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quinta-feira, 5 de abril de 2018

Só e mente religiosa é revolucionariamente criadora


Só e mente religiosa é 
revolucionariamente criadora

PERGUNTA: Desejo que meu filho seja livre. A verdadeira liberdade é incompatível com a lealdade à tradição inglesa de vida e de educação?

KRISHNAMURTI: Isto é o que se diz na Índia também: posso ser hindu, leal à minha pátria, e ao mesmo tempo estar livre para achar Deus? Posso ser hinduísta, budista ou cristão, e ao mesmo tempo ser livre? É possível isto? Eu posso ter um passaporte, um pedaço de papel, para viajar; mas isso não me faz necessariamente hindu. A liberdade, por certo, é de todo incompatível com qualquer nacionalidade, qualquer tradição. Há o estilo de vida americano, o estilo de vida inglês, o estilo de vida russo, e o estilo de vida hindu. Cada um diz "Nosso estilo de vida é o único que convém", apegando-se tenazmente a esse estilo. E, no entanto, todos falamos de liberdade e de paz. Acho que tudo isso tem de desaparecer, se desejamos criar um mundo diferente, um mundo que seja nosso, um mundo sem comunismo, socialismo, capitalismo, hinduísmo ou cristianismo. A Terra é o nosso mundo, onde devemos viver, não divididos: viver felizes, livres. Mas não poderá ser nosso o mundo enquanto existirem ingleses, hindus, alemães, comunistas etc.; dessa maneira, nunca seremos livres.

Só poderá surgir a liberdade quando formos verdadeiramente religiosos, quando cada um de nós for realmente um indivíduo, no exato sentido da palavra. Quando formos religiosamente livres, poderemos então criar um mundo que será nosso e, por conseguinte, dar aos jovens uma educação diferente, e não meramente condicioná-los segundo uma determinada cultura, encaixá-los num determinado sistema, educá-los para serem comunistas, ateístas, católicos, protestantes ou hinduístas; tais indivíduos não são livres, e por conseguinte não são verdadeiramente religiosos: estão simplesmente condicionados; e são causadores de tanta miséria! Está visto pois que, se desejamos criar um mundo totalmente diferente, faz-se necessária uma revolução religiosa que não seja retrocesso a certa crença, nem avanço para certa realização, mas a libertação de todas as tradições, dogmas, símbolos, crenças, a fim de que cada um seja um verdadeiro indivíduo, livre para descobrir, para investigar o imensurável.

PERGUNTA: A mente ocidental é exercitada para a contemplação do objeto; a mente oriental para a meditação sobre o sujeito. A primeira conduz à ação, a outra à inação. Só pela integração dessas duas direções do percebimento, no indivíduo, poderá surgir uma compreensão total da vida. Qual a chave dessa integração?

KRISHNAMURTI: Porque separamos um ente humano, dizendo-o do Ocidente ou do Oriente? Não há uma maneira toda diferente de se considerar este problema, a qual não consista em mera tentativa de integrar a ação com a meditação? Considero tal integração uma impossibilidade. Talvez haja uma maneira diferente de nos abeirarmos deste problema, em lugar dessa tentativa de integrar a ação com um estado de espírito desprendido, que só observa, contempla. Dividimos a vida em ação e inação, e agora buscamos a integração. Mas, se não nos dividirmos a nenhum respeito, se pudermos eliminar do nosso pensar essa ideia de Oriente em oposição à de Ocidente, para considerarmos o problema de modo diverso, então, buscando a realidade, a mente se torna criadora, e, no percebimento mesmo daquilo que é real, há ação, que é contemplação; não há divisão alguma. Para a mentalidade ocidental, o Oriente, com seu misticismo, seus absurdos, é estranho. No Ocidente, devido ao clima frio, às várias formas de revolução industrial etc., o indivíduo tem de ser ativo, e tratar de ter muitas roupas. No Oriente, onde o clima é cálido e se necessita de muito pouca roupa, o indivíduo tem tempo, lazeres; e, lá, há também a velha tradição de que se tem de renunciar à sociedade para se achar o real.

Aqui viveis completamente interessados em reformas, melhores condições, uma vida melhor. Como podem integrar-se estas duas mentalidades? As duas maneiras de proceder podem ser falsas, e têm de sê-lo, sem dúvida, quando se dá exagerada importância a uma e se despreza a outra. Mas, se tentarmos achar a realidade, sem a buscarmos como um grupo de cristãos, mas como indivíduos independentes de qualquer autoridade, então essa própria busca é criadora, e essa capacidade criadora produz sua ação própria. Se não buscarmos essa liberdade religiosa, todas as reformas só poderão levar-nos a piores infortúnios, como se está vendo em toda parte. Pode-se ter paz pelo terror; mas haverá guerras interiores de todos contra todos, competição, crueldade, a busca do poder, pelo grupo ou pelo indivíduo. Só os que são religiosos, no sentido mais profundo desta palavra, os que se emanciparam de toda e qualquer autoridade espiritual, que não pertencem a nenhuma igreja, nenhum grupo, não se deixaram identificar com nenhuma doutrina particular, que estão perenemente buscando, indagando, sem nunca acumularem experiência alguma, só esses indivíduos são verdadeiramente criadores. Sua mente é a única mente religiosa e, portanto, revolucionária; e ela atuará sem se separar como mente contemplativa ou mente ativa, porque tal indivíduo é um ente completo, total.

Krishnamurti, Terceira Conferência em Londres, 19 de junho de 1955

Na chama da percepção está a liberdade religiosa

Na chama da percepção está a liberdade religiosa

Embora tenhamos numerosos problemas, e cada um deles pareça produzir muitos outros, poderíamos verificar agora se não seria muito mais acertado não buscar a solução de problema algum. Nossa mente parece incapaz de ocupar-se com a vida como um todo; é bem evidente que nos ocupamos de nossos problemas fragmentariamente, separadamente, fora da perspectiva total. O mais importante, talvez, se temos problemas, não é buscarmos para eles uma solução imediata, mas termos a paciência de investigá-los profundamente, para vermos se podem ser resolvidos pelo exercício da vontade. Releva, a meu ver, não a maneira de resolver os problemas, porém, sim, a maneira como os consideramos. Porque, sem liberdade, de qualquer maneira que os consideremos, nossa ação será restrita; sem liberdade, qualquer solução - econômica, política, pessoal ou qualquer que seja - só acarretará mais sofrimentos e mais confusão. Por esta razão, considero muito importante averiguarmos o que é a verdadeira liberdade, descobrirmos por nós mesmos o que é a liberdade.

Só há uma liberdade: a liberdade religiosa; não existe outra liberdade. A liberdade que oferece o chamado "Governo de Bem-Estar", a liberdade econômica, nacional, política etc., que se nos dá, não é liberdade, em absoluto, e só pode levar a um caos maior e a piores sofrimentos — fato muito óbvio para qualquer observador atento. Penso, pois, que deveríamos aplicar nosso tempo, nossa energia e pensamento, inteiramente à investigação do que é "liberdade religiosa" — a descobrir se tal coisa existe realmente. Esta investigação — se desejamos levá-la a bom termo, sem nos deixarmos desviar por atrações de espécie alguma — exige muita penetração, energia e perseverança. Acho que merece a pena concentrar-nos, todos nós, neste problema: que significa ser "religiosamente livre"? É possível libertar a mente — isto é, nossa própria mente, a mente individual — da tirania das igrejas, das crenças organizadas, dos dogmas, dos sistemas de filosofia, das várias práticas da ioga, e todas as preconcepções sobre o que seja a Realidade ou Deus, e, livres de tudo isso, descobrirmos por nós mesmos se existe "liberdade religiosa"? Porque, sem dúvida, só a liberdade religiosa pode oferecer, definitiva e fundamentalmente, a solução de todos os nossos problemas, tanto individuais como coletivos. Isso, com efeito, significa: pode a mente descondicionar-se? Porque, em última análise, nossa mente é resultado do tempo, da tradição, de uma vasta experiência, não só a experiência do presente, mas também a experiência coletiva do passado.

A questão, pois, não é de como enobrecermos o nosso condicionamento, como melhorá-lo — como está tentando fazer a maioria de nós — porém, antes, de libertarmos completamente o nosso espírito de todos os seus condicionamentos. A questão verdadeira, parece-me, não é de decidirmos a que religião pertencer, que sistema de filosofia adotar, que disciplinas praticar para alcançarmos a percepção de uma realidade existente além dos limites da mente, porém, sim, de descobrirmos por nós mesmos, pela nossa compreensão individual, pela investigação própria e autoconhecimento, se a mente pode ser livre. Esta é a maior de todas as revoluções, a única revolução — a libertação da mente de todos os seus condicionamentos. Afinal de contas, para descobrir algo que seja eterno, descobrir se tal coisa existe, não deve a mente pensar em termos de tempo; não deve acumular o passado, visto que tal acumulação gera o tempo. As próprias experiências que colhemos têm de ser postas fora, porque elas manufaturam, constroem o tempo. Nossa mente, sem dúvida, resulta do tempo, condicionada pelo passado, pelas inumeráveis experiências, lembranças que acumulamos e que nos emprestam continuidade.

Assim sendo, pode-se ser livre religiosamente, de fato, no sentido mais profundo da palavra "religião"? Porque religião, bem de ver, não são ritos, dogmas, não é moral social, frequentar a igreja todos os domingos, a prática da virtude, o bom comportamento, que nos levam à respeitabilidade. Nada disso é religião, por certo. Religião é muito mais do que isso, coisa muitíssimo diferente.

Se desejamos verificar o significado de ser "religiosamente livre", acho necessário seja compreendido, integralmente, o problema da vontade, do desejo, com seus alvos, atividades, propósitos, "projeções" inumeráveis — a armadilha em que a mente está cativa. Parece-me, pois, que os nossos problemas só poderão ser resolvidos, em definitivo, se deixarmos "queimar-se" totalmente o mecanismo da vontade, coisa que parecerá completamente estranha a um espírito ocidental, e mesmo à mentalidade oriental. Porque, ao fim de contas, esta suposta religião, que geralmente aceitamos, está baseada essencialmente no processo do "vir a ser algo", de por fim alcançar certo estado, que é projetado ou inventado, não é verdade? Podemos, em raros momentos, experimentar um "novo estado", mas imediatamente pomo-nos a persegui-lo — o que também implica o cultivo da vontade de ser, de ser algo — e nele estará o processo do tempo, não é verdade?

Se a mente deseja alcançar algo além do tempo, além das limitações das experiências, baseadas essencialmente no condicionamento da ação, do pensamento, do sentimento; se desejamos alcançar algo além de tudo isso, sem dúvida é necessário que nossa mente, constituída que é de tantas atividades e desejos, finde, cesse as suas atividades. E isto, na verdade, significa compreensão de todo o mecanismo da mente condicionada. Afinal de contas, é bem óbvio, a mente condicionada, que se formou e moldou segundo a cultura de uma dada sociedade, não pode encontrar algo que se acha além de todo o pensar. E a compreensão que nos faz achar o que está além é revolução — a verdadeira religião.

O que é significativo, portanto, não é que sejais cristão, budista ou hinduísta, um "seguidor", um homem que troca uma religião por outra para satisfazer sua particular vaidade, aceitando certas formas de rituais e abandonando as antigas — sabeis as sensações que se experimenta quando se assiste a uma cerimônia religiosa. Tudo isso, a meu ver, é prejudicial, completamente inútil, para a mente que deseja descobrir o verdadeiro. Mas o abandono desse caminho, por ação da vontade, só pode naturalmente gerar mais condicionamento, o que acho muito importante compreender. Estamos habituados a exercer esforço, visando a um resultado. É por isso que nos exercitamos; praticamos certas virtudes e lutamos por alcançar certo padrão de moralidade, o que indica esforço, de nossa parte, para chegarmos a algum lugar, não é verdade? Seria desejável refletirmos sobre isto, discuti-lo, investigá-lo juntos, investigar como libertar a mente de todo condicionamento; se ela pode ser descondicionada pela ação da vontade, pela análise de todos os mecanismo de pensamento e suas respectivas reações; ou se existe uma maneira totalmente diferente de proceder, ou seja, com um percebimento em que sejam "queimados" pela raiz todos os processos de pensamento. Todo pensar, obviamente, é condicionado; não existe "pensar livre" — tal coisa não existe. O pensar, sendo produto de nosso condicionamento, nossa cultura, nosso clima, nosso fundo social, econômico, político, nunca pode ser livre. Os próprios livros que ledes, as próprias praxes que observais, têm suas bases no vosso próprio fundo (background); e todo pensar só pode provir desse mesmo fundo. Assim, se pudermos estar vigilantes (poderemos apreciar mais adiante o que significa "estar vigilante"), talvez possamos "descondicionar" a mente, sem o processo da vontade, sem a determinação de descondicioná-la. Porque determinação denota uma entidade que deseja, uma entidade que diz: "Tenho de descondicionar a minha mente". Essa própria entidade é produto do nosso desejo de alcançarmos certo resultado; portanto, já existe um conflito. Mas podemos estar apercebidos de nosso condicionamento, simplesmente apercebidos? Assim, não há conflito algum. Na chama desse percebimento, se o permitimos, podem consumir-se todos os nossos problemas. No fundo, todos temos o sentimento de que existe alguma coisa além do nosso pensar, dos nossos insignificantes problemas e tribulações. Há, porventura, momentos em que "experimentamos" esse estado. Mas tais experiências, infelizmente, se tornam um obstáculo ao ulterior descobrimento de coisas mais importantes; pois nossa mente gosta de apegar-se a toda coisa que experimentamos. Tomando tal coisa pelo real, ficamos-lhe apegados; mas, justamente este apego impede o experimentar de coisa muito mais importante. A questão, por conseguinte é: pode a mente condicionada olhar-se a si própria, perceber o seu condicionamento, sem fazer escolha, abstendo-se de comparações e de condenação, para ver se na chama desse percebimento não se consome, pela raiz, o problema, o pensamento, que a preocupam? Não há dúvida de que toda espécie de acumulação, de conhecimentos ou de experiência, toda espécie de ideal, toda "projeção" da mente, toda prática deliberada para moldar a mente — o que ela deve ser e não deve ser —, não há dúvida de que tudo isso está paralisando o processo da investigação, do descobrimento. Se examinardes bem esta questão, se refletirdes a fundo a seu respeito, vereis que a mente tem de estar livre de todo condicionamento para que possa ter "liberdade religiosa". E é só nesta liberdade religiosa que todos os nossos problemas podem ser resolvidos.

Nossa investigação, por conseguinte, deve visar não à solução de nossos problemas imediatos, mas, sim, a descobrir se a mente — não só a mente consciente, mas também a inconsciente, a mente profunda, onde estão depositadas todas as tradições, lembranças e herança racial —, se a totalidade da mente pode ser posta de lado, abandonada. Acho que tal coisa só é possível quando a mente é capaz de um estado de percebimento em que não haja exigência em nenhum sentido, nem pressão de espécie alguma, um estado de simples vigilância e percebimento. Penso ser uma das coisas mais difíceis o nos pormos assim vigilantes, porque o problema imediato, a solução imediata, nos está prendendo toda a atenção, e por isso são tão superficiais as nossas vidas! Ainda que recorramos a todos os analistas, leiamos todos os livros, adquiramos muito saber, frequentemos as igrejas, rezemos, meditemos, pratiquemos muitas disciplinas, nossa vida, não obstante, é muito superficial, pois não sabemos penetrar-lhe as profundezas. A meu ver, a compreensão, o modo de penetração que nos levará às maiores profundidades, está no percebimento, no estarmos apercebidos, simplesmente, dos nossos pensamentos e sentimentos, sem condenação e sem comparação - no simples observar. Se o experimentardes, vereis como isso é difícil; porque nossa educação, em todos os seus aspectos, só nos prepara para condenar, aprovar, comparar. Nessas condições, parece-me que o nosso problema — que na realidade independe do tempo — é o de descobrirmos por nós mesmos, "experimentarmos" diretamente o que significa libertar a mente de todos os condicionamentos. É relativamente fácil livrar-se do nacionalismo, das qualidades raciais hereditárias, de certas crenças e dogmas, não pertencer a nenhuma igreja ou religião — isso é relativamente fácil para todo aquele que refletiu seriamente sobre estes assuntos; mas é muito mais difícil ir mais longe do que isso, ultrapassar estes limites. Pensamos ter feito muito quando sacudimos de nós algumas das camadas superficiais de nossa cultura ocidental ou oriental. Mas o penetrarmos mais além, sem ilusões, sem enganarmos a nós mesmos, isso é extremamente difícil. À maioria de nós nos falta para tal a necessária energia. Não me refiro à energia que se cria pela abstinência, pela renúncia, pelo ascetismo, pelo controle, pois a energia oriunda dessas coisas é de uma qualidade falsificada, já que desfigura a observação; refiro-me àquela energia que nasce quando a mente já não está buscando coisa alguma, já não sente necessidade de buscar, nem de descobrir, nem de "experimentar", e, portanto, está verdadeiramente tranquila. Só nesse estado a mente é capaz de descobrimento; porque só a mente tranquila está apta a receber algo que não é "projeção" dela própria. A mente tranquila é livre — é a mente religiosa. Podemos considerar realmente este assunto, não como um grupo, "experimentando" coletivamente, o que, aliás, é relativamente fácil, mas podemos, como indivíduos, investigar realmente e descobrir por nós mesmos até que grau e até que profundidade estamos condicionados? E podemos estar apercebidos desse condicionamento sem lhe opormos nenhuma reação, sem condená-lo, sem procurarmos alterá-lo, sem substituirmos o antigo condicionamento por um condicionamento novo, estar apercebidos com tanta simplicidade e tão profundamente que o próprio "mecanismo" de condicionamento — que, afinal, é simplesmente o desejo de estar seguro, o desejo de permanência — seja "queimado" pela raiz? Podemos descobrir isso por nós mesmos — e não porque outro falou a seu respeito — percebê-lo diretamente, de modo que a própria raiz, o próprio desejo de segurança, permanência, seja de todo consumido? É esse desejo de permanência, quer no futuro quer no passado, esse apego à experiência acumulada, que nos impele à busca da segurança. E esse desejo não pode ser "queimado", consumir-se de todo? Porque é ele que cria condicionamento. Esse desejo, que quase todos temos, de saber, buscando nesse saber nossa própria segurança, esse desejo de experiência, para nos tornarmos mais fortes, não se pode acabar definitivamente — não pela volição, mas fazendo-o consumir-se na chama do percebimento, de modo que a mente fique livre de todos os seus desejos, e possa então surgir aquilo que é eterno?

Penso ser esta a verdadeira revolução, e não a comunista ou qualquer outra forma de revolução. Estas não resolvem os nossos problemas; pelo contrário, aumentam-nos, multiplicando as nossas tribulações, o que, mais uma vez, é um fato bem óbvio. Sem dúvida, a única revolução verdadeira é a que liberta a mente de seu condicionamento e, por conseguinte, da sociedade. Não é, pois, a mera reforma da sociedade. O homem que está libertado da sociedade, uma vez que está livre de condicionamento, agirá pela sua maneira própria, e sua ação, por sua vez, influirá na sociedade. Nosso problema, por conseguinte, não é a reformação — como melhorar a sociedade, como ter um "Estado de Bem-Estar" comunista, socialista, ou coisa parecida. Nosso problema não se refere à revolução econômica ou política, nem à paz pelo terror. Para um homem verdadeiramente sério estas coisas não constituem problemas. O seu problema real é o de investigar se a mente pode libertar-se, de todo, de seu condicionamento e, talvez, nesta investigação, neste silêncio extraordinário, descobrir aquilo que ultrapassa todas as medidas.

Tenho aqui várias perguntas, e, antes de a elas responder, acho importante verificar o que é que entendemos por "um problema". Só existe algum problema quando a mente está ocupada, não achais? Tende a bondade de escutar e permita-me sugerir-vos que não salteis a conclusões, uma vez que estamos tentando investigar juntos. Quando a mente está ocupada, seja com Deus, seja com assuntos culinários, com uma pessoa, uma ideia, uma virtude, sua ocupação inevitavelmente tem de criar problemas. Se estou ocupado com o descobrimento de Deus ou da Verdade, esta minha ocupação se torna um problema, porque me ponho então a indagar, a mendigar, em busca do método mais eficaz etc.

A verdadeira questão, por conseguinte, não se relaciona com o problema em si, porém, sim, precisamos investigar porque anda a mente sempre ocupada, porque busca a mente ocupações. Não me refiro às atividades diárias, dos negócios etc., mas à ocupação psicológica da mente, a qual tem relação com a nossa vida de cada dia. Pouco importa com o que estejamos ocupados: se a respeito de Deus, da Verdade, do amor, do sexo, de assuntos culinários — tudo é a mesma coisa, não há "ocupações nobres". A mente busca ocupações, precisa estar ocupada com alguma coisa, tem horror a se ver não ocupada. Verificai, numa ocasião qualquer, quanto vos ocupam os vossos problemas e o que sucederia se não estivésseis tão ocupados: descobriríeis logo o horror que a mente tem de ver-se sem nenhuma ocupação. Nossa cultura, nossa educação, em todos os seus aspectos, nos ensinam que a mente deve estar ocupada; no entanto, acho que a própria ocupação cria o problema. Isto não significa que não existem problemas; há problemas, mas eu acho que a ocupação com o problema é que nos impede de compreendê-lo.

É realmente interessante observar a mente, observar a nossa própria mente, e verificar como está sempre ocupada com uma coisa ou com outra; nunca se acha um momento em que ela esteja quieta, desocupada, vazia, nunca se encontra num espaço sem limites. Como andamos sempre tão ocupados, os nossos problemas aumentam sem cessar. E a mera solução de um dado problema, sem se compreender por inteiro o mecanismo da ocupação mental, só tem o efeito de criar outros problemas. Assim sendo, não haverá possibilidade de compreendermos esta peculiar insistência da mente em estar ocupada, seja com ideias, especulações, conhecimentos, ilusões, estudos, seja com sua própria virtude e seus próprios temores? Estar livre de tudo isso, ter uma mente não ocupada, é muito difícil, porquanto significa, com efeito, a cessação de todas estas reações da memória, que chamamos "pensar".

Krishnamurti, Primeira Conferência em Londres
17 de junho de 1955


Na rejeição da cultura, o homem religioso


Na rejeição da cultura, o homem religioso

PERGUNTA: É possível educarmos os nossos filhos sem condicioná-los, e, se o é, de que maneira? Se não, existe uma coisa tal, como “condicionamento bom” e “condicionamento mau”? Tende a bondade de responder incondicionalmente (Risos).

KRISHNAMURTI: É possível educar as crianças, sem condicioná-las? Achais possível? Eu não acho. Tende a bondade de escutar; vamos investigar juntos. Antes, porém, liquidemos a última parte da pergunta — se há “bom condicionamento” e “mau condicionamento”. Por certo, há apenas condicionamento, sem que seja “bom” ou “mau”. Podeis achar que é um “bom condicionamento” crer em Deus, mas na Rússia comunista dir-se-á que é um “mau condicionamento”. O que chamais “bom condicionamento” outro poderá chamar mau, o que é um fato muito óbvio. Esta questão, portanto, pode ser liquidada muito facilmente.

Resta a outra questão: Pode-se educar as crianças, sem condicioná-las, sem influenciá-las? Ora, tudo o que as cerca está a influenciá-las. O clima, a alimentação, as palavras, os gestos, as conversas, as reações inconscientes, as outras: crianças, a sociedade, as escolas, os livros, as revistas, os cinemas — tudo está a influenciar a criança. E pode-se acabar com tal influência? Impossível, não achais? Podeis não desejar influenciar, condicionar, o vosso filho; mas, inconscientemente, o estais, influenciando, não estais? Tendes as vossas crenças, vossos dogmas, vossos temores, vossos princípios morais, vossos planos, vossas ideias sobre o que é bom e o que mau, e, assim, consciente ou inconscientemente, estais moldando a criança. E se vós não o fazeis, a escola o fará, com os seus livros de História, que falam dos heróis maravilhosos que nós temos e outros povos não têm, etc. etc. Tudo isso está a influenciar as crianças, e, portanto, precisamos, em primeiro lugar, reconhecer este fato evidente.

O problema, agora, é este: Podemos ajudar a criança a desenvolver-se para investigar inteligentemente todas estas influências? Estais compreendendo? Sabendo-se que a criança está sendo influenciada por tudo o que a cerca, tanto no lar como na escola, pode-se-lhe prestar a necessária assistência, a fim de a capacitarmos a investigar todas as influências e nunca se deixar dominar por nenhuma delas? Se tendes realmente a intenção de ajudar o vosso filho a investigar todas as influências, a vossa tarefa será dificílima, não é verdade? Porque isso exige não só o exame da vossa própria autoridade, mas de todo o problema da autoridade, do nacionalismo, da crença, da guerra, do militarismo — um exame completo da coisa, o que significa: cultivar a inteligência. E quando existe essa inteligência e a mente já não aceita nenhuma autoridade nem se deixa ajustar, por medo, aos padrões vigentes — então, toda influência é devidamente examinada e posta de parte. Por conseguinte, a mente não fica condicionada. Ora, isto é possível, não? E a função da educação não consiste, justamente, em cultivar esta inteligên­cia, que é capaz de examinar objetivamente qualquer influência, de investigar todo o “background” (fundo psicológico), tanto nos níveis imediatos como nos mais profundos, de modo que a mente nunca esteja sujeita a condicionamento algum?

Afinal de contas todos estamos condicionados pelo nosso “background”; nós somos esse “background”, constituído pela nossa tradição cristã, por essa extraordinária vitalidade, energia e progresso da América, pelas nossas influências; climáticas, sociais, religiosas, dietéticas, etc. E não podemos considerar de maneira inteligente a totalidade desse fundo, tirá-lo para fora, “estendê-lo sobre a mesa”, para examiná-lo, em vez de seguirmos o absurdo processo de conservar o que achamos bom e rejeitar o que achamos mau? Por certo, temos de encarar objetivamente toda essa coisa que chamamos “cultura”. As culturas criam religiões, mas não criam o homem religioso.

O homem religioso surge quando a mente rejeita a cultura, que é o “background”, o fundo, ficando livre para descobrir o Verdadeiro. Mas isso requer uma extraordinária vigilância por parte da mente, não é exato? O homem religioso não é americano, nem inglês, nem hindu, e sim um ente humano; não pertence a nenhum grupo, raça ou cultura, e por conseguinte é livre para descobrir o que é verdadeiro, o que é Deus. Cultura alguma pode ajudar o homem a descobrir o Verdadeiro. As culturas só criam organizações para agrilhoar o homem. Importa, por conseguinte, investigar tudo isso, não só o condicionamento consciente, mas também — o que é muito mais importante — o condicionamento inconsciente da mente.

E o condicionamento inconsciente não pode ser examinado superficialmente pela mente consciente. Só quando a mente está de todo quieta, pode ser revelado o condicionamento inconsciente — não num dado momento, mas a qualquer hora: quando damos um passeio a pé, ou viajamos num ônibus, ou conversamos com um amigo. Havendo a intenção de descobrir, ver-se-á que o condicionamento inconsciente sairá aos jorros, e estarão assim abertas as portas para o descobrimento.

Krishnamurti, 20 de agosto de 1955
Realização sem esforço
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sexta-feira, 1 de maio de 2015

O nascimento de uma ciência de conscientização

Sou contra todas as assim chamadas religiões porque elas não são de maneira nenhuma religiões. Sou pela religião, mas não pelas religiões.

A religião verdadeira só pode ser uma, exatamente como a ciência. Você não tem um físico Maometano, um físico Hindu, um físico Cristão; isso seria bobagem. Mas foi isso que as religiões fizeram – elas transformaram o mundo inteiro num hospício.

Se a ciência é uma, então porque a ciência do interior não seria uma também?

A ciência explora o mundo objetivo e a religião explora o mundo subjetivo. O trabalho delas é o mesmo, só a direção e a dimensão delas são diferentes.

Numa era mais iluminada não haverá tal coisa como religião, haverá somente duas ciências: a ciência objetiva e a ciência subjetiva. Ciência objetiva lida com as coisas, ciência subjetiva lida com o ser.

É por isso que digo que sou contra as religiões, mas não contra religião. Contudo, essa religião ainda está pra nascer. Todas as antigas religiões farão tudo ao seu alcance para matá-la, para destruí-la – porque o nascimento de uma ciência de conscientização será a morte de todas essas assim chamadas religiões que têm explorado a humanidade por milhares de anos.

O que irá acontecer com suas igrejas, sinagogas, templos? O que irá acontecer com seus sacerdotes, seus papas, seus shankaracharyas, seus rabis? É um grande negócio. E essas pessoas não irão permitir facilmente o nascimento da verdadeira religião.

Mas chegou o momento na história humana quando as garras das antigas religiões estão afrouxando.
O homem está apenas formalmente dando atenção ao Cristianismo, Judaísmo, Hinduísmo, Maometismo, porém basicamente qualquer um que tenha alguma inteligência não está mais interessado em todo esse lixo. Ele pode ir a sinagoga e para a igreja e para a mesquita por outras razões, mas essas razões não são religiosas; essas razões são sociais. Vale a pena ser visto na sinagoga; é respeitável, e não há nenhum dano. Isso é exatamente como se associar ao rotary clube ou ao lions clube. Essas religiões são clubes antigos que têm um jargão religioso em torno delas, mas olhe um pouco mais fundo e você descobrirá que todas elas são pura embromação sem nenhuma substância dentro.

Sou pela religião, mas essa religião não será uma repetição de qualquer religião que você esteja familiarizado.

Essa religião será uma rebelião contra todas essas religiões. Ela não irá levar o trabalho delas adiante; ela irá encerrar completamente o trabalho delas e iniciar um novo trabalho – a real transformação do homem.

Você me pergunta: Qual é o erro fundamental de todas essas religiões? Existem muitos erros e eles são todos importantes, mas primeiro eu gostaria de falar sobre o mais fundamental. O erro mais fundamental de todas as religiões é que nenhuma delas teve coragem suficiente para aceitar que existem coisas que não sabemos. Todas elas fingiram saber de tudo, todas elas fingiram conhecer tudo, que todas elas eram oniscientes.

Porque isso aconteceu? – porque se você aceitar que você é ignorante sobre alguma coisa então dúvidas surgem nas mentes de seus seguidores. Se você é ignorante a respeito de alguma coisa, quem sabe? – você pode ser ignorante também sobre outras coisas. Qual é a garantia? Para torná-la a toda prova, todos eles fingiram, sem exceção, que são oniscientes.

A coisa mais bonita sobre a ciência é que ela não finge ser onisciente."

O S H O

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Existe algo além da medida das palavras e do pensamento?

O homem procura algo para além do transitório. provavelmente desde tempos imemoriais, tem perguntado a si próprio se há alguma coisa que seja sagrada, alguma coisa que não pertença a este mundo, que não seja arquitetada pelo pensamento, pelo intelecto. Tem sempre querido saber se haverá uma realidade, um estado intemporal não inventado, não projetado pelo pensamento, um estado da mente em que o tempo realmente não existe; se haverá algo "divino", "sagrado", "santo" — se podemos usar essas palavras — que não seja perecível. 

As religiões organizadas parecem ter dado a resposta. Dizem que existe uma Realidade, que há um Deus, que há algo que a mente não é capaz de medir. Começam então a organizar o que consideram ser o real, e o homem é desviado para o caminho errado. Talvez vocês se lembrem da história acerca do Diabo, que andava a passear com um amigo. Viram um homem à sua frente inclinar-se e apanhar alguma coisa do chão. Quando a apanhou e a olhou, tinha no rosto uma grande alegria. O amigo do Diabo perguntou a este o que é que o homem apanhara e o Diabo respondeu: "Foi a verdade." O amigo disse: "Isto é muito mau para você, não é?" E o Diabo respondeu: "De modo nenhum, vou ajudá-lo a organizá-la..."

O culto de uma imagem, criada pelas mãos ou pela mente, e os dogmas e rituais da religião organizada, com o eu sentido de beleza, são considerados muito veneráveis e sagrados. Assim o homem, na sua busca daquilo que está além de toda a medida, para além de todo o tempo, é iludido, logrado e aprisionado, porque está sempre na esperança de encontrar algo que não seja inteiramente deste mundo. Afinal, que é que as sociedades tradicionais, burocráticas, capitalistas ou comunistas, têm realmente para oferecer? Muito pouco além de alimentação, habitação e vestuário. Talvez se possam ter mais oportunidades para trabalhar ou se possa ganhar mais dinheiro, mas no aspecto mais profundo, quando se observa, essas sociedades têm muito pouco para dar; e a mente, se é de fato inteligente e acordada, recusa isto. Fisiologicamente, alimentação, habitação e vestuário são necessários, absolutamente essenciais. Mas quando isso se torna o mais importante, a vida perde então o seu maravilhoso sentido. 

Assim, valeria a pena, esta tarde, gastarmos algum tempo a descobrir por nós mesmos se há realmente algo sagrado, algo não construído pelo pensamento, pelas circunstâncias, que não seja resultado da propaganda.

Valeria a pena, se possível, aprofundar esta questão, porque, a não ser que se encontre algo que esteja para além da medida das palavras, do pensamento, de qualquer experiência, a vida de todos os dias torna-se extremamente superficial. Talvez seja por isso — mas também pode ser que não — que a geração presente recusa esta sociedade e procura algo para além da luta, da fealdade e da desumanidade quotidianas. 

Podemos então penetrar no problema: "Que é uma mente religiosa? Qual é o estado da mente capaz de ver o que é a verdade?"(...)

Krishnamurti em, O mundo somos nós

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Quem busca por segurança nunca torna-se religioso

A religião não é tradicional, não pode ser, por sua própria natureza. A tradição é o que está morto. A tradição já passou, já morreu, é apenas a poeira do passado, apenas a memória. A religião está sempre viva, respirando. A religião nunca pode ser tradicional. Sempre que uma religião se torna tradicional, serve mais ao Diabo do que a Deus; serve mais à morte do que à vida. Assim, ela serve aos políticos, aos padres, às organizações, às igrejas, mas não serve ao espírito do homem, e deixa de ser uma abertura para o futuro. A tradição está voltada para trás e nós temos que ir para a frente. Olhar para trás não serve para nada, e não só não serve para nada, como é prejudicial e perigoso. Não podemos ir para trás, temos que ir para a frente, e se ficarmos olhando para trás, certamente haverá problemas. 

Outra coisa: a religião não está nas escrituras, não pode estar. As escrituras são palavras mortas. Sim, houve religião um dia, vibrando naquelas palavras, ao serem pronunciadas por um Mestre vivo. Quando Krishna falou o Srimat Bhagavad Gita para arjuna, isso era vivo. Era vivo por causa de Krishna, era radiante por causa de Krishna. Quando ele desapareceu, o Bhagavad Gita tornou-se um cadáver. Palavras mortas: você pode continuar analisando aquelas palavras, interpretando de uma maneira ou de outra... Existem milhares de comentários sobre o Gita, alguns até bem famosos. Na verdade, quando alguém lê o Gita, dá sua própria interpretação. O significado dado por Krishna foi perdido; desapareceu junto com ele. A cobra já passou... Só restou o seu rastro na areia. É esse rastro que você continua cultuando como uma escritura. 

Quando Jesus andou sobre a terra e falou a seus discípulos, suas palavras eram uma verdade vibrante, palpitante de vida. A palavra não estava morta; a palavra era Deus, a palavra era a própria verdade. A palavra tinha em si um coração; era plena de amor, experiência, existência, ser. Quando Jesus se foi, a vida se foi. Depois, você pode colecionar palavras e fazer quantos evangelhos quiser, mas eles não serão de nenhuma ajuda. 

A religião real nunca está nas escrituras, e a pessoa religiosa que busca, sinceramente, não vai atrás de escrituras, e sim de um Mestre — um Mestre vivo... Se você puder entrar em contato com um Mestre vivo, então as escrituras mortas tornar-se-ão vivas novamente; elas tornam-se vivas somente através de um Mestre vivo — não há outra maneira, porque o Mestre vivo é a única escritura. Quando um Mestre vivo toca o Bhagavad Gita, este torna-se vivo; quando ele toca os Evangelhos, eles tornam-se vivos. Quando um Mestre recita o Alcorão, ele torna-se vivo novamente. O Mestre dará sua própria vida a essas palavras e elas começarão a pulsar. Mas, diretamente, você não pode encontrar religião nas escrituras. 

Assim, a religião não está na tradição, não está nas escrituras e não está nos rituais. O rituais são formalidades. A menos que você esteja em comunhão com um Mestre vivo, os rituais são apenas um peso morto. Eles oprimirão, esgotarão, matarão você, e você ficará perdido em infinitas formalidades. Com um Mestre vivo, nasce um novo ritual; que vem com o contato; existe um contexto, uma referência viva para esse ritual, que não é aprendido através de tradições mortas, transferidas de geração a geração. Você o vive — e, vivendo-o, aprende-o. 

(...) A religião não está nos rituais. Sempre que existe uma religião, existe ritual, mas isso é bem diferente. Como você pode evitar de tocar os pés de Buda, quando ele está perto de você? Impossível. Você só pode fazer duas coisas, e ambas são rituais: ou você toca seus pés, ou você lhe atira pedras. Mas ambas são rituais — uma é o do amigo e outra é o do inimigo. O ponto principal é que não se pode omitir Buda, não se pode ser indiferente. O fenômeno é tal, que não se pode ignorá-lo. Ou você se torna um amigo ou se torna um inimigo; você tem de escolher. Você tem que tomar uma atitude, e essa atitude é ritual. Mas, nesse caso, nasceu em seu coração, não foi aprendido com outra pessoa. Ela simplesmente surge em seu ser. 

(...) A religião não está na tradição, nem nos rituais e nem nas chamadas religiões: hindu, cristã, muçulmana. A religião não tem adjetivos. Religião é simplesmente religião, como amor é amor.(...) A religião não está nas religiões;está isenta de qualquer adjetivo, de qualquer definição, e cada um tem que buscá-la. Ninguém pode nascer numa religião; a religião tem que nascer em você. Você tem que abrir sua alma e receber a religião. Ela está se derramando em toda a parte... mas você está carregando brinquedos substitutos, moedas falsas, em suas mãos, pensando que tem religião. Ela não está na igreja, não está na mesquita, não está no templo. Vá onde está um mestre vivo: ela está lá. Isso também existe apenas por alguns momentos — o Mestre se vai, e a religião desaparece...

Religião é algo individual, cada um tem que buscar por si mesmo. Não é um fenômeno social, não tem nada a ver com a multidão, com o coletivo. É algo privado, tão íntimo quanto o amor. Você vem a ela sozinho, em profunda intimidade e privança... você abre seu coração. A religião é espontânea no sentido de que você não pode aprendê-la. Você pode estar nela, mas não pode aprendê-la. É tão espontânea quanto o amor. Você alguma vez aprendeu o que é o amor? No dia em que o homem tiver que aprender a amar, será o dia do Juízo Final. Esse dia parece estar cada vez mais próximo, principalmente no Ocidente, e particularmente na América. Livros estão sendo escritos: Como amar, Como fazer amigos — livros tolos, porque se o homem esqueceu como amar, nenhum livro pode ensiná-lo. Ensinar a humanidade a amar é o mesmo que querer ensinar um peixe a nadar — tolice completa. O mesmo acontece com a religião. Ela não pode ser aprendida, pode somente ser apreendida; é algo contagioso. Se você vai a algum lugar onde existe uma pessoa santa, você pode apreender, absorver a religião. 

Religião é rebelião. É rebelião contra a morte, contra tudo o que está morto; é rebelião contra o exterior: contra a política, a ganância, a sociedade, a cultura, a civilização. Religião é uma rebelião: ela diz que temos de escutar a parte mais profunda de nosso ser, e segui-la aonde quer que ela nos leve. Aonde for... sem medo das consequências, escutaremos aquela pequena voz dentro de nós e a seguiremos. Religião é um risco. As pessoas que sempre procuram a segurança nunca poderão torna-se religiosas; é muito perigoso. Se você passar através do perigo, passará através da crucificação... e somente depois da crucificação vem a ressurreição. 

OSHO em, A DIVINA MELODIA

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Sobre a mente não feita pelo homem

"O que é um ser humano? E qual a relação entre essa mente, QUE NÃO É FEITA PELO HOMEM, e a mente feita pelo homem? Não sei se fui claro."

"Vamos deixar bem claro este ponto. Vivemos em um mundo feito pelo homem; a mente foi feita pelo homem; nós somos o resultado de mentes feitas pelo homem, bem como nossos cérebros, com todas as suas respostas e tudo o mais... Condicionado pelo homem... Agora, pode esta mente descondicionar-se de forma tão completa que chega ao ponto de não ser mais feita pelo homem? Eis a questão — vamos mantê-la neste nível simples. Pode a mente, feita pelo homem — tal como é agora — pode ela ir até este ponto, libertar-se de si mesma, e de forma tão completa?"

"A consciência, geral e particular, É FEITA PELO HOMEM. E, através da lógica e da razão, podemos ver as limitações. A mente, então, terá avançado muito. E, então, ela chega a um ponto em que diz: 'Tudo isto pode ser varrido DE UMA SÓ VEZ, DE UM SÓ GOLPE, com um movimento?' E esse movimento é a descoberta, o movimento da descoberta. Está ainda na mente. Mas NÃO É MAIS FRUTO DAQUELA CONSCIÊNCIA."

"Estará essa mente livre da mente feita pelo homem?... Não se trata de uma ilusão, porque ela enxerga a mensuração como ilusão; ela conhece a natureza das ilusões e sabe que onde há desejo deve haver ilusões. E que as ilusões devem criar limitação, e assim por diante. Ela não só já compreendeu; ELA JÁ ULTRAPASSOU ISSO... Está livre do desejo. Essa é a natureza. Eu não quero afirmar isso de forma tão brutal. Livre do desejo... está repleta de energia, e então essa mente, que não é mais geral ou particular e, portanto, NÃO É MAIS LIMITADA — a limitação foi quebrada com a descoberta — não é mais a mente condicionada. Então, o que é essa mente? Estando consciente de que ela não continua mais presa de uma ilusão."

"Existirá uma mente que não seja feita pelo homem? E, se existir, qual a sua relação com a mente feita pelo homem? Isto é muito difícil. O senhor vê, todo tipo de afirmação, todo tipo de declaração verbal não pode ser a mente NÃO FEITA pelo homem. Certo? Daí perguntamos se existe uma mente que não seja feita pelo homem. E acredito que só há sentido em se fazer esta pergunta quando a outra mente, quando as limitações estiverem varridas; caso contrário, SERIA APENAS UMA PERGUNTA TOLA... Seria uma perda de tempo. Quero dizer: isso se tornaria teórico, sem sentido. (seria parte da estrutura feita pelo homem)"

"Existirá uma mente não feita pelo homem e, se existir, qual a sua relação com a mente feita pelo homem? Bem, mas, em primeiro lugar, existe uma mente assim? É CLARO QUE EXISTE. É CLARO, senhor. Sem ser dogmático ou pessoal, AFIRMO QUE EXISTE. Mas não é Deus. (porque Deus é parte da estrutura feita pelo homem)... Que produziu o caos no mundo. Então, ELA EXISTE." 

"A mente feita pelo homem não tem relação com a mente não feita pelo homem; mas aquela [a mente não feita pelo homem] tem uma relação com esta [a mente feita pelo homem]. 
— Krishnamurti

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A arte de viver não se encontra em livros e em gurus

Uma mente tranquila é essencial para a percepção do todo; e a mente só está tranquila quando compreende cada pensamento e cada sentimento que surge. Isto é, a mente se torna tranquila quando cessa o processo de pensamento. Resistir, levantar uma muralha de isolamento e viver nesse isolamento, isso não é tranquilidade. A tranquilidade que é cultivada, disciplinada, forçada, a tranquilidade sob compulsão, é ilusória, e, em tais condições, a mente jamais perceberá o problema como um todo. 

O viver é uma arte, e a arte não se aprende num dia. A arte de viver não se encontra em livros, e nenhum guru a pode lhes dar; mas, visto que compram livros e seguem gurus, a mente de vocês está cheia de ideias falsas, cheias de disciplinas, de regras e restrições. Porque a mente de vocês nunca está tranquila, nunca está serena, é incapaz de perceber qualquer problema como um todo. Para se ver qualquer coisa plenamente, integralmente, necessita-se liberdade, e a liberdade não vem por meio de compulsão, de um processo de disciplina, de repressões, mas só quando a mente se compreende a si mesma, o que é autoconhecimento. 

Essa forma superior de inteligência que é o pensar negativo, só aparece quando cessou o processo do pensamento; e nessa vigilante tranquilidade, percebe-se o todo do problema. E só então há a "ação integrada", a ação plena, correta, completa. 

Krishnamurti em, A Arte da Libertação

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Medo é o nome da chave da sua apertada cela

A maioria tem medo de ficar só. Porventura saímos a passeio sozinhos? Raramente. Sempre queremos alguém que vá conosco porque queremos conversar, queremos contar alguma história a alguém, sempre estamos falando, falando, falando; portanto, nunca estamos sós, estamos? Quando se cresce e se pode sair para um passeio sozinho, descobre-se muitas coisas. Descobre-se o próprio jeito de pensar, e então começa-se a observar todas as coisas circundantes — o mendigo, o homem estúpido, o inteligente, o rico e o pobre; toma-se consciência das árvores, dos pássaros, a luz refletida numa folha. Vocês verão tudo isso quando saírem a passear sozinhos. Ficando sós, vocês depressa descobrirão que têm medo. E é porque temos medo que inventamos essa coisa chamada religião. 

Muitos volumes têm sido escritos sobre Deus e sobre o que se deve fazer para abordá-lo; mas a base disso tudo é o medo. Enquanto se tem medo, não se pode encontrar nada de real. Se você tem medo do escuro, não se atreve a sair da cama, cobre a cabeça com o lençol e trata de dormir. Para sair e ver, para descobrir o que é real, é preciso haver liberdade em relação ao medo, não é? Mas, vejam, ficar livre do medo é muito difícil. A maioria dos adultos diz que que vocês só podem ser livres quando forem mais velhos, quando tiverem amealhado conhecimentos e tiverem aprendido a disciplinar a mente. Eles pensam que liberdade é algo muito distante, situado no fim e não no princípio. Mas certamente deve haver liberdade desde a infância, de outro modo vocês jamais serão livres. 

Vejam, tendo eles próprios medo, eles os disciplinaram, dizendo-lhes o que é certo e o que é errado; dizem que vocês precisam fazer aquilo e não isto, que devem pensar no que as pessoas dirão, e assim por diante. Há todo tipo de controle para assustá-los na trilha, no molde, no modelo, e a isso chamam de disciplina. Sendo muito jovens, e por causa de seu próprio medo, vocês se ajustam; mas isso não os ajuda em nada, porque quando vocês apenas se ajustam a algo, não o compreendem. 

Ora, examinem isso de outro modo. Se vocês não fossem disciplinados, se não fossem controlados, reprimidos, fariam o que quisessem? Vocês fariam o que bem entendessem, se não houvesse ninguém para lhes dizer o que fazer? Talvez o fizessem agora, porque estão habituados a ser obrigados, oprimidos, moldados e, como reação, fariam algo contrário a tudo isso. Mas suponham que desde a infância, desde o começo de sua frequência à escola, o professor conversasse com vocês e não lhes dissesse o que deveria fazer — como então reagiriam? Se, desde o começo de sua passagem pela escola, o professor assinalasse que ser livre é a primeira coisa importante, e não a última a ser tratada quando se está para morrer, o que aconteceria? 

O problema é que ser livre requer boa dose de inteligência; e como vocês ainda não sabem o que é ser livre — é função do professor ajudá-los a descobrir os processos da inteligência. É a inteligência que acarreta a liberdade em relação ao medo. Enquanto houver medo, vocês estarão sempre se impondo algum tipo de disciplina: devo fazer isto e não aquilo, devo crer, preciso conformar-me, preciso fazer puja, e assim por diante. Essa autodisciplina é toda nascida do medo, e onde há medo não há inteligência.

Por conseguinte, a educação, a rigor, não é apenas uma questão de ler livros, de passar nos exames e de obter um emprego. É um processo completamente distinto; ela se estende desde o momento em que se nasce até a morte. Vocês podem ler inúmeros livros e ser muito espertos, mas não creio que a mera esperteza seja sinal de educação. Se for simplesmente esperto, você perderá muito na vida. O importante é, primeiro, descobrir de que é que você tem medo, compreender isso e não fugir disso. Quando sua mente está realmente livre de todo tipo de exigências, quando já não é invejosa, cobiçosa, só então poderá descobrir o que é Deus. Deus não é o que o povo diz que ele é. É algo inteiramente diferente — algo que acontece quando você compreende, quando você não tem nenhum medo. 

Assim sendo, a religião é na realidade um processo de educação, não é verdade? A religião não é uma questão daquilo que se deve crer ou não crer, de cumprir rituais ou de apegar-se a algumas superstições; é um processo de auto-educação nos caminhos do entendimento, de modo que nossa vida fique extraordinariamente rica e não mais sejamos seres humanos amedrontados, medíocres. Só então poderemos criar um mundo novo.

Líderes políticos e religiosos dizem que a criação de um novo mundo está nas mãos dos jovens. Nunca ouviram isso? Centenas de vezes, provavelmente. Mas eles não os educam para serem livres; e é haver liberdade para criar um mundo novo. Os adultos os educam nos modelos das próprias ideias deles — e têm feito uma grande confusão. Eles dizem que são vocês, os da nova geração, que devem criar um mundo novo; mas ao mesmo tempo eles os enjaulam, não é verdade? Dizem-lhes que precisam ser indianos, parses, isto ou aquilo — e se vocês lhes seguirem as ideias irão obviamente criar um mundo exatamente igual ao atual. Um novo mundo só pode ser criado quando se cria a liberdade, não com medo, não com superstição, não com base no que certa pessoa disse que um mundo deveria ser.

Vocês, jovens, da nova geração, só poderão criar um mundo totalmente diferente se forem educados para serem livres e não forçados a fazer algo de que não gostem ou que não compreendam. Por isso, é muito importante, enquanto são jovens, serem verdadeiros revolucionários — o que significa não aceitar qualquer coisa, mas inquirir sobre todas as coisas a fim de descobrir a verdade. Só então poderão criar um mundo novo. Caso contrário, ainda que os chamem por um nome diferente, vocês estarão perpetuando o mesmo velho mundo de misérias e destruição que sempre existiu até agora.

Mas, geralmente, o que é que nos acontece quando somos jovens? As moças se casam, têm filhos, e aos poucos desaparecem. Os rapazes, quando crescem, têm de ganhar a vida, então arranjam empregos e lhes é exigido que se conformem, que sigam uma profissão, quer gostem quer não; tendo-se casado e tendo filhos, são arrastados pela vida afora por suas responsabilidades e devem, portanto, fazer aquilo que lhes dizem que façam. Nessas condições, o espírito de revolta, o espírito de inquirição, o espírito da busca interior chega a seu fim; todas as suas ideias revolucionárias de criar um mundo novo são esmagadas, porque a vida é demais para eles. Eles precisam ir para o escritório, têm lá um chefe para o qual precisam fazer isto ou aquilo e, aos poucos, o senso de inquirir, o sentimento de revolta, a ânsia de criar um modo de viver completamente diferente de tudo, é destruída por completo. Por isso, é muito importante ter esse espírito de revolta desde o princípio da vida.

Vejam, a religião, a coisa real, significa uma revolta para encontrar a Deus. ou seja, significa descobrirmos por nós mesmos o que é a verdade. Não é a mera aceitação dos chamados livros sagrados, por mais antigos e venerados que eles sejam.

Krishnamurti em, O VERDADEIRO OBJETIVO DA VIDA 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A mente verdadeiramente religiosa é livre de todos os gurus

Enquanto somos bem jovens, a maioria de nós talvez não seja grandemente afetada pelos conflitos da vida, pelas preocupações, pelas alegrias passageiras, pelos desastres físicos, pelo medo da morte e as distorções mentais que pesam sobre a geração mais velha. Felizmente, enquanto somos jovens, a maioria de nós ainda não se encontra no campo da batalha da vida. Mas, à medida que envelhecemos, os problemas, as angústias, as dúvidas, as lutas econômicas e interiores, tudo isso começa a acumular-se em nós, e então desejamos encontrar o sentido da vida, queremos saber o que ela significa. Ficamos perplexos com os conflitos, com as dores, com a pobreza, com os desastres. Queremos saber porque algumas pessoas estão bem colocadas e outras não; porque um ser humano tem saúde, é inteligente, bem-dotado, capaz, ao passo que o outro não o é. E se somos pouco exigentes, ficamos logo presos a uma hipótese, a alguma teoria ou crença; encontramos uma resposta, mas não é nunca a verdadeira resposta. Verificamos que a vida é feia, dolorosa, triste, e começamos a inquirir; mas não tendo suficiente confiança própria, vigor, inteligência, inocência, para continuar inquirindo, somos logo colhidos nas malhas de alguma teoria ou crença, especulação ou doutrina que explique satisfatoriamente tudo isso. Aos poucos nossas crenças e dogmas se tornam profundamente enraizados e inabaláveis, porque por detrás deles está um constante medo do desconhecido. Nunca examinamos o medo; desviamo-nos dele e nos refugiamos nas crenças — a cristão, a budista, a hindu — verificamos que elas dividem as pessoas. Cada conjunto de dogmas e crenças possui uma série de rituais, uma série de compulsões que amarram a mente e separam um homem do outro. 

Então começamos a inquirir para tentar descobrir a verdade, o significado de toda essa miséria, dessa luta, dessa dor, e acabamos com um conjunto de crenças, rituais, teorias. Não temos a necessária confiança própria, nem vigor, nem inocência, para afastar a crença para um lado e inquirir; desse modo, a crença passa a atuar como um fator de deterioração em nossa vida. 

A crença é corruptora porque atrás dela e dos ideais de moralidade aninha-se o "eu", o ego — o ego que está cada vez maior e mais poderoso. Achamos que crer em Deus é religião. Consideramos que crer é ser religioso. Se vocês não creem, serão considerados ateus e condenados pela sociedade. Uma sociedade condena os que não creem em Deus, e outra condena os que nele creem. Ambas são uma só e a mesma coisa. 

Nessas condições, a religião se torna uma questão de crer, e o crer atua como uma limitação sobre a mente; então a mente nunca é livre. Mas é só em liberdade que vocês podem encontrar a verdade, Deus; não através de uma crença; porque a crença projeta o que vocês pensam que deveria ser Deus, o que vocês acreditam que deva  ser a verdade. Se vocês creem que Deus é amor, que Deus é bom, que Deus é isto ou aquilo, sua própria crença lhes impede de compreender o que seja Deus, o que seja a verdade. Mas o caso é que vocês desejam esquecer-se numa crença; querem sacrificar-se; desejam emular outrem, abandonar essa luta constante que prossegue dentro de vocês e buscar a virtude. 

Sua vida é uma luta constante em que há tristeza, sofrimento, ambição, prazeres transitórios, felicidade que vem e vai; então a mente quer algo grandioso em que se apegar, algo além de si mesma com que possa identificar-se. A isso ela chama Deus, verdade, e identifica-se com tal coisa através da crença, da convicção, da racionalização, de várias formas de disciplina e moralidade idealista. Mas essa coisa grandiosa, que cria especulação, ainda faz parte do "eu", é coisa projetada pela mente em seu desejo de escapar às tormentas da vida. 

Identificamo-nos com uma pátria — a Índia, a Inglaterra, a Alemanha, a Rússia, os Estados Unidos. Vocês pensam em si mesmos como sendo hindus. Por que? Por que se identificam com a Índia? Já examinaram isso, já foram além das palavras que lhes captaram a mente? Vivendo numa cidade ou num pequeno vilarejo, levando uma vida miserável com suas lutas e conflitos familiares, estando insatisfeitos, descontentes, infelizes, vocês se identificam com uma pátria, chamada Índia. Isto lhe dá uma sensação de grandeza, de importância, uma satisfação psicológica, então dizem: "Sou indiano"; e por isso estão dispostos a matar, a morrer ou aleijar-se. 

Da mesma forma, porque vocês são realmente insignificantes e estão em constante batalha consigo mesmos e com os outros, porque estão confusos, angustiados, incertos, porque sabem que há morte, vocês se identificam com algo mais além, algo vasto, importante, cheio de significado, a quem chamam de Deus. Essa identificação com aquilo a que chamam de Deus dá-lhes uma sensação de enorme importância, e vocês se sentem felizes. Portanto, a identificação de vocês com algo maior é um processo de auto-expansão; é, ainda, a luta do "eu", do ego. 

A religião, como geralmente a conhecemos, consiste numa série de crenças, dogmas, rituais, superstições; é a adoração de ídolos, de amuletos e de gurus, e achamos que tudo isso nos levará a alguma meta fundamental. A meta fundamental é a nossa própria projeção; é aquilo que desejamos, o que pensamos que nos tornará felizes, uma garantia de imortalidade. Presa a esse desejo de certeza, a mente cria uma religião de dogmas, de hierarquia clerical, de superstições e de adoração de ídolos; e aí ela se estagna. Será isso religião? Religião é uma questão de crença, uma questão de aceitação ou de tomada de conhecimento das experiências e afirmações de outras pessoas? É religião a mera prática da moralidade? É comparativamente fácil levar uma vida digna — fazer isto e não fazer aquilo. Vocês podem simplesmente imitar um sistema moral. Mas por trás dessa moralidade aninha-se o ego agressivo, crescendo, expandindo-se, dominando. Será isso religião? 

Vocês precisam descobrir o que é a verdade, porque isto é o que realmente importa — não o fato de vocês serem ricos ou pobres, se estão satisfatoriamente casados e têm filhos, pois todas essas coisas têm fim; e sempre há morte. Por isso, sem qualquer forma de crença, vocês precisam ter o vigor, a confiança própria, iniciativa de descobrir por si mesmos o que seja a verdade, o que é Deus. Crenças não libertarão suas mentes; a crença só corrompe, aprisiona, escurece. A mente só pode ser livre através de seu próprio vigor e confiança. 

Certamente, uma das funções da educação é criar indivíduos que não sejam prisioneiros de nenhuma força de crença, de nenhum modelo de moral ou de respeitabilidade. É o "eu" que meramente procura tornar-se moral, respeitável. O indivíduo verdadeiramente religioso é aquele que descobre, que diretamente experimenta o que é Deus, o que é a verdade. Essa experiência direta nunca é possível mediante qualquer forma de crença, ritual, seguimento ou adoração de outro. A mente verdadeiramente religiosa é livre de todos os gurus. Vocês, como indivíduos, à medida que crescem e vivem suas vidas, podem descobrir a verdade a cada momento, e portanto são capazes de ser livres. 

(...) O indivíduo precisa despertar a própria inteligência, não através de alguma forma de disciplina, resistência, compulsão, coerção, mas sim através da liberdade. É só pela inteligência nascida da liberdade que o indivíduo pode descobrir o que está por trás da mente. Essa imensidão — o inominável, o ilimitado, aquilo que não é mensurável por meio de palavras e em que há o amor que não procede da mente — precisa ser experimentado diretamente. A mente não pode concebê-lo; portanto, ela precisa estar muito quieta, extraordinariamente tranquila, sem nenhum exigência nem desejo. Só então será possível existir aquilo que pode ser chamado Deus ou de realidade. 

Krishnamurti em, O VERDADEIRO OBJETIVO DA VIDA

domingo, 21 de setembro de 2014

O sofrimento é resultado do pensamento

Tratemos de averiguar o que é viver. A realidade do viver é a fadiga diária, a rotina, com as respectivas lutas e conflitos; é a dor da solidão, a aflição e sujeira da pobreza e da riqueza, a ambição, a busca de preenchimento, o êxito e a tristeza — que abarcam toda a esfera de nossa vida. Eis o que chamamos viver — ganhar e perder batalhas, e a interminável busca de prazer. 

Contrastando com isso ou como seu oposto há o que se chama "viver religioso" ou "vida espiritual". Mas todo oposto contém decerto a semente de seu próprio oposto e, por conseguinte, ainda que pareça diferente, na realidade não o é. Podem-se mudar as roupas externas, mas a essência íntima do que foi e do que deverá ser é a mesma. Essa dualidade é produto do pensamento, e, portanto, gera mais conflito; esse conflito é uma galeria interminável. Sabemos de tudo isso; outros nos têm dito ou nós mesmos o temos experimentado. Isso é o que se chama viver. 

A vida religiosa não está na outra margem do rio; está neste lado — onde se acham todas as agonias do homem. É este lado que temos de compreender, e a ação da compreensão é o ato religioso — e não cobrir-se de cinzas, cingir os quadris com uma tanga ou a cabeça com uma mitra, ocupar o trono dos poderosos ou ser transportado no dorso de um elefante. 

Ver inteiramente a condição do homem, seus prazeres e aflições, é de primeira importância, e não o especular sobre o que deveria ser uma vida religiosa. "O que deveria ser" é um mito; é a moralidade criada pelo pensamento e a fantasia, moralidade que devemos rejeitar — social, religiosa, profissionalmente. Essa rejeição não vem do intelecto, mas é, com efeito, um sereno abandono do padrão dessa imoral moralidade. 

Portanto, a questão realmente é esta: Temos possibilidade de sair desse padrão? Foi o pensamento quem criou essa medonha desordem e angústia, e ele é que está impedindo tanto a religião como a vida religiosa. O pensamento se julga capaz de sair do padrão, mas, se o faz, isso será ainda um ato de pensamento, porque o pensamento não tem realidade e, por conseguinte, só pode criar outra ilusão. 

Ultrapassar tal padrão não é um ato do pensamento. Isso precisa ser compreendido claramente porque, de contrário, você se verá novamente encerrado na prisão do pensamento. O "você", afinal de contas, é um feixe de memórias, de tradição e do conhecimento acumulado em milhares de dias passados. Assim, só com a terminação do sofrimento — pois o sofrimento é resultado do pensamento — pode-se sair do mundo da guerra, do ódio e da violência. Esse ato de sair é a vida religiosa. Essa vida religiosa não tem crença nenhuma, porque não tem amanhã. 

"Você não está exigindo o impossível, senhor? Não está querendo um milagre? Como posso sair de tudo isso sem o pensamento? O pensamento é meu próprio ser!"

Exatamente! Esse "seu próprio Ser", que é pensamento, tem de acabar. Esse egocentrismo com todas as suas atividades tem de morrer, sem esforço, naturalmente. Só nessa morte se encontra o começo da vida religiosa.

Krishnamurti em, A OUTRA MARGEM DO CAMINHO

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O homem religioso não se interessa por reforma social

O que entendemos por um homem religioso? Por certo, o homem religioso é o que trabalha para libertar o indivíduo e a si próprio de todas as crueldades e sofrimentos da vida — o que significa que ele é livre de crenças. Esse homem não obedece nenhuma autoridade, não segue a ninguém, porque ele é a luz de si mesmo; e essa luz irradia do autoconhecimento, é a libertação que vem à existência quando o indivíduo compreende completamente a si mesmo. O homem religioso é aquele que é criador, não no sentido de pintar quadros ou escrever poesias, mas porque nele atua uma força de criação imorredoura, eterna. 

Ora, esse homem religioso que descobre sempre coisas novas, de momento a momento, esse homem irá se ocupar com reformas sociais? Ou permanecerá fora da sociedade, socorrendo o indivíduo que se debate nesta luta interminável? Certo, o homem religioso permanece fora da sociedade, porque para ele não existe autoridade. Ele não busca resultados e, por conseguinte, os resultados surgem sem que ele nada faça para consegui-los. Esse homem não se interessa por nenhuma reforma social. 

Note bem: A reforma social é necessária, mas há muita gente trabalhando pela reforma social. E qual é a razão dessa atividade? É por amor que a ela se entregam? Ou essa atividade, a que chamam reforma social, é um meio de essas pessoas se preencherem a si mesmas? Notar o mendigo na rua, ver a aterradora pobreza e a degradação existente nas aldeias, e sentir isso, ter amor, paixão, compaixão, pelo mendigo, pelo aldeão, isso não é o mesmo que nos preenchermos numa atividade de reforma social — mesmo quando exerçamos atividades dessa natureza. Mas quando a sua pessoa se torna importante, numa atividade social, isto não acontece porque você está se preenchendo com tal atividade? E quando isso acontece, você já não ama; e o amar, o ter compaixão, o ser sensível ao belo e ao feio, isso é muito mais importante do que nos preenchermos num certo trabalho ostensivo, a que chamamos reforma social. 

Assim, o homem religioso é que é o verdadeiro revolucionário, e não o que quer realizar uma revolução no sentido econômico. O homem religioso não reconhece nenhuma autoridade, não é ávido nem ambicioso, não está visando a resultados, não é político; por conseguinte só ele é capaz de realizar a reforma correta. Eis porque é importante que todos nós, não como grupos, mas como indivíduos, nos libertemos imediatamente das crenças e dogmas, da avidez e da ambição. Se assim proceder, verá como a mente se tornará cheia de vitalidade. E o homem é então um reformador num sentido completamente diferente, porque irá nos ajudar a libertar a mente, para descobrir a ser criadora. A mente que está ocupada não pode ser criadora. A mente que se ocupa em preencher a si mesma, nunca descobrirá o desconhecido. Só a mente que se acha completamente desocupada, pode descobrir e compreender o eterno, e essa mente produzirá sua ação peculiar, na sociedade.

Krishnamurti em, DA SOLIDÃO À PLENITUDE HUMANA

O homem só pode ser bom quando é livre

Nosso problema é... saber se o homem vive para o bem da sociedade ou se a sociedade existe para o bem-estar do homem. A religião e o governo existem para educar o homem, tornando-o livre para descobrir por si mesmo o que é verdadeiro, ensinando-o a ser bom, a ter visão do grandioso? Ou existem para tiranizar o homem, brutalizá-lo, liquidá-lo, só porque uns poucos têm o poder de destruir?... O que tem importância... é averiguar porque razão a sociedade compele o homem ao conformismo, e porque o indivíduo se submete a isso. Sem dúvida, só a mente livre é capaz de investigar, e não aquela que está amarrada a um livro, uma religião organizada, uma ideologia. Uma sociedade que condiciona a mente para adorar ao Estado, e uma sociedade que condiciona a mente para adorar a ideia chamada "Deus", são igualmente tirânicas. 

Mas, pode existir uma sociedade que ajude efetivamente o homem, o indivíduo, a ser bom, a não ser ávido, a ser livre da inveja, da ambição? É este naturalmente o nosso interesse. O homem só pode ser bom quando é livre — livre, não para fazer o que bem entende, mas para compreender o movimento total da vida. Para isso requer-se uma escola completamente diferente, uma educação completamente diferente; requerem-se pais e professores que compreendam tudo o que a liberdade implica. De outro modo, só teremos mais tirania, e não menos, porque o Estado só quer eficiência. Precisa-se de homens eficientes para se ter uma nação industrializada, precisa-se de homens eficientes para matar, lutar, destruir — e nisto se concentra toda a atenção dos governos atualmente existentes. E os governos se separam ainda mais dos indivíduos, pela ação das chamadas religiões. Nenhuma religião organizada ousa sacudir o jugo e dizer para o governo: "Você está errado". Ao contrário, abençoam os canhões e cruzadores de batalha. Durante a última guerra apareceu um livro intitulado "Deus foi meu co-piloto" de autoria de um homem que bombardeara cidades, assassinando milhões de pessoas. Naturalmente aqui em Madanapale, esta questão da guerra não lhes toca de perto. Mas não há dúvida de que a guerra é apenas uma expressão, uma manifestação ampliada de nossa vida de cada dia. Vivemos numa batalha sem tréguas com nós mesmos e com o nosso próximo, somos ambiciosos, queremos poder, mais prestígio, posição mais alta; e este mesmo espírito aquisitivo se manifesta no grupo e na nação. Queremos ser poderosos, para defender a nós mesmos ou para agredir a outros, assim por diante... 

Não importa, pois, o que você pensa ou o que eu penso a respeito do comunismo ou da democracia; o que importa é descobrir como se pode libertar a mente. Porque, só a mente livre é capaz de compreender a Verdade, conhecer Deus, e sem esta compreensão a vida significa muito pouco. É a compreensão da Verdade ou Deus — a real experiência dele, não a crença nele — que tem a máxima importância, principalmente nesta hora em que o mundo se encontra em tamanho caos e miséria.

Krishnamurti em, DA SOLIDÃO À PLENITUDE HUMANA

Qual é o processo mental que torna a crença necessária?

Pergunta: Se não acreditamos num Arquiteto do Universo, parece-me que a vida torna-se completamente sem significação. O que há de mau nesta crença?

Krishnamurti: Sem dúvida, por "Arquiteto do Universo", você está entendendo "Deus", só que está dando-lhe um nome diferente. Ora, o que é a crença? O que significa esta palavra — não o significado que se encontra no dicionário —, mas qual é o seu conteúdo psicológico? 

E qual é o processo mental que torna a crença necessária? O que lhe faz dizer "Creio em Deus" ou "Não creio em Deus"? Qual o impulso psicológico que impele a mente a aceitar ou rejeitar a crença em Deus, num "Arquiteto do Universo"? Enquanto não descobrirmos isso, o mero crer ou descrer significa pouquíssimo. 

É óbvio que, se desde a meninice ensinam-lhe a acreditar em Deus, você cresce acreditando, exatamente como outra criança que é ensinada a não acreditar, cresce desacreditando. Um é chamado crente e o outro ateu, mas os dois estão condicionados. Quando você acredita num "Arquiteto do Universo", o faz porque ensinaram-lhe a acreditar desde a infância e sua mente impregnou-se desta ideia; ou, ainda, você sente ser esta vida tão instável, tão fluída, que sua mente se apega a uma ideia de permanência e esta permanência você chama Deus, ou por outro nome qualquer, conferindo-lhe certos atributos. Isto não está nem certo e nem errado, pois representa o processo real da mente. Vendo-se ao redor de nós tanta miséria e tanto caos, tanta transitoriedade, tanta falta de paz interior e exterior, a mente cria e se apega a uma coisa atemporal, eterna, uma coisa perenemente bela, repleta de paz. Assim, pois, por causa da incerteza em que se vê, a mente cria a sua própria certeza. Mas a mente que acredita ou desacredita, que aceita ou rejeita, nunca descobrirá o que é Deus. Deus é para ser encontrado, descoberto, não se deve acreditar nele. Para descobri-lo, a mente tem de estar livre tanto da crença como da descrença. Positivamente, esse estado que chamamos "Deus", essa realidade atemporal, tem de ser algo totalmente novo, nunca imaginado, nunca dantes experimentado. E só uma mente livre pode descobri-lo, e não aquela que está amarrado a um dogma, uma crença. 

Afinal, se você observar, se pensar um pouco a este respeito, verá que a mente é resultado do tempo — sendo "tempo" memória, experiência, conhecimento. Isto é, a mente é resultado do conhecido, do passado, de muitos milhares de anos. Ora, com esta mente estamos procurando o Desconhecido, esta certa coisa que se pode chamar deus, a Verdade, ou como você preferir. Mas essa mente não pode encontrar o desconhecido, só pode pois "projetar" o conhecido, no futuro. Qualquer crença nutrida pela mente é resultado de seu próprio condicionamento. Toda fórmula ou conceito especulativo é resultado do conhecido. Todo movimento da mente para investigar o desconhecido, é totalmente inútil e vão, porque a mente só pode pensar em termos do conhecido. Quando compreende esse processo total e fica, portanto, livre do conhecido, a mente se torna muito serena, completamente tranquila; e só então pode existir o "desconhecido". Com efeito, isto é meditação; não a "projeção" do conhecido no futuro e a adoração desta projeção.

Krishnamurti em, DA SOLIDÃO À PLENITUDE HUMANA


sexta-feira, 11 de julho de 2014

A mente religiosa e a mente científica

Parece-me que neste nosso mundo atual, onde vemos tanta confusão, aflição e agitação, são necessárias a mente científica e a mente religiosa. Estes dois, sem dúvida, são os únicos estados mentais reais; pois não é real o estado da mente que crê, da mente condicionada, quer pelo dogma do cristianismo, do hinduísmo, quer por qualquer outra crença ou religião. Afinal, temos problemas imensos e a vida se tornou muito mais complexa. Exteriormente, talvez haja um maior sentimento de segurança, o sentimento de que talvez não tenhamos guerras atômicas no futuro, dado o terror que inspiram. Sente-se que, conquanto possa haver guerra em data remota, não será na Europa; e, assim, podemos sentir-nos mais seguros, física e emocionalmente.

Mas, parece-me, a mente que busca segurança se torna embotada, medíocre; e, em tais condições, ela é incapaz de resolver seus próprios problemas.

Assim, para vivermos neste mundo — com suas rotinas, seu tédio, a existência superficial da classe média, da classe superior ou da inferior — e resolvermos os nossos problemas, ultrapassá-los, penetrar profundamente em nós mesmos, só há dois caminhos: o científico ou o religioso. O “caminho” religioso inclui o científico, mas o científico não contém em si o religioso. Mas necessitamos do espírito científico, uma vez que este é capaz de examinar rigorosamente todas as causas da miséria humana; o espírito científico poderá promover a paz mundial, objetivamente — alimentar a humanidade, dar-lhe casas para morar, roupas etc. — não apenas aos ingleses ou aos americanos, mas a todo o mundo. Não se pode viver na prosperidade numa extremidade da terra, enquanto na outra extremidade existe degradação, doença, fome e esqualidez. Talvez a maioria de vós ignoreis isso, mas o deveis saber. Para se resolverem todos esses imensos problemas, perceber toda a estupidez do nacionalismo, dos conchavos políticos, das ambições, da avidez de poder, necessita-se do espírito científico. Mas, infelizmente, como se vê, o espírito científico está agora interessado em viagens à Lua ou mais além, em aumentar nossos confortos com geladeiras melhores, carros melhores, etc. Isto está certo, de modo geral, mas afigura-se-me um ponto de vista muito limitado.

Sabemos o que é “espírito científico”: espírito de investigação, nunca satisfeito com seus achados, sempre variável, nunca estático. Foi o espírito científico que criou o mundo industrial; mas esse mundo industrial, sem revolução interior, produz uma medíocre maneira de viver. Sem essa revolução interior, todas as glórias e belezas da chamada vida intelectual só podem tornar a mente mais embotada, mais contentada, satisfeita, segura. O progresso em certos sentidos é essencial, mas também destrói a liberdade. Não sei se já notastes que, quanto mais coisas tendes, tanto menos sois livres. E, por isso, os homens religiosos do Oriente têm dito: “Renunciemos às coisas materiais, pois não importam. Busquemos a outra coisa; mas eles não acharam também essa “outra coisa”. Sabemos, pois, mais ou menos, o que é espírito científico — o espírito que existe no laboratório. Não me refiro ao cientista como indivíduo; este é provavelmente igual a vós e a mim, entediado da existência de cada dia, avarento, ávido de poder, posição, prestígio.

Agora, muito mais difícil é averiguar o que é espírito religioso. Como proceder, quando se deseja descobrir algo verdadeiro? Queremos saber o que é espírito religioso — não esse estranho espírito que prevalece nas religiões organizadas, porém o genuíno espírito religioso. Como proceder?

Só se começa a descobrir o que é o verdadeiro espírito religioso por meio do pensar negativo, porquanto, para mim, o pensar negativo é o pensamento em sua forma mais elevada. Entendo por pensar negativo aquele que despreza, que rompe e destroça as coisas falsas construídas pelo homem para sua própria segurança, seu sossego interior; que destroça todas as defesas e o mecanismo de pensamento construtor dessas defesas. É preciso destroçar tudo isso, ultrapassá-lo, rapidamente, celeremente, para ver se algo existe além. E o ultrapassar dessas coisas falsas não é uma reação ao que existe. Certo, para descobrirmos o que é o espírito religioso e dele nos abeirarmos negativamente, precisamos ver no que cremos, e porque cremos, porque aceitamos todos os inumeráveis condicionamentos que as religiões organizadas do mundo inteiro impõem à mente humana. Por que credes em Deus? Por que não credes em Deus? Por que tendes tantos dogmas e crenças?

Direis, porventura, que se ultrapassarmos todas essas chamadas estruturas positivas atrás das quais a mente se abriga, ultrapassá-las sem desejar encontrar algo mais — nada mais restará senão desespero. Mas eu acho que temos de passar também pelo desespero. Só existe desespero quando há esperança — a esperança de nos pormos em segurança, permanentemente confortados, perpetuamente medíocres, perenemente felizes. Para a maioria de nós, o desespero é reação à esperança. Mas, para se descobrir o que é o espírito religioso, acho que essa investigação deve realizar-se sem nenhuma provação, nenhuma reação. Se vossa busca é apenas uma reação — porque desejais mais segurança interior — nesse caso vossa busca visa apenas a um conforto maior, seja numa crença, numa idéia, seja no conhecimento, na experiência. E a mim me parece que tal modo de pensar nascido da reação só pode produzir mais reações, e, por conseguinte, não oferece a libertação do processo de reação que impede o descobrimento. Não sei se está claro o que estou dizendo.

Deve haver uma maneira negativa de proceder, e isso significa que a mente necessita tornar-se cônscia do condicionamento imposto pela sociedade, em relação à moralidade; cônscia das inumeráveis sanções impostas pela religião; e cônscia, também, de como, rejeitando essas imposições exteriores, cultivamos certas resistências internas, crenças conscientes e inconscientes, baseadas na experiência, no conhecimento, e que se tornam fatores diretores.

Assim, para descobrir o que é o verdadeiro espírito religioso, a mente deve achar-se num estado de revolução, e este significa a destruição de todas as coisas falsas que lhe foram impostas, seja por pressão externa, seja por ela própria; pois a mente está sempre em busca da segurança.

Afigura-se-me, pois, que o espírito religioso encerra esse constante estado mental que nunca constrói para sua própria segurança. Por que se a mente constrói com essa ânsia de segurança, então ela fica vivendo atrás de seus próprios muros e, portanto, é incapaz de descobrir algo novo.

Por conseguinte, a morte, a destruição do “velho”, é necessária: destruição da tradição, libertação total do que foi, abandono das coisas acumuladas como memória através de séculos. Então, direis, por ventura: “Que mais resta? Tudo o que sou é constituído por todo esse conjunto de fatos, essa “história”, a experiência; se tudo isso desaparece, se apaga, que resta?” — Em primeiro lugar, pode-se apagar tudo isso? Podemos falar a esse respeito, mas é verdadeiramente possível apagá-lo? Eu digo que é possível — mas não por influência ou coerção, pois isso é insensatez, falta de maturidade. É possível, se o penetrarmos profundamente, afastando de nós toda autoridade. E esse “limpar da lousa” — que significa morrer todos os dias e de momento em momento, para as coisas acumuladas — requer abundante energia e profundo discernimento; e isso faz parte do espírito religioso.

Outra parte do espírito religioso é o “espírito-força”, que inclui a ternura e o amor. Estou tentando expressar-me por meio de palavras, mas tende a bondade de não vos contentardes com palavras, apenas. Eu disse que outra parte do espírito religioso é a força proveniente do amor. E com a palavra “força” quero referir-me a algo completamente diferente do impulso para ser poderoso, do desejo de dominação, controle; do poder que a abstinência confere; ou do poder de uma mente sagaz, cheia de ambição, avidez, inveja, ávida de perfeição. Este poder é maligno. O domínio de uma pessoa sobre outra, o poder do político, o poder de influenciar outros para pensarem de certa maneira, seja exercido pelos comunistas, pelas igrejas, seja pelos sacerdotes ou pela imprensa — este poder, para mim, é extremamente nocivo. Estou-me referindo a coisa muito diferente, tanto em grau como em qualidade, algo sem nenhuma relação com o poder dominador. Existe essa força, esse poder, uma coisa “exterior”, não produzida por nossa vontade ou desejo. Nesse poder reside aquela coisa extraordinária que é o amor; e este faz parte do espírito religioso.

O amor não é sensual; nenhuma relação tem com a emoção; não é reação ao medo; não é amor materno, amor conjugal etc.

Segui bem isso, por favor, penetrai-o, sem nada aceitar, nem rejeitar, pois estamos jornadeando juntos. Direis, talvez: “Um tal amor, um tal estado mental não baseado em lembrança, é impossível”. Mas eu acho que ele pode ser encontrado. Encontramo-lo por vias obscuras, ao investigarmos no seu todo o processo do pensamento, as peculiaridades da mente. E um poder existente por si só; é energia não causada. Difere inteiramente da energia gerada pelo “eu” em sua ânsia de alcançar as coisas que deseja. E aquela energia existe, mas só será encontrada pela mente livre, não vinculada ao tempo e ao espaço. Nasce aquela energia quando o pensamento — como experiência, conhecimento, como “ego”, centro — o “eu” — gerador de sua própria energia, volição e concomitantes pesares, aflições etc. — se dissolve. Dissipado esse centro, manifesta-se aquela energia, aquela força que é o amor.

E há, também, outra camada da mente religiosa que é movimento — movimento não dividido em exterior e interior. Tende a bondade de seguir isso por instantes. Conhecemos os movimentos exteriores, objetivos; e desse conhecimento resulta uma reação que chamamos movimento interior, um afastamento do exterior, renúncia ao exterior, ou, também, aceitação dele como inevitável, resistência a ele pelo cultivo de uma reação de “movimento interior”, com suas crenças, experiências etc. Existe o movimento para o exterior, o impulso para fora — ser ambicioso, ávido etc.; e quando esse movimento falha, nos voltamos para o interior. Não se busca a verdade quando a mente é feliz. Quando a mente se acha contentada, deleitada, tamanha é sua própria vitalidade que não precisa murmurar, sequer, o nome de Deus. Só quando nos sentimos infelizes, quando as coisas exteriores falharam, quando já não temos êxito, quando temos desgostos domésticos, quando há morte, conflito etc., só então nos voltamos para o interior, como costumam fazer os velhos. Nunca recorremos à religião quando somos jovens, porque então as nossas glândulas estão funcionando “a toda velocidade”. Encontramos satisfação no sexo, na posição, no prestígio, no dinheiro, na fama etc. Quando essas coisas começam a falhar-nos, só então nos voltamos para o interior; ou, se ainda somos jovens, nos tornamos beatniks (seita de “intelectualistas”). Tudo isso é reação: e revolução não é reação.

Ora, se se percebe com toda a clareza a verdade contida em tudo isso, ocorre então um movimento que é tanto exterior como interior; não há divisão. E um movimento: movimento que consiste em ver as coisas exteriores precisa, clara e objetivamente, tais como são; e esse mesmo movimento se verifica também interiormente, não como reação, porém como o movimento das marés, que é o fluxo e refluxo das mesmas águas. O movimento para fora significa ter os olhos, os sentidos, todo o nosso ser, abertos, vivos. E o movimento para dentro é o fechar dos olhos — emprego esta expressão como meio de comunicação; ninguém precisa ficar de olhos fechados. O movimento para dentro é a visão interior. Depois de compreender o exterior, os olhos se voltam para dentro; mas não como reação. E a visão interior, a compreensão interior significa quietude, tranqüilidade, completas; porque nada mais há para buscar, para compreender.

Não gosto de empregar a palavra “interior”, mas espero tenha mos entendido. Esse estado interior é que é criação. Ele nada tem em comum com o poder humano de inventar, de produzir coisas, etc.

É o estado de criação. Esse estado de criação só se manifesta quando a mente compreendeu a destruição, a morte. E só quando a mente vive esse estado de energia, que é amor, só então há criação.

Agora, a parte nunca é o todo. Temos descrito as partes; mas os raios de uma roda não constituem a roda, embora a roda contenha os raios. Não podemos alcançar o todo por meio de uma parte. O todo só pode ser compreendido ao perceber-se tudo o que estivemos dizendo sobre as várias partes da mente religiosa. Ao terdes esse percebimento total, então, nesse sentimento total está incluída a morte, a destruição, o sentimento de força pelo amor, e a criação. E isso é a mente religiosa. Mas para alcançar esse estado religioso, a mente deve ser precisa, pensar com clareza, logicamente, nunca aceitando as coisas externas ou as coisas internas que para si mesma criou, como conhecimento, experiência, opinião, etc.

Vemos, pois, que a mente religiosa encerra em si a mente científica; mas a mente científica não contém a mente religiosa. O mundo vem tentando consorciar as duas, mas isso é impossível; assim sendo, tratarão de condicionar o homem para aceitar a separação. Mas esta mos falando de coisa totalmente diferente. Estamos tentando uma jornada de descobrimento, e isso significa que tendes de descobrir. Aceitar o que se está dizendo não tem valor algum, pois, assim, estais de volta à velha rotina, sois escravos da propaganda, da influência e tudo o mais.

Mas, se empreendestes também a jornada e sois capazes de descobrir, vereis então que podeis viver neste mundo; então, as agitações deste mundo têm significação. Porque, neste conteúdo total, neste sentimento total, há ordem e desordem. Não é assim? É preciso destruir, para criar. Mas não é a destruição à maneira dos comunistas. A desordem, se podemos empregar tal palavra, existente na mente religiosa, não é o contrário da ordem. Sabeis como gostamos da ordem. Quanto mais burgueses somos, quanto mais limitados e medíocres, tanto mais amamos a ordem. A sociedade precisa de ordem; quanto mais corrupta se torna, tanto mais deseja ordem. E o que querem os comunistas: um mundo em perfeita ordem. E nós outros desejamos a mesma coisa: temos medo à desordem. Compreendei, por favor, que não estou advogando um mundo em desordem; não estou absolutamente empregando a palavra “desordem” em sentido reacionário. A criação é desordem; mas essa desordem, sendo criadora, contém a ordem. Isto é muito difícil de transmitir. Percebeis?

A mente religiosa, pois, não é escrava do tempo. Onde existe o tempo — ontem, com todas as suas lembranças, movendo-se através de hoje e criando, assim, o futuro e condicionando a mente — não existe aquela desordem criadora. A mente religiosa, portanto, é uma mente que não tem futuro, não tem passado, e tampouco não está vivendo no presente, compreendido como oposto de ontem e de amanhã, porquanto nesta mente religiosa não está contido o tempo. Não sei se estais entendendo.

A mente, pois, pode alcançar aquele estado religioso. Estou empregando a palavra “religioso” com um novo sentido, indicando algo não relacionado com as religiões do mundo, todas elas mortas, moribundas, decadentes. Assim, a mente religiosa é aquela que só pode “viver com a morte”, com a extraordinária e poderosa energia do amor. Não traduzais isto. Não façais perguntas sobre o “amar um” ou “amar todos”; isto é infantil. Só a mente religiosa pode voltar-se para dentro; e esse “voltar-se para dentro” não está em relação com o tempo e o espaço. É ilimitado, infinito, não pode ser medido por uma mente aprisionada no tempo. E só a mente religiosa resolverá os nossos problemas, porque ela não tem problemas. E só a mente que não tem problemas, uma mente realmente religiosa, pode resolver todos os problemas. Essa mente, por conseguinte, está em relação íntima com a sociedade; mas a sociedade não está em relação com ela.

Assim, no sentido da palavra “religioso”, é necessária uma revolução em cada um de nós — revolução total e não parcial. Toda reação é parcial; e a revolução a que nos referimos não é parcial e, sim, uma coisa total. E só essa mente pode ter intimidade com a Verdade. Só essa mente pode ter “amizade” com Deus — ou o nome que preferirdes. Só essa mente pode participar da Realidade.

Krishnamurti – Do livro: O PASSO DECISIVO – Ed. Cultrix
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill