Melhorias no “eu”,
não é transformação
Uma das coisas mais difíceis de compreender
parece-me ser o problema da transformação; Como vemos, existe progresso, de
diferentes maneiras, a chamada “evolução” mas há transformação fundamental no
progresso? Não sei se esse problema já se vos terá apresentado ou se já alguma
vez pensastes nele, mas talvez convenha o apreciarmos nesta manhã.
Vemos que há progresso, no sentido “visível” da
palavra: novas invenções, automóveis e aviões melhores, geladeiras melhores, a
paz superficial de uma sociedade adiantada, etc. Mas esse progresso está
produzindo alguma transformação radical no homem, em vós, em mim? Ele altera
superficialmente a conduta de nossa vida, mas pode transformar fundamentalmente
o nosso pensar? E como operar essa transformação fundamental? Acho ser este um
problema que vale a pena considerar. Há progresso no automelhoramento; amanhã
posso ser melhor, mais amável, mais generoso, menos invejoso, menos ambicioso.
Mas o automelhoramento produz a modificação completa do nosso pensar? Ou não há
transformação nenhuma, mas só progresso? O progresso implica tempo, não? Sou
assim hoje e serei um pouco melhor amanhã. Isto é, no melhoramento, na
renúncia, na negação de mim mesmo, há uma progressão, um movimento gradual para
uma vida melhor, o que significa que o indivíduo se está ajustando
superficialmente ao ambiente, a um padrão melhorado, está sendo condicionado de
maneira mais nobre, etc. Vemos constantemente esse processo em vigor. E já vos
deveis ter perguntado, como eu o tenho feito, se o progresso produz revolução
fundamental.
Para mim, a coisa mais importante não é o progresso,
mas a revolução. Não fiqueis horrorizados com a palavra “revolução” — como fica
a maioria das pessoas que fazem parte de uma sociedade adiantada, como esta.
Mas quer-me parecer que, se não compreendermos a enorme necessidade de se
produzir, não apenas uma melhora social, mas uma radical mudança de nossa
perspectiva, o mero progresso será progresso no sofrer; poder-se-á apaziguar,
acalmar o sofrimento, mas não se conseguirá a cessação do sofrimento, que
estará sempre latente. Afinal de contas, progresso, no sentido de nos tornarmos
melhores num certo período de tempo, constitui, realmente, o “mecanismo” do
“eu”, do “ego”. Há evidentemente progresso no automelhoramento, que é o esforço
decidido para se ser bom, para se ser mais isto ou menos aquilo, etc. Assim,
como há sempre melhoramentos nas geladeiras e nos aviões, assim também há
possibilidade de melhoramento do “eu”; mas este melhoramento, este “progresso”,
não liberta a mente do sofrimento.
Nessas condições, se desejamos compreender o
problema do sofrimento e, se possível, fazê-lo cessar, não devemos de modo
nenhum pensar em termos de progresso; porque o homem que pensa em termos de
progresso, de tempo, e diz que será feliz amanhã, está vivendo no sofrimento. E
para compreendermos este problema, temos de entrar fundo na questão da
consciência, não achais? Este assunto é difícil demais? Vou continuar, e
veremos.
Se desejo realmente compreender o sofrimento e ver o
fim do sofrimento, tenho de verificar, não só quais são as coisas implicadas no
progresso, mas também que entidade é essa que deseja melhorar a si mesma; e
devo conhecer, também, o “motivo” que a impele a buscar melhoramento. Tudo isso
é a consciência. Existe a consciência superficial das atividades diárias: a
ocupação, a família, o constante ajustamento ao ambiente social, de maneira feliz
e fácil, ou de maneira contraditória, neurótica. E há também o nível mais
profundo da consciência, que é a vasta herança social do homem, formada através
de séculos: a vontade de existir, a vontade de alterar, a vontade de “vir a
ser”. Se desejo realizar uma revolução fundamental em mim mesmo, sem dúvida
preciso compreender esse mecanismo total da consciência.
Pode-se ver claramente que o progresso não traz
consigo nenhuma revolução. Não falo de revolução social ou econômica — que é
muito superficial, como, penso eu, todos vós concordareis. A derribada de um
sistema social ou econômico e o estabelecimento de um novo, não altera certos
valores, como é o caso da revolução russa, e de outras revoluções históricas.
Refiro-me à revolução psicológica, a única revolução verdadeira; e o homem
religioso deve achar-se nesse estado de revolução, de que falarei mais adiante.
Ao atacar-se este problema do progresso e da
revolução, faz-se necessário um percebimento, uma compreensão do processo
total da consciência. Entendeis? Enquanto eu não compreender realmente
o que é a consciência, o mero ajustamento de superfície, conquanto possa ter
significação sociológica e mesmo estabelecer uma melhor maneira de viver, com
mais comida e menos miséria na Ásia, menos guerras, — nunca resolverá o
fundamental problema do sofrimento. Sem se compreender, e dissolver, e
transcender o impulso causador do sofrimento, o simples ajustamento social é a
conservação, em estado latente, da semente do sofrimento. Assim sendo, tenho de
compreender o que é a consciência, mas não de acordo com alguma filosofia, psicologia
ou descrição, e, sim, “experimentando” diretamente o estado real de minha
consciência, todo o seu conteúdo.
Ora, talvez possamos, nesta manhã, “experimentar”
algo a esse respeito. Vou descrever o que é a consciência; mas, enquanto eu a
estiver descrevendo, não vos limiteis a acompanhar a descrição, porém, antes,
observai o “mecanismo" do vosso próprio pensar, para conhecerdes, então,
por vós mesmos, o que é a consciência, sem precisardes ler os relatos
contraditórios das descobertas dos diferentes especialistas. Compreendeis? Eu
estou descrevendo uma coisa. Se apenas escutais a descrição, ela terá muito
pouca significação; mas, se, por meio da descrição, estais “experimentando” a
vossa própria consciência, o vosso próprio “mecanismo de pensar”, então ela
terá uma importância extraordinária, agora mesmo, e não amanhã ou noutro dia
qualquer, quando tiverdes tempo de refletir a tal respeito, o que vem a ser uma
coisa completamente absurda, já que constitui um mero adiamento.
Se, por meio da descrição, puderdes conhecer o
verdadeiro estado de vossa própria consciência, enquanto aqui estais, sentados
nos vossos lugares, vereis que a mente é capaz de libertar-se de sua vasta
herança de condicionamento, de todas as acumulações e decretos da sociedade, e
tem a possibilidade de ultrapassar a consciência do “eu”. Se experimentardes
assim, terá utilidade a descrição.
Estamos procurando descobrir por nós mesmos o que é
a consciência e se a mente tem possibilidade de libertar-se do sofrimento — não
de modificar o padrão do sofrimento, de decorar a prisão do sofrimento, mas de
ficar livre, de todo, da semente, da raiz do sofrimento. Ao investigarmos isso,
veremos a diferença que há entre o progresso e a revolução psicológica, que é
essencial se desejamos a nossa libertação do sofrimento. Não estamos tentando
alterar o conteúdo de nossa consciência, não estamos procurando fazer coisa
alguma com relação a esse conteúdo; estamos, apenas, a observá-lo. Com efeito,
por pouco que observemos, por mais ligeira que seja a nossa percepção, podemos
conhecer as atividades da consciência superficial. Podemos ver que, na
superfície, a nossa mente está ativa, ocupada em ajustar-se, ocupada num emprego,
a ganhar o sustento, a expressar certas tendências, dotes, talentos, ou adquirindo
certos conhecimentos técnicos; e quase todos nós nos satisfazemos com viver
nessa superfície.
Por favor, não acompanheis meramente o que estou
dizendo, mas observai a vós mesmos, vossa própria maneira de pensar. Eu estou
descrevendo o que se está passando superficialmente, na nossa vida diária —
distrações, fugas, eventuais fases de medo, ajustamento à esposa, ao marido, à
sociedade etc. — e esta superficialidade basta à maioria de nós.
Ora, podemos mergulhar nas camadas mais profundas e
perceber o “motivo” desse ajustamento superficial? Assim, com um pouquinho de
conhecimento desse processo, vereis que esse ajustamento à opinião, aos
valores, essa aceitação da autoridade, etc., é ocasionado pelo impulso de
autoperpetuação, autoproteção. Mas, se descerdes mais fundo, achareis lá uma
vasta subcorrente de instintos raciais, nacionais e tribais, todas as
acumulações das lutas, do saber, dos empreendimentos humanos, dos dogmas e
tradições do hinduísta, do budista, ou do cristão; todos os resíduos da chamada
educação, através de séculos — todas as coisas que nos condicionaram a mente de
acordo com um certo padrão hereditário. E, descendo-se ainda mais fundo, lá
estará o desejo primário de existir, de ter bom êxito na vida, de “vir a ser”,
o qual se expressa, na superfície, em várias formas de atividade social,
criando ansiedades e temores de fundas raízes. Dito mui sucintamente, a
totalidade dessas coisas é a nossa consciência. Por outras palavras, o nosso
pensar se baseia no impulso fundamental para existir, para vir a ser, e, acima
deste, se encontram as muitas camadas de tradição, de cultura, educação, e o
condicionamento superficial de uma dada sociedade; forçando-nos, tudo isso, a
adaptar-nos a um padrão que nos possibilita sobreviver. Há muitos outros
pormenores e subtilezas, mas, em essência, isso é a nossa consciência.
Pois bem. Todo progresso realizado dentro dessa
consciência constitui automelhoramento, e automelhoramento é progresso no sofrimento,
e não eliminação do sofrimento. Isto é muito claro, se observardes. E se a
mente tem muito interesse em ficar livre de todo sofrimento, que deve fazer?
Não sei se já pensastes neste problema, mas tende a bondade de pensar agora.
Nós sofremos, não é exato? Sofremos não só por
doença ou incômodos físicos, mas também por causa da solidão, da pobreza do
nosso ser. Sofremos porque não somos amados. Quando amamos alguém e não temos
retribuição desse amor, sofremos. Em todos os sentidos, pensar é estar cheio de angústias;
por conseguinte, parece-nos que será melhor não pensar e aceitamos, assim, uma
crença, e ficamos estagnados nessa crença, a que chamamos religião.
Ora, se a mente perceber que o sofrimento não tem
fim por via do automelhoramento, do progresso, o que é muito evidente, que deve
ela fazer? Pode a mente transcender essa consciência, transcender os vários
impulsos e desejos contraditórios? E esse transcender depende do tempo? Segui
isso, não só verbalmente, mas realmente. Se é coisa dependente do tempo,
voltais então à mesma coisa, isto; é, ao progresso. Percebeis isso? Dentro da
estrutura da consciência, todo movimento, em qualquer direção, é
automelhoramento, e por conseguinte faz continuar o sofrimento. O sofrimento
pode ser controlado, disciplinado, subjugado, racionalizado, requintado, mas a sua
qualidade potencial continuará a existir; e para nos vermos livres do
sofrimento precisamos libertar-nos dessa potencialidade, dessa semente do “eu”,
do “ego”, de todo o processo de “vir a ser”. Para passarmos além, é necessária
a cessação desse mecanismo. Mas, se disserdes: “Como poderei passar além?”,
nesse caso o “como” se torna método, prática, quer dizer, progresso, que não é
uma maneira de passar além, mas só de tornar mais apurada a consciência do
nosso sofrer. Espero que estejais compreendendo.
A mente pensa em termos de progresso, de
melhoramento, de tempo; e é possível que, reconhecendo que o chamado progresso
é “progresso no sofrer“, essa mente cesse de todo, não no tempo, não amanhã,
mas imediatamente? De outra maneira, ver-nos-emos de novo na mesma rotina, na
velha roda de suplícios. Se o problema está enunciado de maneira clara e for
claramente compreendido, vós encontrareis a solução absoluta. Emprego a palavra
“absoluta“ no seu sentido correto. Não há outra solução.
Isto é, nossa consciência está constantemente
lutando para ajustar, modificar, mudar, absorver, rejeitar, avaliar, condenar,
justificar; mas todo movimento semelhante, da consciência, está sempre, dentro
do padrão do sofrimento. Todo movimento que ocorre dentro dessa consciência,
como sejam, os sonhos, os esforços da vontade, é movimento do “eu”; e todo
movimento do “eu”, seja em direção das coisas mais sublimes, seja em direção
das coisas mais mundanas, gera sofrimento. Quando a mente percebe isso, que lhe
acontece? Compreendeis a pergunta? Quando a mente percebe a verdade a esse
respeito, não apenas verbalmente, mas totalmente, existe então algum problema?
Existe problema quando observo uma cascavel e sei que ela é venenosa?
Analogamente, se sou capaz de prestar toda a atenção a esse “mecanismo” do
sofrimento, não está então a mente além do sofrimento?
Tende a bondade de prestar atenção. Nossa mente está
agora ocupada com o sofrimento e o modo de evitar o sofrimento, esforçando-se
para dominá-lo, diminuí-lo, modificá-lo, fugir dele de várias maneiras. Mas, se
percebo, não superficialmente apenas, mas através de todas as camadas, que essa
própria ocupação da mente com o sofrimento é movimento do “eu”, criador de
sofrimentos; se percebo realmente a verdade a esse respeito, não ultrapassou
então a mente essa coisa que chamamos consciência do “eu”?
Expressando-o diferentemente: Nossa sociedade está
baseada na inveja, no desejo de aquisição, não só aqui na América, mas também
na Europa e na Ásia, e nós somos o produto dessa sociedade, existente há
séculos e milênios. Ora bem, prestai atenção. Reconheço que sou invejoso. Posso
apurar esse sentimento, controlá-lo, discipliná-lo, encontrar-lhe um substituto
através de atividades caritativas, reformas sociais, etc.; mas a inveja lá estará
sempre, latente, pronta a saltar para fora. Como pode, então, a mente
libertar-se totalmente da inveja? Pois a inveja traz inevitavelmente conflito,
a inveja é um estado em que não há ação criadora; e todo homem que deseja
descobrir o que é “ação criadora” deve, é óbvio, estar livre da inveja, da
comparação, dos impulsos para ser e “vir a ser”.
A inveja é um sentimento que identificamos com uma
palavra. Identificamos o sentimento dando-lhe um nome, aplicando-lhe o termo
“inveja”. Prosseguirei lentamente e tende a bondade de seguir-me, pois estou
fazendo a descrição de nossa consciência. Há um certo estado de sentimento, e a
esse estado dou um nome, chamo-o “inveja”. Esta mesma palavra “inveja” é
condenatória, tem significados sociais, morais e espirituais, que fazem parte
da tradição em que fui educado; assim, pelo próprio emprego da palavra,
condenei o sentimento, e esse mecanismo de condenação é automelhoramento.
Quando condeno a inveja, estou progredindo na direção oposta, que é a da
“não-inveja”, mas esse movimento parte, ainda, do centro que é invejoso.
Pode, pois, a mente pôr fim ao “dar nome”? Quando há
sentimento de ciúme, de concupiscência, de ambição de ser alguma coisa, pode a
mente, que foi educada no uso da palavra, na condenação, no dar nome, deter
completamente o “mecanismo” de dar nome? Experimentai isso, e vereis como é
difícil não dar nome a um sentimento. O sentimento e o dar nome são quase
simultâneos. Mas, quando não ocorre a ação de dar nome, há então sentimento?
Persiste o sentimento, quando não se lhe dá nome algum? Estais compreendendo,
ou isto é abstrato demais? Não concordeis nem discordeis de mim, pois não se
trata de minha vida, mas de vossa vida.
Esse problema de dar nome a um sentimento,
aplicar-lhe um termo, faz parte do problema da consciência. Tomai, por exemplo,
a palavra “amor”. Que deleite a mente experimenta, no mesmo instante, com essa
palavra! Ela encerra tanta significação, tanta beleza, tanto conforto, e tantas
outras coisas! E a palavra “ódio” tem imediatamente uma significação toda
outra, de coisa que se deve evitar, da qual devemos livrar-nos, fugir, etc.
Têm, pois, as palavras, um extraordinário efeito psicológico para a mente, quer
estejamos cônscios disso, quer não.
Ora, pode a mente ficar livre de toda essa
“verbalização”? Se pode — e ela deve poder, porque do contrário não irá mais
longe — surge então o problema: Existe um “experimentador” separado da
“experiência”? Se existe experimentador separado da experiência, então a mente
está condicionada, porque o experimentador está sempre a acumular ou rejeitar
experiências, a traduzir cada experiência em termos de seus próprios gostos e
aversões, em termos ditados pelo seu próprio fundo, seu condicionamento; se ele
tem uma visão, pensa que ela é Jesus, um Mestre, ou sabe Deus o que mais.
Assim, enquanto há experimentador, há “progresso no sofrer”, que é o processo
próprio da consciência do “eu”.
Mas, para se passar além, para se transcender tudo
isso, requer-se uma atenção extraordinária. Esta atenção total, na qual não há
escolha alguma, nem ideia de “vir a ser”, mudar, alterar, liberta a mente do “mecanismo”
da consciência do “eu”; e então não existe mais “experimentador” que acumula, e
só então é que se pode dizer com veracidade que a mente está livre do sofrer. A
acumulação é que é a causa do sofrimento. Nós não morremos para todas as
coisas, de dia em dia, não morremos para as inumeráveis tradições, para a
família, para nossas próprias experiências, nosso próprio desejo de fazer mal a
outrem. Precisamos morrer para tudo isso, de momento a momento, morrer para
esta vasta memória constituída de acumulações, porque só então a mente está
livre do “eu”, a entidade nascida da acumulação.
Talvez, se examinarmos juntos esta questão, possamos
esclarecer tudo o que já foi dito.
Krishnamurti,
14 de agosto de 1955
Realização sem
esforço