Quando vedes um poente
refletir-se nas águas ou uma árvore tranquila no cimo de uma montanha, ou
quando ledes um lindo poema, experimentais um sentimento de êxtase e esse
êxtase é o esquecimento completo, pelo momento, de todas as vossas lutas e
aborrecimentos, de vossas vaidades e desavenças. Vosso desejo seria manter essa
quietude na qual não existe esforço, nem ideia de contenda — pois que nesse
êxtase está a completude. Não vos é possível, porém, sustentar permanentemente
esse êxtase por meio de um estímulo, seja ele externo ou interno. Por meio da
beleza transitória, podeis gozar de um êxtase que é um débil lampejo da
realidade última, porém somente por meio da sabedoria podereis permanentemente
manter a realização da completude. Podereis ter um entendimento rápido,
ocasional, da felicidade, porém a certeza da tranquilidade essa vem somente com
a completa liberdade, tanto no que diz respeito ao estímulo exterior como ao
interior. A permanência dessa visão
extática reside na realização dessa completude que é Verdade, Vida, Libertação.
Durante este acampamento vir-me-ei da palavra “completude” para transmitir esta
ideia; se, porém, não houver em vós a avidez por lhe compreender o significado,
as palavras tornar-se-ão uma barreira e, por essa razão, esforço-me para mudar
continuamente as palavras de que faço uso.
A completude não se baseia na
crença e sim no conhecimento. Podeis possuir, permanentemente, a realização
dessa completude; nela podeis viver a todos os instantes e dela nasce a ação
verdadeira. Este conhecimento, para mim, não se encontra baseado no autoengano;
eu não me engano a mim mesmo. Eu já realizei esta completude e ela não é a
resultante de certa ilusão oculta e nem tão pouco é baseada sobre uma crença.
Não tenho crenças nem “princípios”, sejam de que espécie forem. Nem também se
chega à realização desta completude por meio da esperança ou da prece. A
completude é o libertar-se de todos os “ideais”, de todos os anseios, de todas
as ilusões, de todas as auto-decepções. Aquilo que para mim é a Realidade,
somente pode ser realizado pelos próprios indivíduos, em suas vidas
quotidianas. Pretendo falar desta Realidade e de como pode ser ela realizada; e
quero vos ajudar a perceber a permanência dessa eternidade. Não podeis, porém, realiza-la
por meio de sistemas; portanto, se vossa mente estiver inclinada a
sistematização, não compreendereis a Vida, pois que a Vida não se deixa limitar
por sistemas.
Se seguirdes um sistema, não
haverá ajuste, estareis meramente imitando, adaptando-vos a algo estipulado por
outrem. Antes de poderdes compreender e realizar a completude, tem que dar-se a
cessação da ideia de imitação, de seguir um sistema, um método, um caminho.
Esta completude não é uma visão,
não é uma realidade externa, porém uma realização interior, à qual se chega
vivendo com plenitude de responsabilidade. Nesta completude não há tempo, pois
o tempo não é mais do que uma ilusão da eu-consciência, que divide a vida em
opostos, em espaço e tempo, nascimento e morte. A realização desta completude é
a Realidade última e esta Realidade está sempre se renovando a si mesma, é um
vir a ser independente de tempo. Não é uma finalidade, posto que seja absoluta.
Nem tão pouco é a resultante da especulação metafísica. Estou tentando
descrever-vos por meio da palavra algo que está para além das palavras, estou
tentando medir o imensurável. Posto que não possais plenamente alcança-lo, esta
completude está em vosso coração e em vossa mente, não como um ideal ao qual
tenhais que vos adaptar, e que seria a morte, porém antes como uma Realidade
Viva. Quando torceis a vossa vida para
adaptá-la a um ideal ela perverte-se e não podeis realizar a Verdade. Eu nada
mais faço que esforçar-me para vos descrever esta completude, de modo a
poderdes colher o perfume, o significado da Verdade.
Este êxtase da completude pode
ser realizado por parte de cada um, sejam quais forem as circunstâncias em que
se ache, desde que se mantenha ativo, cheio de propósito e apercebido de si
próprio; desde que possua uma mente capaz de ajuste contínuo, plástica,
constantemente pesquisadora e um coração continuamente vivendo nesse amor, que
é a sua própria infinitude.
Uma pessoa onde quer que esteja,
seja quais forem as suas condições, se estiver sempre buscando a Verdade, e se
houver liberto a si próprio de sistemas que nada mais são do que imitações e,
portanto, corrupções, se houver liberto a si próprio do medo, chegará a
encontrar essa completude. Não pode haver autoridade para a realização dessa
completude, não vos é permitido ter um instrutor, um guru ou um salvador. O
homem que sempre estiver buscando essa completude expelirá todo o desejo de se
retirar, de se afastar do mundo, onde há os conflitos para imitar, para
obedecer ou obter autoridade sobre os outros. Por meio deste corajoso estado de
plasticidade mental manifesta-se nele um completo desprendimento; não
ocasionado pelo temor ou indiferença, porém, em virtude da pesquisa pela
Verdade. Deste desprendimento resulta completa incapacidade para ter morada
permanente a capacidade para examinar as coisas sem apego à eu-consciência, e
este desprendimento é discernimento na ação. O discernimento na ação é conduta.
A ação pode conduzir o indivíduo à liberdade, de modo a realizar ele esse pleno
êxtase da completude; ou pode conduzir a essa inação que nada mais é que
cercar-se o indivíduo de futuras limitações. A ação que conduz à inação
baseia-se no egoísmo; a ação que liberta baseia-se na pesquisa, que destrói o
medo.
O homem que possui a mente e coração
assim, está sempre procurando viver em ajuste, continuamente a si mesmo
renovando; torna-se plenamente responsável, isto é, plenamente consciente e,
por intermédio dessa chama da plena autoconsciência, realiza ele e Realidade
Última. O caminho para a completude encontra-se na autoconsciência plena. Deve
ter lugar aí a cessação total do eu, a libertação do egoísmo, pois que o ego é
a base da autoconsciência; e enquanto o ego, a personalidade, a individualidade
— para mim esses três termos referem-se a mesma coisa — existir, não haverá
possibilidade de realização desse êxtase de que falo. Enquanto fordes
inconscientes, isto é irresponsáveis, não pode ter lugar a realização da
completude. Esta completude se manifesta somente por intermédio da
responsabilidade, que é plena autoconsciência, e por meio da chama dessa autoconsciência é como se encontra a
completude. Portanto,
tendes que vos tornar plenamente conscientes de todas as vossas ações,
pensamento e sentimentos, e não destruí-los, força-los na direção de um ideal ou sufoca-los
em virtude de uma autoridade qualquer. Não pode haver autoridades no
reino da autoconsciência plena. E ninguém vos pode dizer se sois consciente ou
inconsciente, a não ser vós mesmos. Vós próprios é que tendes de vos tornar
responsáveis e nessa plena responsabilidade própria reside o êxtase da
completude. Quando essa chama da autoconsciência chegar à realização,
ter-vos-eis tornado plenamente responsáveis perante vós mesmos e então começará
a total dissipação, o desaparecimento da personalidade, do ego, da individualidade;
é este o começo do êxtase que é a completude. Eu sustento que por meio da
completa cessação da ego-consciência, que é o centro das virtudes, das
qualidades, das contendas, das divisões, encontra-se a completude; e essa
Realidade Última pode ser alcançada por quem quer se se encontre
verdadeiramente em busca contínua.
Se tiverdes o desejo de buscar,
chegareis a encontrar essa Verdade. Essa completude, essa Verdade que é êxtase,
somente pode ser realizada quando se der a absoluta cessação de todo o egoísmo,
seja ele sutil ou grosseiro. O egoísmo existe enquanto houver eu-consciência,
isto é, preocupação com o eu.
Examinaremos agora aquilo em que
credes. Temo que não vos seja isto muito agradável, dado que por tantos anos
tendes vindo aqui escutar-me para verificar se as vossas crenças são reais e
não para encontrar a Verdade. Durante
estes três últimos anos tenho vindo dizer justamente a mesma coisa que vos
estou dizendo agora, porém, repito-o ainda, aqui vindo com todas essas ideias e
eu quero dizer-vos que, se desejardes encontrar a Verdade, não podeis acomodar
ambas as coisas. O que eu digo é diametralmente oposto às vossas crenças; não
podeis, por meio de acomodações, fazer esforços para confundir o que eu digo
com as vossas crenças pois que tal acomodação somente é possível entre duas
coisas da mesma natureza. Não me estou incluindo como autoridade. Digo que se
buscardes a verdade — e é para isto que aqui estais, não deveis fazer esforços acomodatícios.
Averiguai se o que eu digo é verdadeiro e, se for falso, abandonai-o, então;
não tenteis, porém, torcer o que eu digo para acomodá-lo às vossas crenças.
Esta transigência, este falso ajuste conduz à confusão maior, a maiores
tristezas e desilusões e a maioria das pessoas que aqui estão são desiludidas —
pelo menos assim espero. Não me coloco como autoridade, porém, sei de mim
mesmo, o de que falo e perante vós coloco certas ideias sobre conduta baseadas
na Realidade; podeis examiná-las fazendo uma critica inteligente e depois aceita-las,
ou rejeitá-las, porém não façais acomodações.
A maioria dentre vós, aqui tendes
vindo, ano após ano movidos por vários motivos. Tendes vindo aqui ou para vos
divertir, ou para encontrar amigos, ou para buscar acomodar, ou ainda para
averiguar se o que eu digo é Verdade — isto dá-se com alguns dentre vós, pelo
menos; outros vêm em busca de sensações, e outros ainda propelidos pelo hábito
e as autoridades do passado. Tendeis vir sobrecarregados de um fardo de
falsidades e somente podereis descobrir se são falsidades, tentando apurar
aquilo em que acreditais.
Acreditais em um Ser Supremo,
aparte do homem e do mundo. Depois, separais a vós próprios, como indivíduos
desse mundo; pensais que por vos tornardes um instrumento perfeito podeis
auxiliar o mundo. Haveis separado o que há de mais elevado, de vós próprios e
do mundo.
Dizeis que a Verdade reside fora
de todo este caos, deste conflito, desta luta, destas pessoas contendoras e
odientas. Eu digo, ao contrário, que somente por este processo é que a Verdade
pode ser encontrada, que quando disto fordes senhores, isto é, quando fordes
por completo donos de vós mesmos, integralmente responsáveis, é que
encontrareis a Verdade. Em vossa própria conduta, em vossas próprias ações
reside esta eterna Realidade que não é uma verdade externa, porém que vive em
todas as coisas. Quando criais uma realidade exterior, necessitais para isso,
do tempo. Dizeis: “necessito de uma série de encarnações, de adquirir cada vez
mais qualidades e virtudes; depois, por meio da expansão de minha consciência,
chegarei à Realidade mais alta”. Estabeleceis uma autoridade, um salvador, um
instrutor, um guru, e ides imitar,
em lugar de vos ajustardes à vida. Desta imitação provém a corrupção que existe
no mundo no tempo preciso. O homem baniu a Realidade do mundo e po-la da parte
de fora, sendo que o princípio integral de sua existência se acha assim, baseados
sobre o egoísmo, isto é, em sua permanência como ego.
Os ideais chegaram a se tornar
uma forma mais sutil de egoísmo. Enquanto vos apegardes a esta ilusão da
continuidade do ego, necessitais de um ideal para sustentar a este ego e pelo
fato de ser o vosso ego uma coisa falsa, esse ideal torna-se também falso.
Através deste desejo de continuação do ego, haveis estabelecido uma autoridade,
salvadores, e por este meio haveis criado cultos, preces, seitas religiosas e
credos. Vossa ideia da felicidade acha-se baseada sobre a vossa própria
continuação através da eternidade. Vós, como indivíduos, pretendeis conservar o
vosso ego eternamente. Naturalmente, quando vos apegais a este ego,
manifesta-se o medo, o apego vem à existência, manifesta-se esse amo que
estabelece diferenças entre uns e outros. Tendes inúmeras formas de culto,
todas batalhando umas com as outras, cada igreja lutando com outras por causa
de congregações, e cada qual erigindo-se em autoridade; em virtude destas
coisas há exploração. Sois vós mesmos explorados e os exploradores, criais o
explorador pelo vosso próprio desejo e permitis a vós mesmos o serdes
explorados para chegar à consumação de vossos desejos pessoais. Ao tornar a
Realidade uma coisa exterior, criais os exploradores, e pela vossa
irresponsabilidade é que os criais, e os criais pela vossa falta de
ajustamento, por essa maneira determinando a existência do caos no mundo. Por
quererdes conservar o vosso ego, vossa individualidade através do tempo, todo o
vosso sistema de pensamento, de conduta, a civilização do mundo se encontra
assente sobre este desejo; por isso existe o caos, o conflito, a luta e o ódio.
É nisto que acreditais sob todas
as suas formas, sejam elas rudes ou sutis. Pretendeis que o vosso ego continue
pelo tempo a fora, em virtude de uma série de nascimentos que denominais
reencarnações, de modo a chegardes à Verdade. Pelo fato de não poderdes vencer
no presente, é que tendes metafisica, filosofias, ideais. Ora, o que eu digo é
diametralmente oposto a todas essas ideias. Por favor, compreendei isto.
Vossas crenças, vossos anseios
pela continuação de vós próprios, vossas ideias sobre evolução, progresso, com
seus caminhos inúmeros, vossa ideia sobre o karma — todas essas coisas são diametralmente opostas aquilo que eu
digo. Explicarei, em minhas palestras, o que entendo por evolução e progresso,
não essa ideia de progresso que mais não é que uma forma refinada de egoísmo.
Por meio da continuação do ego, por apurado, por perfeito que este seja, não
podereis chegar a compreender, não podeis realizar. Se quiserdes deixar irem-se
todas essas coisas, por completo, se vos quiserdes libertar em absoluto do
passado, fazer frente à solidão completa, ficar sem um lar, isto é,
absolutamente desapegados, então eu vos poderei ajudar, ou antes vós vos
ajudareis a vós próprios. Se, porém, ainda estiverdes apegados às vossas
inúmeras crenças, todas elas baseadas na ânsia pela continuidade do ego, no
egoísmo, então, aqui só encontrareis desilusão. Não tenteis transigir
acomodando essas crenças àquilo que eu digo. Por favor atentai na seriedade disto.
Apenas estareis desperdiçando tempo, inutilmente dissipando energia, quando
tentais transigir entre ambas as coisas. Tendes vossos salvadores e vossos
mestres. Eu digo que não pode haver salvador nem mestre, porém que, por meio de
vosso próprio esforço, por meio de vossa própria luta, por meio de vossa
adaptabilidade, de vosso apercebimento, de vossa vigilância, isto é, por vos
tornardes plenamente responsáveis, é como encontrareis essa Realidade Última e
não por meio de outrem.
Vou falar-vos acerca dessa
Realidade e não a respeito de mestres e salvadores. Se não vos encontrais
interessados por isto, então, nada mais há que dizer; porém, se por isto vos
interessardes, tendes que por completo vos separar do passado, e isto requer
persistência, determinação e constância.
O que eu digo é diametralmente
oposto àquilo que sustentais. Se quiserdes verificar o que eu digo, tendes que
possuir mente plástica, ardente, pesquisadora e, pela vossa própria pesquisa, é
como expelireis o temor. Não advém resultado algum de cegamente lutar contra o
medo. Buscai a Verdade e o medo cessará e, da coragem decorrente, provirá a
plasticidade, a harmonia da mente e do coração e a plena realização desse êxtase
da completude de que falo. Esta completude é que é a Realidade Última, e nessa
Realidade não há nascimento nem morte, ela está sempre renovando a si própria;
e o homem que sabe disto é livre de viver nessa eternidade no presente.
Krishnamurti em Ommen, Acampamento
da estrela, 29 de agosto de 1931