Na chama da
percepção está a liberdade religiosa
Embora tenhamos numerosos problemas, e cada um deles
pareça produzir muitos outros, poderíamos verificar agora se não seria muito
mais acertado não buscar a solução de problema algum. Nossa mente parece
incapaz de ocupar-se com a vida como um todo; é bem evidente que nos ocupamos
de nossos problemas fragmentariamente, separadamente, fora da perspectiva
total. O mais importante, talvez, se temos problemas, não é buscarmos
para eles uma solução imediata, mas termos a paciência de investigá-los
profundamente, para vermos se podem ser resolvidos pelo exercício da
vontade. Releva, a meu ver, não a maneira de resolver os problemas, porém, sim,
a maneira como os consideramos. Porque, sem liberdade, de qualquer maneira que
os consideremos, nossa ação será restrita; sem liberdade, qualquer solução -
econômica, política, pessoal ou qualquer que seja - só acarretará mais
sofrimentos e mais confusão. Por esta razão, considero muito importante
averiguarmos o que é a verdadeira liberdade, descobrirmos por nós mesmos o que
é a liberdade.
Só há uma liberdade: a liberdade religiosa; não
existe outra liberdade. A liberdade que oferece o chamado "Governo de
Bem-Estar", a liberdade econômica, nacional, política etc., que se nos dá,
não é liberdade, em absoluto, e só pode levar a um caos maior e a piores
sofrimentos — fato muito óbvio para qualquer observador atento. Penso, pois,
que deveríamos aplicar nosso tempo, nossa energia e pensamento, inteiramente à
investigação do que é "liberdade religiosa" — a descobrir se tal
coisa existe realmente. Esta investigação — se desejamos levá-la a bom termo,
sem nos deixarmos desviar por atrações de espécie alguma — exige muita
penetração, energia e perseverança. Acho que merece a pena
concentrar-nos, todos nós, neste problema: que significa ser
"religiosamente livre"? É possível libertar a mente — isto é, nossa
própria mente, a mente individual — da tirania das igrejas, das crenças
organizadas, dos dogmas, dos sistemas de filosofia, das várias práticas da
ioga, e todas as preconcepções sobre o que seja a Realidade ou Deus, e, livres
de tudo isso, descobrirmos por nós mesmos se existe "liberdade
religiosa"? Porque, sem dúvida, só a liberdade religiosa pode oferecer,
definitiva e fundamentalmente, a solução de todos os nossos problemas, tanto
individuais como coletivos. Isso, com efeito, significa: pode a mente
descondicionar-se? Porque, em última análise, nossa mente é resultado do tempo,
da tradição, de uma vasta experiência, não só a experiência do presente, mas
também a experiência coletiva do passado.
A questão, pois, não é de como enobrecermos o nosso
condicionamento, como melhorá-lo — como está tentando fazer a maioria de nós —
porém, antes, de libertarmos completamente o nosso espírito de todos os seus
condicionamentos. A questão verdadeira, parece-me, não é de decidirmos a que
religião pertencer, que sistema de filosofia adotar, que disciplinas praticar
para alcançarmos a percepção de uma realidade existente além dos limites da mente,
porém, sim, de descobrirmos por nós mesmos, pela nossa compreensão individual,
pela investigação própria e autoconhecimento, se a mente pode ser livre. Esta é
a maior de todas as revoluções, a única revolução — a libertação da mente de
todos os seus condicionamentos. Afinal de contas, para descobrir algo que seja
eterno, descobrir se tal coisa existe, não deve a mente pensar em termos de
tempo; não deve acumular o passado, visto que tal acumulação gera o tempo. As
próprias experiências que colhemos têm de ser postas fora, porque elas
manufaturam, constroem o tempo. Nossa mente, sem dúvida, resulta do tempo,
condicionada pelo passado, pelas inumeráveis experiências, lembranças que acumulamos
e que nos emprestam continuidade.
Assim sendo, pode-se ser livre religiosamente, de
fato, no sentido mais profundo da palavra "religião"? Porque
religião, bem de ver, não são ritos, dogmas, não é moral social, frequentar a
igreja todos os domingos, a prática da virtude, o bom comportamento, que nos
levam à respeitabilidade. Nada disso é religião, por certo. Religião é muito
mais do que isso, coisa muitíssimo diferente.
Se desejamos verificar o significado de ser
"religiosamente livre", acho necessário seja compreendido, integralmente,
o problema da vontade, do desejo, com seus alvos, atividades, propósitos,
"projeções" inumeráveis — a armadilha em que a mente está cativa.
Parece-me, pois, que os nossos problemas só poderão ser resolvidos, em
definitivo, se deixarmos "queimar-se" totalmente
o mecanismo
da vontade, coisa que parecerá completamente estranha a um espírito
ocidental, e mesmo à mentalidade oriental. Porque, ao fim de contas, esta
suposta religião, que geralmente aceitamos, está baseada essencialmente no
processo do "vir a ser algo", de por fim alcançar certo estado, que é
projetado ou inventado, não é verdade? Podemos, em raros momentos, experimentar
um "novo estado", mas imediatamente pomo-nos a persegui-lo — o que
também implica o cultivo da vontade de ser, de ser algo — e nele estará o
processo do tempo, não é verdade?
Se a mente deseja alcançar algo além do tempo, além
das limitações das experiências, baseadas essencialmente no condicionamento da
ação, do pensamento, do sentimento; se desejamos alcançar algo além de tudo
isso, sem dúvida é necessário que nossa mente, constituída que é de tantas
atividades e desejos, finde, cesse as suas atividades. E isto, na verdade,
significa compreensão de todo o mecanismo da mente condicionada. Afinal
de contas, é bem óbvio, a mente condicionada, que se formou e moldou segundo a
cultura de uma dada sociedade, não pode encontrar algo que se acha além de todo
o pensar. E a compreensão que nos faz achar o que está além é revolução — a
verdadeira religião.
O que é significativo, portanto, não é que sejais
cristão, budista ou hinduísta, um "seguidor", um homem que troca uma
religião por outra para satisfazer sua particular vaidade, aceitando certas
formas de rituais e abandonando as antigas — sabeis as sensações que se
experimenta quando se assiste a uma cerimônia religiosa. Tudo isso, a meu ver,
é prejudicial, completamente inútil, para a mente que deseja descobrir o
verdadeiro. Mas o abandono desse caminho, por ação da vontade, só pode
naturalmente gerar mais condicionamento, o que acho muito importante
compreender. Estamos habituados a exercer esforço, visando a um resultado. É
por isso que nos exercitamos; praticamos certas virtudes e lutamos por alcançar
certo padrão de moralidade, o que indica esforço, de nossa parte, para
chegarmos a algum lugar, não é verdade? Seria desejável refletirmos sobre isto,
discuti-lo, investigá-lo juntos, investigar como libertar a mente de todo
condicionamento; se ela pode ser descondicionada pela ação da vontade, pela
análise de todos os mecanismo de pensamento e suas respectivas reações; ou se
existe uma maneira totalmente diferente de proceder, ou seja, com
um percebimento em que sejam "queimados" pela raiz todos os processos
de pensamento. Todo pensar, obviamente, é condicionado; não existe
"pensar livre" — tal coisa não existe. O pensar, sendo produto de
nosso condicionamento, nossa cultura, nosso clima, nosso fundo social,
econômico, político, nunca pode ser livre. Os próprios livros que ledes, as
próprias praxes que observais, têm suas bases no vosso próprio fundo
(background); e todo pensar só pode provir desse mesmo fundo. Assim, se
pudermos estar vigilantes (poderemos apreciar mais adiante o que significa
"estar vigilante"), talvez possamos "descondicionar" a
mente, sem o processo da vontade, sem a determinação de descondicioná-la.
Porque determinação denota uma entidade que deseja, uma entidade que diz:
"Tenho de descondicionar a minha mente". Essa própria entidade é
produto do nosso desejo de alcançarmos certo resultado; portanto, já existe um
conflito. Mas podemos estar apercebidos de nosso condicionamento, simplesmente apercebidos?
Assim, não há conflito algum. Na chama desse percebimento, se o
permitimos, podem consumir-se todos os nossos problemas. No fundo,
todos temos o sentimento de que existe alguma coisa além do nosso pensar, dos
nossos insignificantes problemas e tribulações. Há, porventura, momentos em que
"experimentamos" esse estado. Mas tais experiências, infelizmente, se
tornam um obstáculo ao ulterior descobrimento de coisas mais importantes; pois
nossa mente gosta de apegar-se a toda coisa que experimentamos. Tomando tal
coisa pelo real, ficamos-lhe apegados; mas, justamente este apego impede o
experimentar de coisa muito mais importante. A questão, por conseguinte é: pode
a mente condicionada olhar-se a si própria, perceber o seu condicionamento, sem
fazer escolha, abstendo-se de comparações e de condenação, para ver se na chama
desse percebimento não se consome, pela raiz, o problema, o pensamento,
que a preocupam? Não há dúvida de que toda espécie de acumulação, de
conhecimentos ou de experiência, toda espécie de ideal, toda "projeção"
da mente, toda prática deliberada para moldar a mente — o que ela deve ser e
não deve ser —, não há dúvida de que tudo isso está paralisando o processo da
investigação, do descobrimento. Se examinardes bem esta questão, se refletirdes
a fundo a seu respeito, vereis que a mente tem de estar livre de todo
condicionamento para que possa ter "liberdade religiosa". E é só
nesta liberdade religiosa que todos os nossos problemas podem ser resolvidos.
Nossa investigação, por conseguinte, deve visar não à
solução de nossos problemas imediatos, mas, sim, a descobrir se a mente
— não só a mente consciente, mas também a inconsciente, a mente profunda, onde
estão depositadas todas as tradições, lembranças e herança racial —, se a
totalidade da mente pode ser posta de lado, abandonada. Acho que tal coisa só é
possível quando a mente é capaz de um estado de percebimento em que não haja
exigência em nenhum sentido, nem pressão de espécie alguma, um estado de
simples vigilância e percebimento. Penso ser uma das coisas mais difíceis o nos
pormos assim vigilantes, porque o problema imediato, a solução imediata,
nos está prendendo toda a atenção, e por isso são tão superficiais as nossas
vidas! Ainda que recorramos a todos os analistas, leiamos todos os livros,
adquiramos muito saber, frequentemos as igrejas, rezemos, meditemos,
pratiquemos muitas disciplinas, nossa vida, não obstante, é muito superficial,
pois não sabemos penetrar-lhe as profundezas. A meu ver, a compreensão, o modo
de penetração que nos levará às maiores profundidades, está no percebimento, no
estarmos apercebidos, simplesmente, dos nossos pensamentos e sentimentos, sem
condenação e sem comparação - no simples observar. Se o
experimentardes, vereis como isso é difícil; porque nossa educação, em todos os
seus aspectos, só nos prepara para condenar, aprovar, comparar. Nessas
condições, parece-me que o nosso problema — que na realidade independe do tempo
— é o de descobrirmos por nós mesmos, "experimentarmos" diretamente o
que significa libertar a mente de todos os condicionamentos. É relativamente
fácil livrar-se do nacionalismo, das qualidades raciais hereditárias, de certas
crenças e dogmas, não pertencer a nenhuma igreja ou religião — isso é
relativamente fácil para todo aquele que refletiu seriamente sobre estes
assuntos; mas é muito mais difícil ir mais longe do que isso, ultrapassar estes
limites. Pensamos ter feito muito quando sacudimos de nós algumas das camadas
superficiais de nossa cultura ocidental ou oriental. Mas o penetrarmos mais
além, sem ilusões, sem enganarmos a nós mesmos, isso é extremamente difícil. À
maioria de nós nos falta para tal a necessária energia. Não me refiro à energia
que se cria pela abstinência, pela renúncia, pelo ascetismo, pelo controle,
pois a energia oriunda dessas coisas é de uma qualidade falsificada, já que
desfigura a observação; refiro-me àquela energia que nasce quando a mente já
não está buscando coisa alguma, já não sente necessidade de buscar, nem de
descobrir, nem de "experimentar", e, portanto, está verdadeiramente
tranquila. Só nesse estado a mente é capaz de descobrimento; porque só a
mente tranquila está apta a receber algo que não é "projeção" dela
própria. A mente tranquila é livre — é a mente religiosa. Podemos
considerar realmente este assunto, não como um grupo,
"experimentando" coletivamente, o que, aliás, é relativamente fácil,
mas podemos, como indivíduos, investigar realmente e descobrir por nós mesmos
até que grau e até que profundidade estamos condicionados? E podemos estar apercebidos
desse condicionamento sem lhe opormos nenhuma reação, sem condená-lo, sem
procurarmos alterá-lo, sem substituirmos o antigo condicionamento por um
condicionamento novo, estar apercebidos com tanta simplicidade e tão
profundamente que o próprio "mecanismo" de condicionamento — que,
afinal, é simplesmente o desejo de estar seguro, o desejo de permanência — seja
"queimado"
pela raiz? Podemos descobrir isso por nós mesmos — e não porque outro
falou a seu respeito — percebê-lo diretamente, de modo que
a própria raiz, o próprio desejo de segurança, permanência, seja de todo
consumido? É esse desejo de permanência, quer no futuro quer no passado, esse
apego à experiência acumulada, que nos impele à busca da segurança. E esse
desejo não pode ser "queimado", consumir-se de todo? Porque é ele que
cria condicionamento. Esse desejo, que quase todos temos, de saber, buscando
nesse saber nossa própria segurança, esse desejo de experiência, para nos
tornarmos mais fortes, não se pode acabar definitivamente — não pela volição,
mas fazendo-o consumir-se na chama do percebimento, de modo que a
mente fique livre de todos os seus desejos, e possa então surgir aquilo que é
eterno?
Penso ser esta a verdadeira revolução, e não a
comunista ou qualquer outra forma de revolução. Estas não resolvem os nossos
problemas; pelo contrário, aumentam-nos, multiplicando as nossas tribulações, o
que, mais uma vez, é um fato bem óbvio. Sem dúvida, a única revolução
verdadeira é a que liberta a mente de seu condicionamento e, por conseguinte,
da sociedade. Não é, pois, a mera reforma da sociedade. O homem que está
libertado da sociedade, uma vez que está livre de condicionamento, agirá pela
sua maneira própria, e sua ação, por sua vez, influirá na sociedade. Nosso
problema, por conseguinte, não é a reformação — como melhorar a sociedade, como
ter um "Estado de Bem-Estar" comunista, socialista, ou coisa
parecida. Nosso problema não se refere à revolução econômica ou política, nem à
paz pelo terror. Para um homem verdadeiramente sério estas coisas não
constituem problemas. O seu problema real é o de investigar se a mente pode
libertar-se, de todo, de seu condicionamento e, talvez, nesta investigação,
neste silêncio extraordinário, descobrir aquilo que ultrapassa todas as
medidas.
Tenho aqui várias perguntas, e, antes de a elas
responder, acho importante verificar o que é que entendemos por "um problema".
Só existe algum problema quando a mente está ocupada, não achais? Tende a
bondade de escutar e permita-me sugerir-vos que não salteis a conclusões, uma
vez que estamos tentando investigar juntos. Quando a mente está ocupada, seja
com Deus, seja com assuntos culinários, com uma pessoa, uma ideia, uma virtude,
sua ocupação inevitavelmente tem de criar problemas. Se estou ocupado com o
descobrimento de Deus ou da Verdade, esta minha ocupação se torna um problema,
porque me ponho então a indagar, a mendigar, em busca do método mais eficaz
etc.
A verdadeira questão, por conseguinte, não se
relaciona com o problema em si, porém, sim, precisamos investigar porque anda a
mente sempre ocupada, porque busca a mente ocupações. Não me refiro às
atividades diárias, dos negócios etc., mas à ocupação psicológica da mente, a
qual tem relação com a nossa vida de cada dia. Pouco importa com o que
estejamos ocupados: se a respeito de Deus, da Verdade, do amor, do sexo, de assuntos
culinários — tudo é a mesma coisa, não há "ocupações nobres". A mente
busca ocupações, precisa estar ocupada com alguma coisa, tem horror a se ver
não ocupada. Verificai, numa ocasião qualquer, quanto vos ocupam os vossos
problemas e o que sucederia se não estivésseis tão ocupados: descobriríeis logo
o horror que a mente tem de ver-se sem nenhuma ocupação. Nossa cultura, nossa
educação, em todos os seus aspectos, nos ensinam que a mente deve estar
ocupada; no entanto, acho que a própria ocupação cria o problema. Isto não
significa que não existem problemas; há problemas, mas eu acho que a ocupação
com o problema é que nos impede de compreendê-lo.
É realmente interessante observar a mente, observar
a nossa própria mente, e verificar como está sempre ocupada com uma coisa ou
com outra; nunca se acha um momento em que ela esteja quieta, desocupada,
vazia, nunca se encontra num espaço sem limites. Como andamos sempre tão
ocupados, os nossos problemas aumentam sem cessar. E a mera solução de um dado problema,
sem se compreender por inteiro o mecanismo da ocupação mental, só tem o efeito
de criar outros problemas. Assim sendo, não haverá possibilidade de
compreendermos esta peculiar insistência da mente em estar ocupada, seja com
ideias, especulações, conhecimentos, ilusões, estudos, seja com sua própria
virtude e seus próprios temores? Estar livre de tudo isso, ter uma mente não
ocupada, é muito difícil, porquanto significa, com efeito, a cessação de todas
estas reações da memória, que chamamos "pensar".
Krishnamurti, Primeira
Conferência em Londres
17 de junho de 1955