Talvez exista na mente de algumas
pessoas a convicção de haver eu estado tratando especialmente de metafisica e
de filosofia. Não me preocupo com metafisica. Todos os problemas da vida virão
a ser respondidos quando houverdes realizado a Verdade em sua completude dentro
de vós mesmos. Não encareis o que digo do ponto de vista da filosofia ou da
metafisica, porém, sim, antes do ponto de vista da conduta de todos os dias, a
vida, a alegria e a aflição.
Todos vos preocupais com o
entendimento da tristeza que vos empolga. Por meio da busca da compreensão,
descobrireis um modo de vida que vos liberte desse conflito que cria em vós
tristeza e ilusão. A causa fundamental da tristeza é a ação — a ação é
pensamento e emoção — que brota da consciência do eu, do ego. Se as obras,
pensamentos e sentimentos nascerem do egoísmo, do ego, então, por grandes, por
generosas ou nobres que sejam, ligam sempre e, nessa limitação, nesse
cativeiro, haverá tristeza. A ação torna-se cativeiro quando um indivíduo é
propelido a ela pela cobiça, pelos desejos egoístas, pelo ódio, pelo desprazer,
pela crueldade, pela inveja, pelas qualidades de toda a espécie. É essencial o
compreender isto. Vosso incessante esforço para vos ajustardes entre os opostos
é a causa do conflito, porém a libertação é a liberdade dos opostos.
A luta e a aflição vêm à
existência quando o ego, pela emoção, pelo pensamento, cria a divisão dos
opostos. A completude existe em todos, posto que esteja colida pela vossa
eu-consciência, por vós mesmos criada. Na libertação da eu-consciência está a
realização da completude. Enquanto a eu-consciência, isto é, o ego, existir, tem que
haver esforço e por conseguinte, tristeza.
Quando estiverdes libertos dos
opostos, dos extremos, a harmonia virá à existência. Isto é consumação da
sabedoria; porém não podereis realizar isto se houver um único pensamento do
“eu”, do “meu” e do “teu”, isto é, do ego que é separatividade. Na Realidade,
na Verdade, na Vida, não há nem separação nem unidade.
A Verdade é completa; em todos os
opostos cessa de existir. A completude não tem aspectos, nem divisões, nem
opostos. É essa completude que eu denomino perfeição e que existe a todos os
instantes em todas as coisas, em todo o ser humano; porém, em virtude de sua
eu-consciência o homem cria divisões entre a Realidade e si próprio. O ego
pertence ao tempo, está sempre buscando orientação, seja pelos opostos,
adquirindo qualidade, criando separatividade, conflitos, esforços.
Haveis de perguntar: “Que
acontecerá quando minha eu-consciência ficar liberta? O que é, então, que
sente, o que é que, então é consciente?” Quando estiverdes livres da
eu-consciência, isto é, quando tiverdes passado pela chama da eu-consciência,
essa eu-consciência cederá lugar à realização da Verdade, na qual não mais
existe perceptor e percebido, ator e ação, na qual não há dualidade.
Entendereis isto quando estiverdes libertos da eu-consciência. Portanto, vosso
imediato esforço deve orientar-se no sentido desta libertação.
Enquanto o homem estiver preso na
eu-consciência, na ilusão da separação haverá transitoriedade, ele será escravo
do tempo e, portanto, da tristeza. Por consequência, deveis vos tornar
conscientes de vossa tristeza, isto é, apercebidos de sua causa; não a tristeza
que provém da imaginação, porém a tristeza do conflito da ação na vida diária.
Quando estiverdes plenamente conscientes dessa tristeza, estareis começando a
vos libertar a vós próprios, estareis
começando a ficar sãos e normais.
Pelo fato de serdes
eu-conscientes, desejais os opostos. Se fordes ricos, temereis perder vosso
dinheiro. Pensais encontrar na riqueza a vossa felicidade, o conforto, a
consolação e por isso vos apegais aos bens terrenos. Se fordes pobres, quereis
ser ricos, pois que a pobreza priva de muitas coisas — da educação, do conforto
físico, dos prazeres e de tudo quanto a riqueza pode dar. Os opostos estão
sempre em vossa mente e, portanto, ficais cada vez mais aprisionados na
eu-consciência. Esta eu-consciência cria continuamente distinções, divisões de
classe, de posição e de poder. Ficais presos pela ilusão e por essa ilusão
buscais os opostos e, assim, criais ao redor de vós um mundo caótico. O ponto
não é ser rico ou ser pobre, porém sim o estar completamente desprendido tanto
da pobreza como da riqueza. O estar plenamente desprendido dos opostos produz a
verdadeira harmonia: então não mais evitareis a pobreza nem tampouco evitareis
ou solicitareis a riqueza.
Há sempre no homem a completude.
Esta completude ultrapassa o tempo, a duração; dela nos aproximamos por uma
direção seja ela qual for. Pelo fato de o homem estar preso na ilusão dos
opostos, há o positivo e o negativo. Ele imagina que por não ser completo é que
não pode realizar a completude a não ser por meio da experiência dos opostos. A paixão existirá
enquanto o homem e a mulher estiverem presos na tristeza da incompletude.
Tenho visto gente ao redor de mim aprisionados pela paixão, nos opostos. Eu
desejei realizar a completude, isto é, quis libertar-me dos opostos, quis
libertar minha eu-consciência. Verifiquei que em mim existiam tanto o positivo
como o negativo; que, porém, enquanto dependesse de um oposto para minha
felicidade, não poderia haver harmonia e a realização da completude. Porque se
casam as pessoas? Buscam-se pelo matrimônio, vencer o isolamento, vencer a incompletude.
Uma força externa os propele à completude, isto é, a libertarem-se da
eu-consciência. Essa força os propele ao ajustamento, à harmonia.
Por favor, não penseis do que eu
digo, que entendo ser o casamento caminho fácil, ou um caminho que em absoluto
não conduz à completude. Não é preciso, porém, passar pela experiência do
casamento para realizar a completude. Pode-se realiza-la sem esse incidente,
mas tal, exige grande esforço e concentração, grande determinação e coragem.
Não digo que seja isto coisa superior ao casamento, pois que a completude pode
ser realizada em todas e quaisquer circunstâncias desde que no homem exista
intensidade de desejo por essa completude, que é a libertação da
eu-consciência. O essencial para a realização da Verdade não são as
circunstâncias externas, os sistemas, os caminhos, os métodos, porém, sim, o
intenso desejo o qual, por si mesmo, cria a verdadeira inteligência para a
compreensão.
Tomais o gosto e o desgosto como
exemplo. O ser humano é dominado pelos seus gostos e desgostos. Enquanto
existir eu-consciência tem que haver estes opostos. Quando a eu-consciência se
libertar, então há o amor que é livre de limitações, de peculiaridades, de
particularidades. Isto não implica a vacuidade da indiferença, pois que o amor,
sendo completo em si mesmo, não admite distinção de gosto e desgosto. Tomai
também o poder. O homem, pelo fato de estar limitado pela eu-consciência, fica
preso na ilusão do poder e da humildade. O homem, em sua fraqueza, busca a
força e debate-se na ilusão desses opostos. Nem pela humildade e fraqueza, nem
tampouco pelo poder realizará ele a completude.
Repito, analisai o medo e o
conforto. O temor exige o conforto mental, emocional e físico, e exige a
salvação por intermédio de outrem, isto é, o auxílio exterior.
Enquanto o homem estiver colhido
pela rede da sua eu-consciência, será um joguete de opostos e, portanto,
sofrerá. O sofrimento é devido à natureza transitória de todos os opostos, de
sua incompletude, de sua incerteza. Enquanto existir essa distinção causada
pelos opostos, existirá a escravidão do tempo e, portanto, a incompletude. Para
realizardes esta completude que existe em tudo, tendes que possuir essa
quietação interna, essa contemplação sem esforço, que a si própria está se
renovando. Não é isto uma condição estagnante. A primeira coisa essencial para
a compreensão desta Realidade é a de vos tornardes normais. A maioria dentre
vós é composta de anormais, de insanos. O que eu chamo ser normal é conhecer a
si próprio mediante a eu-consciência, é ser destemido, estar liberto de
enganos, de anseios, de cobiças; o conhecer-se como se é, não como se pretende
ser, não como se espera ser ou como já se foi no passado. Tendes que por
completo vos libertar do passado e do futuro para vos tornardes normais.
Precisais ser normais, não vos é
permitido ter qualquer particular idiossincrasia ou alimentar falsas
esperanças. Para mim, tais esperanças constituem um embaraço pois que vos
conduzem a evitar o presente. Para mim, o presente é o conjunto do tempo. É agora que projetais vossa sombra; é agora que sofreis; é portanto agora, que podeis vos libertar da
tristeza. Por consequência, deveis vos tornar conscientes do presente, o que
corresponde a vos tornardes normais e não incidir em indulgências no que
respeita a certas esperanças no futuro, a sonhos agradáveis, filhos da
imaginação. Isto, porém, exige grande determinação e o desejo de ser completo no presente.
Assim, o vos tornardes cônscios daquilo
que sois no presente é o primeiro refúgio, a primeira pedra alicerce dessa
permanência que é a realização da completude. O vos conhecerdes a vós próprios
com todas as vossas fraquezas, com todas as vossas dificuldades, com todas as
vossas paixões, com todas as cossas invejas, com todas as vossas crueldades, eis o primeiro passo. Tristeza haverá
enquanto houver eu-consciência e somente na realização da completude reside a
felicidade. Pelo fato de desejardes compreender essa completude, tornai-vos-eis
normais e a vós próprios disciplinareis com a verdadeira disciplina.
Krishnamurti, verão de 1931