Pode-se compreender o
mecanismo do medo?
PERGUNTA: Dizeis que só uma mente tranquila pode
resolver o problema do temor; mas, como pode a mente estar tranquila quando tem
medo?
KRISHNAMURTI: Há vários problemas encerrados nesta
pergunta. Em primeiro lugar, como tranquilizar a mente a fim de dissolver o
temor? E pode a mente que tem medo estar alguma vez tranquila? E a tranquilidade
da mente se obtém por meio de alguma técnica? Afinal de contas, é isto que
perturba muita gente: o “como”, o método, a técnica de se alcançar um estado de
paz. O “como” implica hábito, a manutenção de certa atitude dia por dia, a
repetição de certa ação, a observância de determinado plano, o disciplinar da
mente para estar tranquila. E a tranquilidade, a serenidade da mente resulta de
hábito? É produto de exercício constante? Ou vem tão somente quando há
liberdade, quando há compreensão do que é?
Naturalmente, se desejo paz de espírito, não a terei
nunca. É por desejar ter uma mente tranquila que pratico vários exercícios, os
quais espero tenham a virtude de realizá-la; o resultado, porém, é uma mente
morta. A mente morta está muito tranquila, mas não pode ser criadora. Assim,
pois, não existe nenhum “como”. O que a mente pode fazer é apenas ter
consciência de que procura um método porque deseja algo. Se desejais
enriquecer, juntais dinheiro, selecionais os vossos amigos, circulais no meio
de gente que possa ajudar-vos a obter o que desejais. Do mesmo modo, se
desejais paz de espírito, se sentis a sua urgência, procurais descobrir o meio
de consegui-la: ouvis vários instrutores, praticais disciplinas, ledes certos livros,
sempre com a intenção de ter paz de espírito; todavia, vossa mente só se torna
embotada. Se, entretanto, estiverdes apercebida desse “mecanismo” do vosso
pensar, na sua totalidade, tanto do mecanismo inconsciente como do
consciente; se observardes todos os vossos pensamentos, momento por momento,
sem condenação ou julgamento; se simplesmente observardes cada pensamento que
surge, sem o rejeitar ou por de parte, achareis então uma liberdade, na qual se
torna existente a tranquilidade, sem volição, e sem nenhuma ação da vontade.
O problema, por consequência, não é de como libertar
a mente do temor, ou de como tê-la tranquila, para dissolver o temor, mas: se o
medo pode ser compreendido. Embora eu tenha medo de várias coisas — de meu
patrão, de minha esposa ou marido, da morte, de perder o meu depósito no banco,
da opinião dos meus vizinhos, da frustração, de perder minha importância
pessoal — esse medo, em si, é o resultado de um mecanismo total, não é? Isto é,
o “eu”, o “ego”, em sua atividade, “projeta” o medo. A substância é o
pensamento concernente ao “eu”, e sua sombra é o medo; e, evidentemente, não
adianta batalhar contra a sombra, a reação. O “eu” está-se protegendo,
ansiando, esperando, desejando, lutando; e constantemente compara, pesa, julga;
aspira ao poder, à posição, ao prestígio, aspira a ser respeitado; e pode esse
“eu”, fonte do temor, deixar de existir, não para todo o sempre, mas momento
por momento? Quando se apresenta o sentimento de temor, pode a mente ficar apercebida
dele, examiná-lo sem condenação, julgamento, escolha? Porque, no momento em que
começamos a julgar, a avaliar, é uma parte do “eu” que está dirigindo, e,
portanto, condicionando o nosso pensamento, não é exato?
Posso, pois, estar apercebido da minha avidez, da
minha inveja, momento por momento? Estes sentimentos são expressões do “eu”, do
“ego”, não é verdade? O “ego” é sempre o “ego”, em qualquer nível que o
coloquemos. Seja “superior”, seja “inferior”, o “eu” está sempre compreendido
na esfera do pensamento. E posso eu estar apercebido desses sentimentos, ao
surgirem, momento por momento? Posso descobrir sozinho as atividades do meu
“ego”, quando, por exemplo, converso à mesa, quando jogo, quando escuto, quando
me acho num grupo de pessoas? Posso estar apercebido dos ressentimentos
acumulados, do desejo de causar impressão, de ser alguém? Posso descobrir que
sou ávido e estar apercebido da minha condenação da avidez? A própria palavra
“avidez” é uma condenação, não achais? Estar apercebido da avidez é também
estar apercebido do desejo de ficar livre dela, e é perceber porque desejamos
ser livres dela — é perceber todo o mecanismo. Isso não é um modo de agir muito
complicado; sua significação pode ser apreendida imediatamente. Começamos,
pois, a compreender, momento por momento, o crescimento constante do “eu”, com
sua presunção, suas “autoprojeções” — sendo tudo isso, basicamente,
fundamentalmente, a causa do temor. Mas se não se pode empreender nenhuma ação
para nos libertarmos da causa, o que nos cabe fazer, então, é só
estar apercebidos dela. Quando desejamos estar livres do “ego”, esse
próprio desejo faz também parte do “ego”; tendes, pois, uma batalha constante
no “ego”, em torno de duas coisas desejáveis, entre a parte que deseja e a
parte que não deseja.
Quando nos tornamos apercebidos do que se passa no
nível consciente, começamos também a descobrir a inveja, as lutas, os desejos,
os impulsos, as ansiedades existentes nos níveis mais profundos da consciência.
Quando a mente está muito interessada em descobrir o mecanismo total de si mesma,
então cada incidente, cada reação transforma-se num meio de descobrimento, de
autoconhecimento. Isso requer paciente vigilância, a qual não pode
ser exercida por uma mente que está sempre lutando, sempre a aprender “como”
ser vigilante. Vereis, assim, que as horas de sono são tão importantes como as
horas de vigília, pois a vida é então um mecanismo total. Enquanto não
conhecerdes a vós mesmo, o temor continuará a existir, e todas as ilusões
criadas pelo “eu” prosperarão.
O autoconhecimento, pois, não é um processo que se
aprende em leituras, ou a respeito do qual se pode especular: ele tem de ser
descoberto por cada um de nós, momento por momento, o que faz com que a mente
se torne sobremaneira vigilante. Nessa vigilância há uma certa
aquiescência, um percebimento passivo em que não existe desejo de ser ou de não
ser, e em que se encontra um maravilhoso sentimento de liberdade. Pode ele
durar só um minuto, um segundo, apenas, mas tanto basta. Essa liberdade não é
produto da memória; é uma coisa viva. Entretanto, a mente, depois de prová-la,
a reduz a uma lembrança, e deseja então mais. O estar apercebido desse mecanismo
total só é possível pelo autoconhecimento, e o autoconhecimento nasce
momento por momento, enquanto observamos nosso falar, nossos gestos, a maneira
como falamos, e os motivos ocultos que nos são subitamente revelados. Só então
podemos ficar livres do temor. Enquanto existe temor, não há amor. O temor
enche-nos de sombras o ser, e esse temor não pode ser lavado por nenhuma reza,
ideal, ou atividade. A causa do temor é o “eu”, o “eu” que é tão complexo nos
seus desejos, necessidades, ocupações. A mente tem de compreender a totalidade
aquele mecanismo; e essa compreensão só pode vir quando há vigilância
sem escolha.
Krishnamurti em, Percepção Criadora,
11 de julho de 1953
Krishnamurti em, Percepção Criadora,
11 de julho de 1953
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