pessoa é apanhada e que faz dela uma prisioneira. Compreendendo primeiro o sofrimento particular dentro de nós mesmos, talvez possamos compreender também o sofrimento coletivo do homem, o desespero da humanidade.

Por que sofremos? E existe um fim para o sofrimento? Existem muitas formas de sofrimento. Problemas de saúde são um tipo de sofrimento - a incapacidade de pensar devido à debilidade do cérebro, e os vários tipos de dor física. Depois há todo o campo do sofrimento psicológico - sentir-se frustrado porque não se é capaz de alcançar, ou não se tem capacidade, nem entendimento, nem inteligência; e também essa constante batalha de desejos conflitantes, de autocontradição, com as suas ansiedades e desesperos . Existe ainda a ideia da transformação através do tempo, tornar-se melhor, mais nobre, mais sábio, na qual também há sofrimento sem fim. E, finalmente, há o sofrimento da morte, o sofrimento da separação, do isolamento, o sofrimento de se estar completamente sozinho, de estar apartado e não ter qualquer relação com coisa alguma.

Conhecemos todas estas diferentes formas de sofrimento. Os muito letrados, o intelectual, o santo, as pessoas religiosas em todo o mundo são tão torturadas como nós pelo sofrimento, e se existe uma saída, eles não a encontraram. Investigar muito profundamente em nós mesmos é saber que esta é a primeira coisa que queremos - pôr um fim ao sofrimento - mas não sabemos como fazer isso. Estamos bem familiarizados com o sofrimento, nós o vemos nos outros e em nós mesmos, e ele está no próprio ar que respiramos. Vá para onde você for - retirar-se num mosteiro, andar nas ruas apinhadas - o sofrimento está sempre presente, abertamente, ou oculto, esperando, olhando.

Agora, como encontrar o sofrimento? O que se faz a respeito dele? E como a pessoa se liberta dele, não apenas superficialmente, mas totalmente, de modo que não haja absolutamente sofrimento? Estar completamente livre do sofrimento não significa que não se sente amor, nem compaixão, que não se tem bondade, nem compreensão pelo outro. Ao contrário, na total liberdade do sofrimento, não há indiferença. É uma liberdade que traz grande sensibilidade, abertura; e como a pessoa chega a essa liberdade? Vocês todos conhecem o sofrimento; não é algo estranho a vocês. Está aí. E como você o encontra? Será que você só o encontra superficialmente, verbalmente?

Por favor, acompanhem. Passo a passo vamos juntos até o fim. Veja se você pode ouvir esta manhã com toda atenção, estando consciente de suas próprias reações, e investigar profundamente comigo este problema do sofrimento - não que você vai me seguir; o que seria muito absurdo. Mas se pudermos compreender isto juntos, investigarmos ampla e profundamente, então, talvez, quando sair daqui, você poderá olhar para o céu, e o sofrimento nunca o tocará novamente. Então não haverá medo, e quando todo o sofrimento acabar, esse algo imensurável pode seguir com você.

Então, como é que você aborda o sofrimento? Receio que a maioria de nós o aborda muito superficialmente. Nossa educação, nossa formação, o nosso conhecimento, as influências sociológicas a que estamos expostos, tudo nos torna superficiais. A mente superficial é aquela que foge para a igreja, para alguma conclusão, algum conceito, alguma crença ou ideia. Esses são todos refúgios para a mente superficial que está em sofrimento. E se você não consegue encontrar um refúgio, constrói um muro em torno de si mesmo e torna-se cínico, duro, indiferente, ou você foge através de alguma reação fácil, neurótica. Todas essas defesas contra o sofrimento impedem mais investigação. Espero que vocês estejam seguindo comigo, pois isto é o que a maioria de nós realmente faz.

Agora, observe um cérebro ou mente superficial- por favor, se eu usar a palavra mente ou cérebro, quero dizer a mesma coisa. No outro dia examinamos a separação do cérebro e da mente, mas a separação é apenas verbal e não importa. Vou utilizar a palavra mente, e eu espero que vocês acompanhem e entendam o que está sendo dito.

A mente superficial não pode resolver este problema do sofrimento, porque o que ela tenta é evitar o sofrimento. Ela foge do fato do sofrimento através de uma resposta fácil e imediata. Se você tiver uma dor de dente grave, naturalmente vai imediatamente ao dentista, porque você quer se livrar dessa dor física - o que é normal e uma reação correta. Mas a dor psicológica é muito mais profunda e mais sutil, e nenhum médico, nenhum psicólogo, nada pode dissolvê-la para você. Mas a sua reação instintiva é fugir dela. Você liga o rádio, vê televisão, vai ao cinema - você sabe, todas as distrações que a civilização moderna inventou. Entretenimento de qualquer tipo, seja um serviço religioso ou um jogo de futebol, é essencialmente o mesmo. É apenas uma maneira de escapar de sua própria miséria, do seu vazio - e isto é o que vocês todos estão fazendo em todo o mundo: usando várias formas do circo para esquecer de si mesmo.

Do mesmo modo, é a mente superficial que tenta encontrar explicações. Ela diz,"quero saber por que eu sofro. Por que eu deveria sofrer e você não?" Ela sente que não fez nada particularmente errado nesta vida, por isso aceita a teoria de vidas passadas e a idéia daquilo que na Índia é chamado de karma - causa e efeito. Ela afirma, "Eu fiz algo errado no passado, e agora estou pagando", ou "Agora estou fazendo algo bom, e vou ter o benefício disso no futuro." Assim, a mente superficial fica presa em explicações.

Por favor preste atenção à sua própria mente, observe como você explica seu sofrimento à distância, perde-se no trabalho, em idéias, ou apega-se a uma crença em Deus, ou numa vida futura. E se nenhuma explicação, nenhuma crença tem sido satisfatória, você escapa através da bebida, através do sexo, ou se tornando cínico, duro, amargo, frágil. Consciente ou inconscientemente, isto é o que está realmente acontecendo com cada um de nós. Mas a ferida do sofrimento é muito profunda. Geração após geração, foi transmitida pelos pais para seus filhos, e a mente superficial nunca tira a bandagem dessa ferida; mas ela realmente não sabe, não está realmente familiarizada com o sofrimento. Apenas tem uma ideia sobre o sofrimento. Tem uma imagem, um símbolo do sofrimento, mas nunca aborda o sofrimento - ela aborda apenas a palavra sofrimento. Vocês entenderam? A palavra sofrimento ela conhece, mas não estou certo de que conhece realmente o sofrimento.

Conhecer a palavra fome e ter fome são duas coisas muito diferentes, não são? Quando você tem fome, não fica satisfeito com a palavra comida. Você quer comida, o fato. Agora, a maioria de nós fica satisfeita com palavras, símbolos, ideias, e com nossa reação a estas palavras, e nunca ficamos totalmente com o fato. Quando de repente ficamos cara a cara com o fato do sofrimento, ele nos dá um choque, e nossa reação é fugir dele. Pergunto-me se você notou isso em si mesmo? Por favor, siga o seu próprio estado mental, e não apenas ouça as palavras que estão sendo ditas. Nós nunca encontramos o sofrimento, nunca vivemos com ele. Vivemos com uma imagem, com a memória do que foi, e não com o fato. Vivemos com uma reação.

Agora, se frente ao sofrimento a mente tem um motivo, ou seja, se quiser fazer alguma coisa com o sofrimento, não pode haver qualquer compreensão do sofrimento mais do que não pode haver amor se existe um motivo para amar. Entenderam? A maioria de nós tem um motivo quando olha para o sofrimento, queremos fazer algo sobre ele. Isto é, suponha que eu perdi alguém por morte; profundamente, psicologicamente, já não posso obter o que quero dessa pessoa, e estou sofrendo. Se eu não tenho motivo para olhar meu sofrimento, ainda será sofrimento, ou o sofrimento será uma coisa totalmente diferente? Vocês estão acompanhando tudo isto?

Digamos que meu filho morre, e estou sofrendo porque fiquei sozinho. Investi todas as minhas esperanças nele, e agora meu mundo inteiro desmoronou. Eu queria criar para mim uma certa imortalidade, uma continuidade através de meu filho; ele devia perpetuar meu nome, herdar minha propriedade, continuar meu negócio, e ao fim de todas essas coisas me deu um choque. Agora, posso eu entender o sofrimento em que estou se existe uma motivação por trás de meu olhar para ele? E se houver um motivo por trás do amor, é amor? Não concorde comigo, por favor, basta observar-se. Certamente, não pode haver um motivo se eu quero entender o sofrimento, se quiser descobrir a plena profundidade e significado do sofrimento - ou do amor, porque eles sempre andam juntos. Morte, amor e sofrimento são inseparáveis; estão sempre juntos, e com eles está também a criação, mas esse é outro assunto, e vamos examiná-lo em outra ocasião. Se eu quiser compreender profundamente, completamente, o fato do sofrimento, não posso ter um motivo que determine minha reação a esse fato. Posso viver com o fato e compreendê-lo somente quando não tenho motivo. Vocês entenderam? Se não, vocês podem fazer perguntas depois sobre este ponto. Se eu "amo" você porque você pode me dar uma coisa - o seu corpo, seu dinheiro, sua lisonja, seu companheirismo, ou seja o que for - certamente não é amor, é? Claro, você obtém algo de mim também, e essa troca para a maioria de nós é amor. Eu sei que cobrimos tudo com belas palavras, mas por trás da fachada verbal há essa pressão de ter, de possuir.

Agora, sofrimento não é autopiedade? Você foi privado de alguma forma, sua relação com o outro foi um fracasso; você não se realizou sendo reconhecido como um grande homem em nome da reforma social, em nome da arte, em nome de qualquer uma de um milhão de coisas, com todos os estúpidos disparates implicados - então há sofrimento. Compreender o sofrimento é viver com ele, olhar para ele, conhecê-lo pelo que ele realmente é - e você não pode conhecê-lo se olhar com um motivo, que é tempo. Uma mente superficial que está eternamente preocupada em aperfeiçoar-se, com pena de si mesma, torturando-se numa relação particular, querendo se livrar do sofrimento e não encarar o fato - tal mente vai continuar sofrendo indefinidamente. O fato é que você está sozinho. Pela sua educação, suas atividades, seus pensamentos e sentimentos, você isolou-se profundamente, e não pode viver com esse extraordinário sentimento de solidão; você não sabe o que significa, porque aborda isso com uma palavra que evoca medo.

Assim, você vê a dificuldade - as formas sutis de fuga que a mente construiu de modo que ela é incapaz de viver com essa coisa extraordinária que chamamos sofrimento. Para ser livre do sofrimento, todo este processo tem de ser entendido, conscientemente bem como inconscientemente, e você só pode entendê-lo quando viver com o fato, olhar para ele sem motivo. Você tem de ver os truques de sua própria mente - as fugas, as coisas agradáveis a que você se apega, e as coisas dolorosas de que você deseja livrar-se com rapidez. Você tem que observar o vazio, o embotamento e a estupidez de uma mente que apenas foge. E faz pouca diferença se você foge para Deus, para o sexo, ou para a bebida, porque todas as fugas são essencialmente iguais. Vocês entenderam?

O que acontece quando você perde alguém por morte? A reação imediata é uma sensação de paralisia, e quando você sai desse estado de choque, há o que chamamos de sofrimento. Agora, o que essa palavra sofrimento significa? O companheirismo, as palavras alegres, os passeios, as muitas coisas agradáveis que vocês fizeram e esperavam fazer juntos - tudo isto é levado em um segundo, e você fica vazio, exposto, solitário. É isso que você contesta, é contra isso que a mente se rebela: ser repentinamente deixado consigo mesmo, absolutamente solitário, vazio, sem qualquer apoio. Agora, o que importa é viver com esse vazio, só viver com ele, sem reação, sem racionalização, sem fugir dele para mediuns, para a teoria da reencarnação, e todos esses disparates estúpidos - viver com ele com todo seu ser. E se você investigar passo a passo, vai descobrir que existe um fim para o sofrimento- um verdadeiro fim, não apenas um fim verbal, não o fim superficial que vem da fuga, da identificação com um conceito, ou do compromisso com uma idéia. Então você vai descobrir que não há nada a proteger porque a mente está completamente vazia e já não está reagindo no sentido de tentar preencher esse vazio; e quando todo o sofrimento chegou então ao fim, você terá iniciado outra viagem - uma viagem que não tem fim nem começo. Há uma imensidão que está além de todas as medidas, mas você não pode entrar nesse mundo sem o fim total do sofrimento.

Pergunta: O humor é uma fuga do sofrimento?

Krishnamurti: Antes de você fazer uma pergunta, por favor, fique um pouco em silêncio e reflita, se aprofunde no que acaba de ser dito. Se você aparece imediatamente com uma pergunta, significa que não investigou realmente. O que estivemos considerando juntos tem um grande significado. Não é algo barato que você pode comprar para acabar com o sofrimento e então dizer,"Bom, eu já acabei com o sofrimento." Isso seria demasiado infantil. Quando tivermos descoberto todo o campo da experiência humana, que foi enriquecida através de séculos de sofrimento humano, você não pode apenas removê-lo com uma palavra, com um símbolo, ou fugindo. Para obter a resposta certa, você deve fazer a pergunta certa; e você vai fazer a pergunta certa apenas quando estiver realmente nisso, depois de ter se exposto ao problema.

Pergunta: E quanto ao sofrimento que não é da própria pessoa, mas sofrimento por alguém?

Krishnamurti: Antes de investigar essa pergunta, vamos olhar para a pergunta anterior:"O humor é uma fuga do sofrimento?" Se você pode rir de seu sofrimento, isso é uma fuga? Existe esta coisa imensa chamada sofrimento, e você percebe a que a reduziu, quando faz tal pergunta? Quando você está sofrendo, talvez possa rir, mas ainda há sofrimento. Existe a dor, a tortura que está ocorrendo no mundo: a miséria de não ter alimento, de ter medo da morte, de ver o homem rico no grande carro e sentir inveja, a brutalidade, a tirania que está ocorrendo no Oriente, e todo o resto. Você pode rir à distância de tudo isso? Receio que você não esteja realmente ciente de seu próprio sofrimento.

A segunda pergunta é:"O que pensa sobre o sofrimento que se sente por outra pessoa?" Quando você vê alguém sofrendo, não sofre também? Quando você vê um homem que é cego, ou um homem que não tem comida, ou um homem que não é amado, que está preso na miséria, guerra, confusão, você não sofre com ele? Agora, por que se deveria sofrer com ele? Eu sei que é o aceito, o tradicional, a coisa respeitável para dizer, "Eu sofro com você". Mas por que você deveria sofrer? Se você tem um pouco, dê desse pouco. Você dá sua simpatia, seu afeto, seu amor. Mas por que você deveria sofrer? Por favor, acompanhe. Se meu filho contrai poliomielite e está morrendo, por que eu deveria sofrer? Sei que isto soa terrivelmente cruel para você. Após ter feito todo o possível, dado meu amor, minha simpatia, trazido o médico, o remédio, e de ter me sacrificado - mas é sacrifício? É essa a palavra certa? - tendo feito tudo ao meu alcance, por que eu deveria sofrer? Quando eu sofro por alguém, isso é sofrimento? Reflita, investigue; não aceite simplesmente o que estou dizendo. Sabe, quando você vai para a Índia e para outros lugares no Oriente, vê imensa pobreza - pobreza tal que não se conhece no Ocidente. Quando anda na rua, fica perto de pessoas que têm hanseníase e outras doenças. Você faz tudo que pode, mas qual é a necessidade de sofrer? O amor sofre? Oh, você terá que investigar tudo isto. Certamente, o amor nunca sofre.

Pergunta: Pode o profundo sofrimento transformar-se em profunda alegria?

Krishnamurti: Você faz uma pergunta desta natureza, quando está sofrendo? Por favor, do que você está falando?

Comentário: Quero dizer o sofrimento em si transforma-se em alegria.

Krishnamurti: Se o sofrimento transforma-se em alegria, onde você está no final do mesmo? Senhor, algumas pessoas, feliz ou infelizmente, ouviram-me durante quarenta anos, e conheço muito bem essas pessoas. Temos nos encontrado uma vez ou outra ao longo dos anos. Eu sofro porque não compreenderam? Elas ainda perguntam sobre autoridade, sobre autoexpressão, sobre Deus - você sabe, todas as coisas infantis que são perguntadas. Eu sofro? Eu sofreria apenas se esperasse alguma coisa delas; eu ficaria desapontado se tivesse me colocado numa posição de ficar desapontado pelo sentimento de que eu sou alguém que está dando alguma coisa para outro alguém. Espero que compreendam o que estou falando.

Por favor, o que é importante não é a forma de transformar sofrimento em alegria, ou se sofrimento se transforma em alegria, ou se você deveria sofrer quando vê outros sofrendo - todas estas questões não têm de fato qualquer importância. O importante é entender o sofrimento em você mesmo e, assim, acabar o sofrimento. Só então você vai descobrir o que está além do sofrimento. Caso contrário, é como se sentar deste lado da montanha e especular sobre o que está do outro lado. Você está apenas falando, adivinhando. Você não põe as mãos no problema, não o encara; você não entra profundamente em si mesmo e procura, pesquisa, compreende; e não faz isso porque sabe que isso significaria realmente deixar muitas coisas - deixar suas pequenas ideias, suas reações tradicionais, respeitáveis.

Comentário: A pessoa sofre quando não pode ajudar alguém.

Krishnamurti: Se você pode ajudar alguém física ou economicamente, você ajuda, e está acabado. Mas por que você sofre, se não pode? Você mesmo não enfrentou o problema básico, então quem é você para "ajudar" o outro? Os sacerdotes em todo o mundo estão "ajudando" alguém - que significa o quê? Eles estão ajudando a condicionar os outros de acordo com as suas próprias crenças e dogmas. Desinteressadamente alimentar os famintos, construir uma terra melhor, um mundo melhor - isso é uma ajuda. Mas dizer ao outro, "eu vou ajudá-lo psicologicamente" - que presunção! Quem é você psicologicamente para ajudar outra pessoa? Deixe isso para os comunistas, que pensam que são Deus e podem ditar a milhões de pessoas o que devem fazer. Mas por que você deveria sofrer se não pode ajudar o outro? Você pode fazer tudo para ajudar, o que pode não ser muito, mas por que passar por esta tortura do sofrimento? Ah, você não percebe, você não entrou de fato no problema verdadeiro!

Pergunta: Sei que para ser completamente livre do sofrimento, a pessoa tem que estar totalmente consciente, plenamente atenta o tempo todo. Tenho raros momentos de total consciência, mas o resto do tempo fico preso num estado de desatenção. É este o meu destino para o resto da vida, e posso, portanto, nunca ficar livre do sofrimento?

Krishnamurti: Como o interrogante diz, estar livre do sofrimento é estar completamente atento. A atenção é virtude em si mesma. Mas infelizmente a pessoa não está atenta o tempo todo. Estou atento hoje, mas amanhã não estou, e estou novamente depois de amanhã. No período intermediário estou distraído, e todos os tipos de atividades prosseguem, e não estou plenamente consciente. Portanto, o interrogante diz,"eu vejo que estou preso no estado de desatenção, e isso significa que estou fadado a nunca ser livre do sofrimento?"

Ora, senhor, a idéia de ser livre para sempre implica tempo, não é? Dizemos,"eu não sou livre agora, mas ficando atento serei livre, e quero que essa liberdade continue pelo resto de meus dias." Então, estamos preocupados com a continuidade da atenção. Dizemos,"De alguma maneira devo estar sempre atento; de outro modo vou sempre estar em sofrimento." Queremos que este estado de atenção continue dia após dia.

Agora, o que continua? O que é isso que tem continuidade? Não me responda, por favor; apenas ouça por dois minutos, e você verá algo extraordinário. O que tem continuidade? Certamente, é quando penso em uma coisa, seja prazerosa ou dolorosa, que ela tem continuidade. Você entendeu? Quando eu penso sobre um prazer ou uma dor, o meu pensamento sobre isso lhe dá continuidade. Se eu gosto de você, eu penso em você, e meu pensamento sobre você dá continuidade à imagem agradável que formei de você: assim, pela continuidade de pensamento, de associação, de memória, a minha reação a você se torna uma reação mecânica, não é? É como a de um computador, que responde de acordo com a memória, a associação, com base numa imensa quantidade de informações armazenadas.

Agora, com essa mesma mentalidade nós dizemos,"Devo ter continuidade de atenção." Compreende, senhor? Você acompanhou, senhor? Mas se virmos o que está implicado em ambos, atenção e continuidade, nunca colocaremos as duas coisas juntas. Não sei se você entendeu o que estou tentando transmitir. O erro que estamos cometendo é tentar relacionar continuidade com atenção. Queremos que o estado de atenção continue, mas o que irá continuar é nosso pensar sobre esse estado, e, portanto, não será atenção. É o pensamento que dá continuidade ao que chamamos atenção, mas quando o pensamento dá continuidade à atenção, não é o estado de atenção. Se você dá toda a sua mente a isso e compreende, descobrirá que existe um estado peculiar de atenção sem continuidade, sem tempo.

Pergunta: Em que medida o sofrimento é atenuado pela aceitação?

Krishnamurti: Por que eu deveria aceitar o sofrimento? Essa é apenas outra atividade superficial da mente. Eu não quero aceitar o sofrimento, ou atenuá-lo, ou fugir dele. Eu quero entender o sofrimento, quero ver o que ele significa; quero conhecer a beleza, a fealdade, a extraordinária vitalidade que ele tem. Não quero transformá-lo em algo que ele não é. Aceitando o sofrimento, ou fugindo dele, ou abordando-o com um conceito, uma fórmula, não estou lidando com ele. Portanto, uma mente para compreender o sofrimento não pode fazer nada sobre ele, não pode transformar o sofrimento ou torná-lo mais brando. Para ser livre do sofrimento, você não pode fazer nada com ele. É porque sempre fazemos alguma coisa com ele que ainda estamos no sofrimento.

18 de julho de 1963
Sexta Palestra em Saanen
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill