Ansiamos pela continuação de nós
próprios, após a morte, ou então deseja-se o aniquilamento. Eu, porém, mantenho
que para a realização da completude, a ânsia pela continuidade ou o desejo de
aniquilamento não têm significação no que se refere a busca da Verdade. A
individualidade tem que forçosamente murcha-se como murcha uma flor e é em
virtude do temor da morte, que vos apegais a personalidade, ao vosso ego. Para
vós, a morte é, ou aniquilamento, ou a continuidade em outro plano. E por
desejardes continuar com vossa eu-consciência, pensais que é necessário
adquirir qualidades, virtudes, poderes. Há dois opostos em vossa mente: a morte
como aniquilamento total, da qual alguns dentre vós gostariam e a continuidade
do ego, do indivíduo, através do tempo, coisa que ainda outros gostariam.
Tendes portanto, dois opostos, a
continuidade e o aniquilamento. Agora, quero demonstrar-vos que nenhuma destas
coisas é verdadeira para a realização da completude, e essa completude, a
Realidade, esse êxtase indizível, esse vir, a ser isento de tempo que é como
nada e no entanto é tudo, não reside em nenhum dos opostos. A realização dessa
completude, que está em toda a coisa, a todo o instante, proporciona a
libertação do nascer e do morrer. Portanto, não tomeis o que vos vou dizer esta
manhã sob o ponto de vista dos opostos — do nada, do aniquilamento, ou, como
sendo tudo, da continuidade. Na persecução dos opostos, sejam eles quais forem,
não chegais à plena realização da completude. Se me é dado sugeri-lo, libertai
a vossa mente da ideia, seja da reencarnação, da continuidade ou do
aniquilamento.
A causa e o objeto do sofrimento
são o “eu”; é o “eu” que sofre, é a consciência da separação que causa o
sofrimento e esta consciência da separação é ela própria, o objeto do
sofrimento. É este o início do conhecimento, do meu ponto de vista e este
sofrimento continuará a existir, enquanto houver a consciência do “eu”, por
aperfeiçoado, por glorificado, por expandido que seja. A causa e o objeto de vosso sofrimento são a
autoconsciência de vós próprios como ego, como personalidade, como
individualidade. Sirvo-me das palavras ego, personalidade,
individualidade, eu-consciência, como sendo uma só.
A partir do momento que alcanceis
a compreensão deste principio fundamental: o de que o “eu”, por aperfeiçoado,
por expandido que esteja, continua a ser causa e paciente da tristeza,
encontrareis a harmonia da vida; ao passo que, sem este conhecimento, há
completo desvio e confusão. Enquanto existir o “eu” há corrupção, há confusão e
tristeza. Pela compreensão deste e não mantendo-o é como o homem pode chegar à
realização dessa Realidade última que é a completude. Não por meio da
destruição das emoções, não pela irreflexão, mas, pelo entendimento, eis como
podereis chegar àquela plena realização, na qual não existe morte. É um
renascer, um constante renovar, uma primavera eterna e não o renascimento que
parece nascer e morrer.
Para podermos compreender a causa
e o objeto do sofrimento, averiguemos o que é o “eu”. Este meu corpo tem suas
sensações, seu ouvido, sua visão, seu olfato, seu paladar e seu sentir. A este
agrupamento denominamos sensação. Depois vem a percepção, o poder de criar
imagens, a imaginação. Vem a seguir a mente que pensa, e vem a consciência.
Faço divisão destas coisas por conveniência, não para criar um novo sistema. Todas
elas: corpo, sensações, percepção, pensamento, consciência, chegam à criação do
“eu”. Não é o “eu” quem os cria, não é o “eu” que pensa, que sente, que
percebe, que é consciente. O “eu” inicia o seu inquirir, separar, conservar e
mediante este colher e reter, a eu-consciência é criada. Portanto, toda
eu-consciência é aquisição.
O “eu” não existe por si mesmo,
existe somente em virtude da sensação. Para mim não há “eu”; há, a apenas,
sensação, corpo, percepção, pensamento, consciência, que criam o “eu”; e por
ter de viver na separação, este “eu” necessita adquirir, possuir. Portanto, a
consciência, este “eu”, precisa reter, empolgar, adquirir e, como oposição a
isto, a morte afigura-se o aniquilamento. Ora, este “eu” que adquire, que retém,
supõem que, pelo acumulo de coisas, alcança a felicidade, a completude. Por
meio deste desejo de aquisição firma ele a ideia de continuidade e a do temor
do aniquilamento. Portanto, o “eu” é criado pela mente, o “eu” não existe por
si mesmo. Para seu bem estar, para manutenção de sua separatividade, exige ele
a padronização do pensamento, com tudo que lhe é implícito e evita todas as
mudanças. Vem a seguir a padronização moral, as leis fabricadas para opor empecilhos
ao “eu”, para impedi-lo de se tornar demasiado cobiçoso na aquisição, e é daí
que surge o medo, o medo desse pensamento independente que leva o homem a se
tornar lei para si próprio.
Naturalmente, de tudo isto,
provem a ênfase da individualidade, por coloca-la em lugar errôneo; isto é, imaginais que, pelo fato de o indivíduo estar separado e a característica
da individualidade ser aquisição, tendes que fortificar essa qualidade de
aquisição pelo trabalho. Imaginais que por meio do trabalho alcançará ele cada
vez maior soma de coisas para si e se tornará mais rico em qualidade, amizades e
objetos. É dada ênfase ao lucro do indivíduo por meio do trabalho. O trabalho
deve ser coletivo, não individualista. Deve dar-se o plano do trabalho cooperativo
para todos e não para um indivíduo somente. Devemos arquitetar planos em
conjunto para toda a humanidade e nisto não deve existir separação de países,
nacionalidade e povos.
Por outro lado, vê-se que o
indivíduo necessita libertar-se por meio de seu próprio esforço, do seu “eu”
que é autoconsciência. Para isto, não pode haver autoridade — posto que a haja
no trabalho. A autoridade deve achar-se em espera reta e não em errônea como se
acha no presente. Possuis uma autoridade espiritual, isto é, acompanhais a alguém,
um salvador, um guru. Não pode haver autoridade na direção da liberdade de
consciência, pois que a Verdade é pura percepção individual e nesta percepção
precisais tornar-vos lei para vós próprios e não podeis seguir a outrem.
Pela falsa ênfase que é dada à
individualidade, vem a existência a ideia, seja do aniquilamento, seja da
continuidade. A mente está a todo o instante preocupada com o “eu”, sobre se o “eu”
existirá para sempre, se o “eu” tem posses bastantes, bastante poder, glória,
conforto — a todo o instante agarrando, adquirindo, crescendo, e esta espécie
de crescimento acha-se inteiramente baseada na sensação. O “eu” existe naquela
consciência que depende da sensação, e por isso a mente ocupa-se com todos esses
anseios; e imaginais que quanto mais adquirirdes, mais felizes sereis.
Examinais vossos sistemas de vida e verificareis que se acham baseados nisto.
Enquanto estiverdes colhidos por essas divisões do “vosso” e do “meu” haverá muitas
maneiras de vos enganardes a vós mesmos. Quando, porém, a mente libertar-se do “eu”,
poderá ela começar a se renovar por si mesma, a se recriar a si própria.
Repito que o começo do
conhecimento consiste em saber que a causa e o objeto do sofrimento são o “eu”.
Quando não mais encarardes a vida a partir do ponto de
vista do “eu”, não mais haverá opostos, nem aquisições, nem perdas, nem
destruição, nem construção, nem continuação, nem aniquilamento, nem posse, nem
renúncia, nem apego, nem desprendimento.
A mente deve ser tornada livre,
porém o medo de libertar-se a eu-consciência do “eu” não é fazer a mente esquecer
do “eu”, interessando-a por qualquer outra coisa — é então que começais a fazer
a meditação, a ter autoridades, trabalhos, serviços. Não quer isto dizer que
não devais servir; quando, porém, vossa mente estiver liberta da eu-consciência,
servireis e auxiliareis por maneira natural, com graça e eficiência.
O verdadeiro entendimento é a liberdade
da eu-consciência. Não penseis que haveis de chegar a
poder realizar a liberdade última da eu-consciência, sem primeiro haver passado
através da chama da eu-consciência. É por meio do sofrimento e pela dor,
pelo prazer, tornar-se responsável perante si mesmo, que o indivíduo compreende
a Realidade última que é a liberdade da consciência, que é a liberdade da
responsabilidade. Então haverá lugar o apagamento absolto do “eu”, como
indivíduo; ficará somente a completude, e essa completude é sempre existente, permanente,
não no tempo, mas por si mesma. Precisais libertar a mente de todo o apego. Não
podeis liberta-la buscando o refúgio no oposto. Em vossa pesquisa para serdes
completos, o desapego vem naturalmente, não em vossa luta artificial contra o
apego. Desapego não é indiferença. É nada mais que o início do conhecimento da autoconsciência.
É o “eu” que divide a vida. A
mente, em si própria, é consciência, em sua separatividade, divide a vida. Não
podeis matar o sentimento, afim de libertar a mente. Se estiverdes em busca da
completude — não a completude que se opõem à incompletude, porém a completude
que é, por si, sua própria eternidade — então sobreviverá a cessação dos
opostos. A mente, não mais estará ocupada com o tempo, encarado este como
progresso em direção à Realidade, em direção à completude.
Quando a mente estiver liberta de
todo sentimento de atingimento, de progresso, de opostos, ou de sensações,
então dar-se-á o começo da verdadeira solidão. Não a solidão que se opõem à
multiplicidade; a verdadeira solidão não
conhece isolamento. Nessa solidão, surge a tranquilidade. Posto que ainda
reflita, ainda examine, ainda escolha, haverá apesar disso, harmonia. A mente
tem de ser veloz como a água que corre e que, portanto, não pode estagnar-se.
Quando a mente se achar assim, liberta, haverá harmonia, e, por essa harmonia,
dar-se-á a realização plena dessa completude de que falo, na qual não existe
nascimento nem morte, aniquilamento ou continuidade. Estando-se completo, não
mais estará sujeito às leis do tempo.
Krishnamurti, 1 de agosto de 1931