Comentário: O “Eu” progressivo que não está em perfeita harmonia com o
eterno acha-se em oposição às condições sociais. Após haver-se harmonizado com
o eterno aparece como estando ainda em oposição, apesar de estar exprimindo as
mais profundas necessidades da sociedade.
Krishnamurti: Isto é. “Enquanto
o ‘Eu’ não estiver em harmonia com o eterno, esse ‘eu’ deve estar em conflito
com as condições sociais; porém, uma vez que este ‘Eu’ haja atingido a
harmonia, posto que possua uma aparência de estar em conflito com as condições
sociais e econômicas do mundo, não expressará as mais profundas necessidades da
sociedade?” Quando vós, como indivíduos, vos não achais ainda em harmonia com o
eterno, tendes naturalmente que opor-vos, tendes que achar-vos em conflito com
todas as circunstâncias exteriores. Estareis em revolta com todas as coisas que
superficialmente vos forem impostas pela autoridade, pelo medo, por meio da
ambição. Se vos achardes em revolta com essas coisas não-essenciais que a
sociedade, as condições sociais, a humanidade vos impõe, quando essa harmonia
com o eterno for estabelecida, achar-vos-eis ainda mais em revolta. Vós, porém,
não estais ainda em revolta nem mesmo com as coisas ordinárias! Vós vos
atemorizais, não vos achais, realmente, ansiosos. Achai-vos ansiosos por
coisas, que na realidade, não têm importância nenhuma. Haveis vos tornado
sábios em coisas infantis. Temos que criar homens fortes, que estejam em
revolta por se acharem harmonizados com o eterno, que é a coisa muito maior e
muito mais formosa do que achar-se em revolta por estar em desacordo. Quando
estiverdes harmonizados, então desejareis modificar as pessoas, mudar todas as
coisas, então possuíreis a chama que
arde nitidamente. Necessito de uma dúzia de pessoas que se achem ardorosas
acerca desta coisa não acerca de seus pequenos deuses e velas, suas pequenas
profissões de fé particulares. Afim de estar-se verdadeiramente em revolta,
para possuir esse êxtase de propósito que nasce da harmonia com o eterno, o “Eu”
progressivo precisa estar em revolta com todas as circunstâncias externas, o
que significa constante apercebimento e acautelamento de si mesmo.
Pergunta: Não é vossa opinião que, se todos se conhecerem e sentirem a
si mesmos unos com a vida, e viverem a vida dirigidos pela voz interior, que é
a voz da vida, todas as limitações caem e experimentamos essa felicidade da
qual falais?
Krishnamurti:
Mais uma vez, estais retornando ao mistério. A vida não tem voz, essa voz
interna é a resultante das vossas experiências. A vida deixa-vos progredir
sozinhos em direção à vida, — o todo. Ela não se preocupa com indivíduos. Não
penseis ser isto um dogma cruel. Se a vida se preocupasse convosco, serieis
perfeitamente diferentes, serieis seres perfeitos emocional, mental e
psiquicamente. A voz interna é o resultado, o produto da vossa experiência, a
qual é intuição.
Pergunta: A visão da substância do “Eu”, do eterno, vem como um lampejo
ou passo a passo?
Krishnamurti: Vem a luz
do sol como um lampejo? Sobe o sol repentinamente ao zênite do céu? Vem a
primavera com toda a sua tenra folhagem numa explosão? Ou desce a treva sobre
vós subitamente? Vós quereis que essa visão vos venha subitamente — por isso é
que essa pergunta foi feita. Quereis que subitamente ela se vos revele. Não
pode ser desse modo. Ao contrário, é um processo contínuo, incessante — um solevar de
sombra após sombra, um suceder de luz após luz, dor após dor, e prazer após
prazer.
Pergunta: É esse “Eu”, do qual todos somos conscientes, o “Eu”
progressivo? Sem olhar ao seu grau de entendimento?
Krishnamurti:
Seguramente. Deste “Eu” somente é que sois conscientes e não do “Eu” eterno.
Pergunta: Começa o progresso real somente depois de uma completa
separação de todas as coisas não-essenciais?
Krishnamurti: O progresso
real começa quando o “Eu” progressivo principia a retirar-se para dentro do “Eu”
que está fora do tempo. Porque vos afastais de todas as coisas não-essenciais? Pelo
fato de reconhecerdes a estupidez, a infantilidade de todas essas coisas.
Porém, como chegais a esse estágio? Pelo pensamento, pelo sofrimento, pela
pesquisa, pelo estudo, pelo fato de sentirdes com grandeza.
Pergunta: é POSSÍVEL EDUCAR O “Eu” antes de se atingir a libertação?
Krishnamurti: É possível.
Depois não há mais que educar o “Eu”. Uma vez ainda vos digo que alimentais a
esperança de encontrar um caminho em que vos possais evitar de educar o “Eu” agora. Oh,
vós não sentis ardor nestas coisas!
Krishnamurti, no Castelo de Eerde, 18 de julho de 1929