A busca por um estado livre
de perturbação
Desejo esta manhã discorrer sobre um problema que
considero suficientemente importante: o problema relativo ao impulso constante,
existente em cada um de nós, a buscar um estado permanente, livre de toda
perturbação. É um problema realmente muito complexo, e permito-me sugerir-vos
escuteis passivamente, sem aceitação ou rejeição, como quem ouve o canto de uma
ave. Por certo, se queremos compreender um problema muito complexo, requer-se
uma certa vigilância, em que a mente esteja passiva, mas não hipnotizada por
palavras. Isso não implica de modo nenhum que tenhais de aceitar o que eu digo.
Pelo contrário, a mera aceitação ou anuência ao que considerais ser a verdade,
não tem significação alguma. O que tem significação é que descubrais por vós
mesmos o que é verdadeiro; e não podeis descobrir o que é verdadeiro, se vossa
mente está sempre agitada pela comparação, ou pelo lembrar-vos do que outra
pessoa disse ou do que lestes em vários livros. Tudo isso tem de ser posto de
parte, inteligentemente, para que se possa ouvir com um percebimento passivo, em
que não haja “autoprojeção”, nem espírito defensivo ou antagônico. Não podemos
descobrir o que é verdadeiro, quando estamos excessivamente ansiosos ou de
algum modo agitados. O perceber a verdade relativa a qualquer coisa, requer uma
atenção especial, não achais? Uma atenção isenta de esforço, como acontece
quando estamos escutando algo que realmente nos agrada.
Não estamos nós, em maioria, buscando a permanência,
em diferentes níveis da nossa consciência? Se somos puramente mundanos,
queremos permanência no nome, na forma, em nossa boa aparência, em nossa
mobília, na propriedade. Isto é, o desejo procura um estado permanente onde não
haja perturbação de espécie nenhuma; e se somos muito superficiais, procuramos aquela
permanência na ordem social, da esquerda ou da direita. Se não estamos sujeitos
a essa espécie de mundanidade, buscamos então a permanência no que chamamos
amor, nas relações com certas pessoas; e se vamos além, buscamo-la na crença,
nas ideias, no saber, no dogma, na tradição. E há também o desejo de encontrar
uma permanência em que não haja ação da nossa parte. A mente diz: “Deponho a
minha vontade nas mãos de Deus; ele sabe mais, portanto deixemo-lo operar”.
Imolamo-nos ao que consideramos ser Deus, ou à ideia do grupo, da nação. Quer
as nossas atividades sejam impostas pelas circunstâncias exteriores, quer, por
nós mesmos, em virtude do temor, da esperança, das várias formas de ilusão
utópica, — o desejo fundamental é de encontrar uma permanência na qual a mente
possa refugiar-se e sentir-se em segurança.
O desejo, pois, constantemente busca um estado de
permanência, um estado em que encontremos completo preenchimento, por meio da
propriedade, de pessoas ou de ideias, e no qual a mente nunca possa ser
perturbada. Não é isso o que nós, em geral, consciente ou inconscientemente,
procuramos? Desejamos preencher-nos, encontrar segurança permanente, e esse
próprio impulso suscita ansiedade, temor e várias formas de atividade
destrutiva, que procuramos então reformar, controlar, disciplinar.
Ora, é possível à mente não buscar permanência, não
aspirar a um estado que ela concebeu como o estado de felicidade, de Realidade?
Pode a mente ser livre da experiência de ontem, de modo que não esteja
condicionando permanentemente o presente? E há alguma ação, algum “estado de
ser” não oriundo do desejo, que transcenda o tempo e seja sem continuidade?
Para descobrir se existe esse estado, a mente, sem dúvida, deve investigar e
compreender o mecanismo do seu próprio desejo. Enquanto buscamos qualquer
espécie de permanência, de segurança, toda experiência se transforma em
obstáculo à compreensão mais profunda, todo saber constitui um empecilho a
novos descobrimentos. Por conseguinte, se vós e eu desejamos descobrir se
existe ou não o atemporal, temos em primeiro lugar de compreender porque a
mente procura, através da propriedade e das relações, uma crença, uma condição
na qual possa permanecer em segurança, dia após dia. Qualquer que seja o
disfarce, é isso, em essência, o que buscamos, não é? Nossa vida é muito
complexa, fluida, variável; há incerteza, dor, tristeza. Compreendendo tudo
isso, desejamos, consciente ou inconscientemente, o oposto, algo inteiramente
distinto do que é; por isso, edificamos igrejas, aspiramos a Utopias, e
vivemos apegados a dogmas e crenças. Podemos reconhecer a falácia de tudo isso
e, conscientemente, rejeitá-lo; podemos achar pelo raciocínio que nada existe
de permanente — e de fato não existe nada permanente — mas, inconscientemente,
muito profundamente, o impulso humano, o impulso individual, é sempre no
sentido de encontrar algo que esteja além do conflito do desejo.
Ora bem, existe coisa tal como a segurança? Há uma
permanência que persiste, eterna, apesar de todas as calamidades, apesar da
morte? Existe algo a que a mente possa apegar-se definitivamente? Se, em
virtude da nossa educação, da civilização, da tradição, do condicionamento de
certas crenças, afirmamos que tal coisa existe ou que não existe, essa
resposta, naturalmente, não é válida. O homem que de fato deseja investigar
esta questão, deve obviamente libertar-se do seu condicionamento; e esta é uma
das nossas maiores dificuldades, não achais?
A mente, que é pensamento, está sempre a buscar, de
várias e sutis maneiras, um estado permanente, invariável, no qual possa
subsistir, dia por dia. Embora não o digamos, isso é o que consciente ou
inconscientemente desejamos. E o pensamento acha o meio de produzir esta
permanência: cria o pensante, que se torna então a entidade permanente que
orienta e controla o pensamento. Mas o pensante é o pensamento; não há pensador
distinto do pensamento.
O pensamento procura segurança em níveis diversos; e
quando busca segurança exterior, está atraindo a insegurança. Quando fabricais
armamentos com o fim de criar segurança para vós mesmos, neste mundo, vossa
segurança é destruída pela guerra. A mente que encontrou uma relativa segurança
se torna conservadora, deseja reter, consolidar, continuar a ser como é, sem
perturbações; modifica-se apenas debaixo de compulsão, quando a pressão do
inevitável a obriga a fazê-lo. Mas não existe essa coisa chamada segurança,
permanência, isto é, um estado de inalterável conservação.
Interiormente, psicologicamente, todo o mecanismo da
memória, que é acumulação de experiência, de conhecimentos, é um meio pelo qual
o “eu”, o “ego”, pode achar segurança e perpetuar-se. Profundamente instalado,
lá está o desejo de preencher-nos, e por isso tentamos várias formas de
preenchimento, várias atividades, tarefas, funções. Pode haver, porém,
preenchimento para o “ego”? Posso preencher-me, em algum tempo? Certo, o “eu” é
só uma ideia, não tem realidade. O “eu” que busca a prosperidade, a riqueza,
posição, prazer; o “eu” que está sempre evitando a dor, que se esforça
constantemente para aumentar, vir-a-ser, crescer — essa entidade não é mais do
que um a ideia, um desejo que se identificou com uma dada forma de pensamento.
Existe, pois, em algum tempo, preenchimento para vós e para mim? E enquanto
cada um de nós se está esforçando para preencher-se, somos antagonistas,
estamos em competição uns com os outros. Desejais preencher-vos pela beleza,
pela harmonia, e eu desejo preencher-me pela violência, pela
irresponsabilidade, pela chamada liberdade. Não estamos em antagonismo um com o
outro? Vós buscais a paz, eu sou ambicioso. Podem, o homem que busca a paz e o
homem ambicioso, viver juntos, na mesma ordem social? Buscar preenchimento na
paz ou noutra coisa qualquer não significa ser pacífico, e enquanto cada um de
nós estiver em busca de preenchimento, haverá conflito. E entretanto, para a
maioria de nós, o desejo de preenchimento é um impulso intenso, exigindo satisfação
a qualquer preço. Em todos os diferentes níveis do nosso ser, despertos ou dormindo, estamos
constantemente a buscar um estado de todo imperturbável, uma continuidade de
pensamento, como “eu” — o “eu” que possui experiências, o “eu” que tem sofrido,
o “eu” que acumulou tanta ilustração e saber. Não tendo encontrado segurança
exterior, passa o “eu” a procurar aquele estado noutros níveis, além do nível
superficial. Por isso, meditamos para alcançar a paz, para termos uma mente
tranquila. Pensamos que a mente tranquila irá dar-nos o estado de permanência
que não encontramos em nenhuma outra direção; e apresenta-se-nos, aí, a pergunta:
“Como
posso estar tranquilo? Começa, assim, um problema inteiramente novo, com o qual
ficamos a debater-nos.
Sem dúvida, o pensamento que deseja estar tranquilo nunca
pode libertar-se do conflito, visto ser ele o próprio foco do “eu”. É o
pensamento identificado como “eu” que se identifica com o grupo, com a nação.
Procurais esquecer o “eu”, atirando-vos a esta ou àquela atividade. O “eu” é
esquecido, mas resta a atividade. Sendo, como é, um a fuga ao “eu”, a vossa
atividade tem de ser protegida; e há, assim, antagonismo, há batalha entre
várias atividades, entre vários grupos nacionais. E se não vos entregais a
alguma atividade, ou ao nacionalismo, vos tornais um ente religioso, identificando-vos
com determinada crença, que se torna então imensamente importante, porque sois
parte dela.
Ora, sem excesso de pormenores, tudo o que acabo de
dizer é uma descrição fiel de um fato óbvio; e se percebeis realmente a verdade
do que digo, vossa mente já não se acha, por certo, consciente ou
profundamente, em busca de nenhum estado: vai começando a
tornar-se apercebida de todas as coisas, conforme surgem, e procurando compreendê-las,
sem armazenar essa compreensão para uso futuro. Há, pois, certo sentimento de
liberdade, e quando alcançardes esse ponto, verificareis como se desenvolve uma
ação não originária do desejo. De ordinário, só conhecemos a atividade do
desejo, que é a atividade da mente, identificada como “eu”. Esse “eu” é muito
insignificante, muito limitado, estreito, superficial; ainda que possa
expandir-se consideravelmente pela identificação, ele continua sempre muito
superficial e, por conseguinte, nunca pode achar o que é real. A mente
mesquinha que busca Deus, encontrará um deus também mesquinho. A mente
superficial, por mais que discipline a si mesma e declare que deve
amar, ser compassiva, bondosa, afável, continuará muito superficial.
Agora, se a mente perceber a verdade relativa a tudo
isso, então, talvez, venha a descobrir um estado inteiramente diferente, um
estado de silêncio, que não é “autoprojeção”, que não é produto de nenhum
desejo, compulsão, ou temor. Nesse silêncio não existe atividade da mente, e
por conseguinte não há continuidade. O que é contínuo resulta do tempo, é um “mecanismo”
de tempo. O tempo é a mente, a mente que deseja continuidade. Desejando
continuidade na experiência, a mente se torna contínua por meio da memória e,
nessas condições, nunca pode achar nada novo, jamais pode encontrar a
realidade, o incognoscível.
A mente, pois, é resultado do tempo, produto da
memória, do conhecimento, da experiência; e pode essa mente, estando apercebida
de todo o seu próprio “mecanismo”, deixar de “projetar” e permanecer em
silencio? Nesse silêncio, por certo, podem-se conhecer grandes profundezas, que
a mente consciente não pode nunca experimentar e re te r; porque, no momento em
que a mente consciente intervém e encontra prazer naquela experiência, nasce o
“experimentador” separado do objeto da experiência; e começa, assim, a divisão.
H á então o conflito do “experimentador” que quer alcançar o que se acha além
dêlc próprio. Eis porque é importantíssimo, assim me parece, compreender todo esse
“processo” do desejo: o desejo que está sempre criando a dualidade do “eu”, que
é o experimentador separado da coisa experimentada, o pensador que está sempre
dominando, controlando, moldando o pensamento, perseguindo a experiência mais
aprazível.
Em vista de tudo isso, pode o pensamento, que é um mecanismo
muito complexo, terminar, para haver tranquilidade mental? Nessa tranquilidade
há profundezas que a mente de modo nenhum pode conceber; mas uma mente tranquila
conhece essas coisas. Quando a mente pode experimentar sem reter, sem armazenar
a experiência como lembrança, só então é ela capaz de receber o que é
atemporal, eterno; e, sem um vislumbre dessa eternidade, a vida é uma série de
lutas vãs, um mecanismo interminável de lutas e de sofrimento. A compreensão
não resulta de fuga, mas de constante vigilância, em que não haja condenação
nem comparação. A condenação e a comparação são produtos do desejo. Livre de
desejo, a vigilância se torna clara, simples; há percepção imediata, sem
análise nem julgamento. Quando está cônscia, sem escolha, a mente alcança
imperceptivelmente aquele estado em que se acha a tranquilidade; e então é
possível a existência da Realidade.
Krishnamurti,
em Percepção Criadora
12 de julho de
1953