Desejo mostrar que embora a
individualidade, o ego, tenha que se dissolver e desaparecer, permaneceu uma
continuidade dessa essência eterna que é Vida. Embora o corpo, sentimentos específicos,
pensamentos limitados, devam consumir-se, podeis, contudo, realizar essa Vida
que não tem divisão, nem distinção entre “teu” e “meu”, a qual é a completude.
A individualidade é esforço. O esforço cria a eu-consciência. Tornai-vos
acautelados pelo esforço, apercebidos de vós mesmos como executores do esforço.
Pelo esforço, pela seleção, pela luta, sois autoconscientes e esse esforço, vos
transmite a impressão de viver. A luta entre os opostos vos dá o sentimento de
que estais despertos, vivos, cheios de energia e criais a ilusão da
individualidade, da separatividade. Na individualidade incluo a personalidade,
particularidade, ego, eu-consciência. Só há esforço enquanto houver separatividade.
Dir-me-eis: “Se eliminardes o esforço, o que é que fica? Removei os opostos e
onde fico? Tirais-me a eu-consciência e o que resta? Se o meu corpo, se as
minhas emoções, se meus pensamentos desaparecem, o que restará?”
Tal pergunta, se me é permitido
dizer, provém da ideia de que o que é transitório pode tornar-se eterno. Isto
é, quereis que o vosso corpo, a vossa mente, os vossos pensamentos, sejam
eternos.
Ora, digo que a compreensão do
Eterno reside no transitório. O ego tem que desaparecer e, no processo da
dissolução, a Verdade, a completude, é realizada. A realidade, a Verdade, se
encontra através desse portal da eu-consciência; é livre de todas as
qualidades, dos opostos, sendo ainda, apesar disso, a resultante da compreensão
das qualidades e dos opostos. No vos libertardes dos opostos, há harmonia, e
dessa harmonia provém um novo entendimento que é o começo do apercebimento, o
qual não é eu-consciência. O apercebimento em si, nada tem personalidade; ao
passo que a eu-consciência é o resumo da personalidade. Pela compreensão dos
opostos e com o libertar-vos deles a realização da Vida vem ao Ser.
A Vida é a harmonia da mente e do
coração. Pensamento, vontade, desejo, opinião, paixão, sensação, sentimento,
gosto e desgosto, nada mais são que o começo da consciência. Quando há
harmonia, a mente não está mais aprisionada na opinião, porque as opiniões
pertencem à eu-consciência e toda
eu-consciência é limitada. A ideia, a vontade e a imaginação pertencem à
individualidade. Estou descrevendo a Verdade Ultérrima que só pode ser realizada por meio da vossa plena eu-consciência e pela
libertação dessa eu-consciência. Não penseis que tendes livres a vontade, a
ideia, a imaginação, enquanto estiverdes nos grilhões da eu-consciência.
A mente, ainda que circunscrita à
personalidade, deve continuamente procurar tornar-se livre de esforço,
libertando-se da limitação. A Vida é inteligência, isto é, o resumo de tudo que
é essencial. É a mente que corrompe o amor, e é pelo tornar a mente perfeita —
por meio da inteligência —, que libertais o amor. Pois que o amor não tem
distinção entre “tu” e “eu”, é completo em si mesmo e não depende para sua
expressão, para seu crescimento, para sua felicidade, de outrem. É
simultaneamente seu próprio sujeito e objeto. Está livre de repulsão e atração.
Esse amor só pode ser realizado não pela supressão da emoção, mas somente pelo
entendimento. Pela intensidade desse contínuo entendimento, a personalidade
desaparece. Só pela intensidade podeis perder as vossas limitações, não pela
supressão. Quanto mais fortes as vossas emoções, tanto mais rapidamente desaparece
todo o sentimento de egoísmo e de eu-consciência, cedendo lugar ao amor. Esse
amor não tem sensação nem emotividade; a sensação é a atração e a repulsão, a
emotividade é o estímulo vindo do exterior. Esse amor é completo, é a sua
própria eternidade. Quando a mente é consumida pelo coração, há harmonia;
somente então vem a plena realização da Vida. Essa Vida é felicidade; não
felicidade como coisa oposta à tristeza, não a felicidade da emoção da sua
altitude, mas a felicidade da completude que não se distingue entre “tu” e “eu”,
que se mantém por si própria, que está além do tempo, do nascimento e da morte.
É essa a imperturbável tranquilidade interna que está sempre se renovando a si
própria. Essa Vida é ação pura, livre de toda eu-consciência.
Por meio da plena eu-consciência
que é o verdadeiro desprendimento, no êxtase da solidão, o homem realiza a
Realidade Ultérrima. Ainda que dela alcance um vislumbre só pode ser permanente
quando existir a inteira libertação de toda eu-consciência, a total dissolução
da individualidade que é a plenitude da Vida.
O esforço é a eu-consciência e, enquanto
há esforço, a ação é limitada. Existe ação que não despertou para a
eu-consciência, que nasce do não-essencial, da ignorância; e existe ação
sugerida por uma mistura do essencial e do não essencial, do entendimento da
ignorância. Esta última prende; é o começo da eu-consciência. A seguir vem a
ação pura, o essencial, liberto de toda eu-consciência, de toda ignorância. Tal
ação é entendimento da própria Vida e por isso não tem qualidade que a
aprisione, é isenta de karma.
Considerai a ação nascida da
ignorância. Não tem conhecimento dos opostos e refere-se somente ao não
essencial. O homem apanhado por essa ação, sofre dentro do círculo do cativeiro
sem saber o meio de libertar-se. Isto é, rodeia-se com o não-essencial, e posto
que sofre nesse círculo de ignorância e de coisas não essenciais, não alimenta
desejo pela liberdade.
Tomai como exemplo o homem que
acumula riquezas. Durante o processo de acumulo ele sofre, é cruel, busca o
gozo do que não é essencial. Continuamente armazenando riquezas, a elas se
apega sem aprender qual o verdadeiro valor do dinheiro, o que é o
desprendimento dele. Ainda que ativo no acumulo de riqueza, esta ação nada mais
faz do que encaminhá-lo para a ignorância. Não aprendeu a distinguir o
essencial do não essencial. Portanto, sua ação o escraviza à ignorância.
Um outro exemplo, é a adoração. O
culto, quando se dirige a um outro ser, nada mais é do que a ação conducente ao
não essencial, à ignorância. Ao ter em vista a outrem, — e é isto o culto, —
confiais em outrem. O olhar para o outrem em busca de salvação e de esperança
nada mais faz do que encaminhar para a ignorância, pois que o indivíduo vai em
busca do não essencial, vivendo ainda sem discernir a ação.
Novamente, o sentimento de posse,
não com vistas a dinheiro, porém o desejo de possuir a outrem. Por esse desejo,
sofreis, sois zelosos, cruéis e insensatos; e, se não compreenderdes o amor, o
qual é desapego sem indiferença, somente ireis em direção da ação que conduz à
ignorância e estareis, ainda, prisioneiros do não essencial.
A maioria das pessoas acham-se
colhidas nesta tristeza sem lhe compreender a causa. Rodeiam-se do não
essencial, criam um muro de irrealidades que os limita e sofrem encerrados
neste cubículo. Posto que imersos em grande tristeza não estão se libertando e
ficam sempre colhidos pela escravização interior sem o êxtase da libertação. A
ação, porém, não é em si mesma, integrativa, pois que nasce da ignorância
inconsciente. A ação integra somente quando existem de mistura a ignorância e a
compreensão, a confusão do essencial e do não essencial. É este o despertar da
eu-consciência, quando há discernimento entre o que é essencial e o que não é
essencial, quando há esforço, quando há seleção. O despertar da eu-consciência
é a compreensão da diferença existente entre o essencial e o não essencial,
entre os verdadeiros e os falsos valores. A ação torna-se então cativeiro,
porém, somente por meio desta ação é que vos podereis libertar. Isto não é tão
difícil quanto parece. Tão depressa começais a tentar descobrir os verdadeiros
valores, dá-se o esforço da seleção, que causa sofrimento. Quando o desejo está
escravizado pelo temor e pelo conforto, o esforço de discernir cria a ilusão. E
por meio deste esforço vos aproximais da plena eu-consciência.
A maioria das pessoas acha-se
presa entre estes dois elementos — a ação que conduz à ignorância e a ação na
qual existe a confusão entre o essencial e o não essencial. A ação proveniente
da ignorância é aquela na qual não há discernimento de qualquer espécie que
seja, na qual há tristeza, porém não o entendimento da causa respectiva. Há
depois a ação que inclui tanto o essencial como o não essencial. Por outras
palavras: enquanto não possuirdes entendimento real de vossa ação, não haverá
dissipação da ignorância. Tornando-vos apercebidos da diferença existente entre
o essencial e o não essencial chegareis a conhecer a eu-consciência. Enquanto
houver esforço e seleção, haverá tristeza; e é preciso que haja tristeza enquanto o homem estiver empenhado na escolha entre o
essencial e o não essencial. Contemplai a vós próprios. Se possuirdes desejos
secretos que não tenhais compreendido e se vossa ação nascer desses desejos,
então haveis de verificar que, em lugar de vos libertardes da ação, ela vos
ligará cada vez mais às garras da tristeza. Tornando-vos, porém, agudamente
conscientes, isto é, examinando-vos, tornando-vos recolhidos, apercebidos
interiormente, e considerados, começareis a selecionar, a discernir o essencial
do não essencial. É essa escolha a descoberta continua da Verdade. No
verdadeiro discernimento está a liberdade, a realização do Eterno, o êxtase que
a si mesmo se renova. A felicidade consiste no indivíduo se basear no que é
essencial.
A Verdade é sua própria
eternidade; nela não há divisão; nela não há opostos, posto que seja ela a resultante
de todos os opostos. Essa completude que sobrepuja o tempo manifesta-se a todo
momento e em tudo. Tal Realidade, somente pode ser percebida por meio da
individualidade, ainda mesmo que a individualidade tenha que se dissolver.
Toda ação deve conduzir a esta
Realidade Ultérrima, pois que sem a completude que lhe é inerente, haverá
tristeza. A ação nascida da eu-consciência é uma limitação, cativa, e,
portanto, não conduz à Felicidade; representa apenas um esforço incessante.
Sereis em tais casos, semelhantes a um esquilo que volteia incessantemente
dentro da gaiola. Antes que vos seja dado compreender esta pura ação, que é a
própria Vida, toda a ação tem que se libertar da eu-consciência. O aperceber-se
desta pura ação que é espontânea demanda a pesquisa de todas as vossas ações
para saber se se acham no cativeiro da ignorância ou se estão colhidas entre o
essencial e o não essencial.
Krishnamurti, Ommen, reunião de verão, 1931