A compreensão do
mecanismo do desejo
PERGUNTA: Todas
as nossas tribulações parecem provir do desejo, mas podemos ficar livres do
desejo? O desejo é inerente à nossa natureza ou é produto da mente?
KRISHNAMURTI: Que é “desejo”? E por que separamos o
desejo da mente? E quem é a entidade que diz: “O desejo cria problemas e, por
conseguinte, devo ser livre de desejo”? Entendeis? Temos de compreender o que é
o desejo, e não, perguntar como livrar-nos do desejo, porque ele nos traz tribulações,
ou se o desejo é produto da mente. Em primeiro lugar, precisamos saber o que é
o desejo, para podermos examiná-lo com mais profundidade. Que é o desejo? Como
nasce o desejo? Eu vou explicá-lo, e vós podereis ver, mas não vos limiteis a
escutar as minhas palavras. “Experimentai” realmente a coisa sobre que estamos
falando, e, desse modo, as palavras terão significação.
Como se origina o desejo? Pode-se dizer com
segurança que ele nasce do perceber ou ver, do contacto, da sensação — depois,
o desejo. Não é exato isso? Primeiro, vedes um automóvel, depois vem o
contacto, a sensação, e, por fim, o desejo de possuir o carro, conduzi-lo.
Tende a bondade de acompanhar lentamente, com paciência, o que estou dizendo. A
seguir, ao procurardes adquirir o carro, que é a manifestação do desejo, há
conflito. Nessas condições, na própria realização do desejo há conflito, há
dor, sofrimento, alegria, e cada um deseja manter o prazer e livrar-se da dor.
É isto o que de fato está acontecendo a cada um de nós. A entidade criada pelo
desejo, a entidade que está identificada com o prazer, diz: “Preciso livrar-me
daquilo que desagrada, que é doloroso”. Nunca dizemos: “Quero livrar-me da dor
e do prazer". Queremos reter o prazer e livrar-nos da dor; mas é o desejo
que cria as duas coisas, não é verdade? O desejo, que nasce da percepção-contato-sensação,
está identificado com aquele “eu” que deseja apegar-se ao que é agradável e
afastar de si o que é doloroso. Mas tanto o doloroso como o agradável são
igualmente produtos do desejo, que faz parte da mente, não se acha fora da
mente; e enquanto existir uma entidade a dizer: “Quero conservar isto e
livrar-me daquilo”, será inevitável o conflito. Visto que queremos livrar-nos
de todos os desejos dolorosos e apegar-nos àqueles que primàriamente
proporcionam prazer, vantagem, nunca consideramos na sua totalidade o problema
do desejo. E quando dizemos: “Preciso livrar-me do desejo” — quem é essa
entidade que está tentando livrar-se de alguma coisa? Essa entidade não é também filha do
desejo? Estais compreendendo?
Como disse no início desta palestra, necessitamos de
infinita
paciência para compreender estas coisas. Para as perguntas fundamentais
não há respostas absolutas, “sim” ou “não”. O importante é o formular a
pergunta fundamental e não o achar-lhe a resposta; e se somos capazes de
considerar a pergunta fundamental, sem buscarmos uma resposta, então, esta
mesma observação da coisa fundamental cria a compreensão.
Nosso problema, por conseguinte, não é de como
libertar-nos dos desejos dolorosos, ao mesmo tempo que nos apegamos aos
agradáveis; o problema é de compreender, na sua totalidade, a natureza do
desejo. Isto sugere a pergunta: Que é conflito? E quem é a entidade que está
sempre a escolher entre o que é agradável e o que é doloroso? A entidade a que
chamamos “eu”, “ego”, a mente que diz “Isto é prazer, isto é dor, prender-me-ei
ao agradável e rejeitarei o doloroso” — essa entidade não é desejo? Mas, se
formos capazes de olhar com atenção todo o campo do desejo, sem o
propósito de conservar alguma coisa ou livrar-nos de alguma coisa,
descobriremos, então, que o desejo tem um significado completamente diferente.
O desejo cria a contradição, e a mente que é
vigilante, muito ou pouco, não gosta de viver em contradição, e por isso tenta
livrar-se do desejo. Mas, se a mente puder compreender o desejo, sem tentar
afastá-lo de si, sem dizer “Este é um desejo melhor, e aquele é um desejo pior;
vou ficar com este e desfazer-me daquele” — se puder conhecer todo o campo do
desejo, sem rejeitar, nem escolher, nem condenar, ver-se-á, então, que a mente
é desejo, não está separada do desejo. Se compreenderdes realmente isto, a
mente se tornará muito tranquila; os desejos surgirão, mas não terão mais
“poder de choque”, já não terão muita significação, já não fincarão raízes na mente,
nem criarão problemas. A mente reagirá, pois do contrário não estará viva, mas
sua reação será superficial e não criará raízes. Eis porque é importante
compreendamos, no seu todo, o mecanismo do desejo, mecanismo em que quase todos
estamos aprisionados. Presos nesse processo, sentimos a contradição, a dor
infinita que ele causa, e, portanto, lutamos contra o desejo, e essa luta cria
dualidade. Mas, se, por outro lado, pudermos dar atenção ao desejo, sem
julgamento, sem avaliação ou condenação, veremos que, então, ele não cria mais
raízes na mente. A mente que faculta terreno propício aos problemas nunca
encontrará o que é Real. A questão, por conseguinte, não é de como dissolver o
desejo, mas, sim, de compreendê-lo, e só é possível compreendê-lo quando não o
condenamos. Só a mente que não está ocupada pelo desejo, pode compreender o
desejo.
Krishnamurti,
6 de agosto de 1955
Realização sem
esforço
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