A percepção libertária
não é produto do tempo
não é produto do tempo
SERIA interessante considerarmos o significado de "aprender" e "ensinar" — pois esta questão me parece importante. Porque, afinal de contas, vos reunistes aqui a fim de aprender alguma coisa, não é verdade? Quando ides assistir a uma conferencia, em geral o fazeis com o intuito de vos instruirdes, aprender alguma coisa de que porventura não tendes ainda conhecimento. Assim sendo, acho importante investigarmos o que estamos aprendendo e o que é que se está ensinando aqui, e espero que, no final deste breve preâmbulo, possamos entrar juntos neste assunto, de modo que se torne claro a cada um de nós o que pretendemos, quando vimos assistir a uma reunião desta natureza.
Estais aqui com o fim de aprender alguma coisa deste orador? Podeis ter vindo com a ideia de aprender algo que se vai ensinar; mas se, de modo nenhum, não é esta a intenção do orador, neste caso não se estabelecerá uma comunicação direta entre ele e os seus ouvintes e, por conseguinte, vos ireis daqui sentindo-vos um tanto desapontados e a perguntar-vos o que ganhastes com vossa vinda.
A fim de evitar completamente que isso aconteça, devemos apreciar esta questão de "aprender" e "ensinar", e espero estejais dispostos a fazê-lo junto comigo. É importante esclarecer bem esta ideia de que temos de aprender alguma coisa, porquanto este conceito, penso eu, traz no seu bojo muito malefício.
Pela aquisição de conhecimentos, pode alguém perceber diretamente algo verdadeiro, real, algo diferente das formulações da mente? Estais entendendo o que quero dizer? Existe percebimento direto pela instrução, pelo saber, ou só percebemos diretamente, quando não existe a barreira do saber?
Que se entende por "aprender"? Desejais encontrar a felicidade, a realidade, a serenidade, a liberdade; é isto que em geral estais a buscar, tateando no escuro. Vendo-vos descontentes, insatisfeitos com as coisas, as relações, as ideias, estais em busca de algo transcendental, e procurais um swami, um guru, ou X, que julgais possuir a qualidade que estais a buscar. Desejais aprender como alcançar essa extraordinária integração da totalidade da consciência humana e, assim, vindes aqui com a mesma intenção com que vos aproximais de qualquer instrutor religioso, ou seja a intenção de aprender. Afinal de contas, é esta a intenção da maioria das pessoas aqui presentes, e se tiverdes a bondade de prestar atenção ao que se está dizendo, estou bem certo de que não perdereis em vão o vosso tempo.
Ora, pode-se vos ensinar a ter percebimento direto? Pode realizar-se essa totalidade de integração, essa claridade de percebimento, mediante o saber, a instrução, ou por meio de algum método? O aprender uma técnica ou a observância de um dado sistema pode levar a esse resultado? Para a maioria de nós, aprender é adquirir uma nova técnica, substituir o velho pelo novo. Espero me esteja fazendo claro a este respeito.
Existem vários métodos, que bem conheceis, e um ou outro dos quais estais praticando, na esperança de perceberdes diretamente algo que se possa chamar a Realidade, o estado onde não existe "vir a ser", porém apenas Ser. Por essa mesma razão viestes ter aqui: com o propósito de aprender, não é verdade? Desejais saber qual é o método que este orador vos oferecerá para a revelação daquele estado extraordinário. Desejais saber como atingir esse estado, passo por passo, pela prática de certas formas de meditação, pelo cultivo da virtude, da autodisciplina, etc. Mas eu acho que nenhum método ode produzir o claro percebimento; pelo contrário.
Todo método implica tempo, não é exato? Quando praticais um método, precisais do tempo, como ponte sobre o intervalo entre o que é e o que deveria ser. O tempo é necessário, para se percorrer a distância criada pela mente entre o fato e a dissolução do fato, ou seja, o fim que se quer alcançar. Toda ideologia se baseia nessa ideia de consecução de um fim, através do tempo; e, assim, começamos a adquirir, a aprender e, por conseguinte, nos amparamos no Mestre, no guru, no instrutor, porque ele vai ajudar-nos a chegar lá.
Pois bem. O percebimento ou experiência direta daquela realidade depende do tempo? Existe um intervalo que é necessário transpor, pelo processo do conhecimento? Se existe, neste caso o conhecimento assume extraordinária importância. Então, quanto mais a pessoa souber, quanto mais se exercitar, quanto mais se disciplinar, etc., tanto maior será a sua capacidade de construir a ponte para a realidade. Admitimos que o tempo é necessário. Isto é, se sou violento, digo que é necessário tempo para eu chegar a um estado de não-violência; preciso de tempo para praticar a "não-violência", para controlar, disciplinar a mente. Aceitamos esta ideia; porém ela pode ser uma ilusão, pode ser totalmente falsa. O percebimento pode ser imediato, independente do tempo. Eu penso que, em absoluto, ele não depende do tempo — se posso empregar a expressão "penso", sem o intuito de transmitir uma opinião, mas de apresentar um fato real. Ou uma pessoa percebe, ou não percebe. Não há nenhum processo gradual de "aprender a perceber". É a ausência de experiência — baseada, esta, sempre no conhecimento — que dá o percebimento.
Isto está parecendo muito difícil ou abstrato demais? Deixai-me enunciar o problema de modo diferente.
Nossas atividades, nossas buscas, são todas egocêntricas. Para empregar uma palavra de uso corrente, nossa ação, nosso pensamento é egoísta, interessado unicamente no "eu"; e, como lemos ou ouvimos dizer que o "eu" é uma barreira, reconhecemos necessário que ele deixe de existir — não o "eu superior" ou o "eu inferior", mas o "eu", a mente que é ambiciosa, que tem medo, que é ardilosa, em suas atividades ditadas pela própria avidez, pela própria dependência, a mente resultado do tempo. Essa mente é egocêntrica; e pode esse egocentrismo ser removido imediatamente, ou tem de ser desbastado aos poucos, camada por camada, mediante um processo gradual de instrução, experiência, e continuidade do tempo? Compreendeis o problema, senhores?
Tende paciência, debateremos este assunto, mas preciso ainda dizer umas poucas palavras, se o permitis. Porque, afinal, nós estamos aqui para "experimentar", e não para aprender; e eu desejo diferençar entre "aprender" e "experimentar". Pode-se "experimentar" o que se aprende, mas nesse caso a experiência é condicionada pelo que se aprendeu. Uma pessoa pode aprender uma coisa e depois "experimentá-la" — isto é bem óbvio. Posso ler a vida do Cristo e emocionar-me muito, sentir-me vibrar a respeito dela e, posteriormente, "experimentar" aquilo que li. Posso ler o Gita, evocar toda sorte de ideias, e "experimentá-las". Tanto a leitura consciente como a instrução inconsciente, produzem certas formas de experiência. Podeis não ter lido um único livro, mas, sendo hinduísta, podeis estar condicionado por séculos de hinduísmo; consciente ou inconscientemente, a mente se tornou o repositório de certas tradições e crenças produtivas de "experiências" a que atribuís extraordinária importância. Mas, na realidade, se examinardes essas experiências, vereis que são, unicamente, a reação de uma mente condicionada.
Agora, o que estamos tentando averiguar nesta palestra, e bem assim nas próximas palestras que se realizarão aqui, é se pode haver experiência direta, destituída de todo e qualquer conhecimento, toda instrução, de modo que essa experiência seja verdadeira e não mera reação de nosso condicionamento como hinduísta, como budista, como cristão, ou membro de qualquer seita disparatada. O percebimento não pode ser verdadeiro, quando baseado em algum método, porque, é bem de ver, o método produz a sua peculiar experiência. Se creio no cristianismo ou noutra religião qualquer, e observo um método que me conduzirá à verdade, de acordo com o cristianismo, por certo a experiência que esse método produz não tem validade alguma. É uma experiência baseada em minha própria convicção, minha própria limitação, minha mente condicionada. O que se experimenta é puramente um produto daquele método particular, ao passo que isso de que estou falando é coisa de todo diferente.
Se percebemos que todo método é falso, ilusório, produto do tempo, e que o tempo não pode levar à experiência direta, então, esse próprio percebimento nos liberta do tempo. Nossa relação é então toda diferente. Percebeis, senhores? Não estamos aqui para aprender nenhum método ou técnica nova, nenhum "novo acesso à vida", e outras coisas que tais. Aqui estamos para libertarmos a mente de todas as ilusões e percebermos diretamente — e isso exige extraordinária atenção ao que se está dizendo, e não uma acidental comunicação entre nós, como se estivésseis apenas assistindo a mais uma conferência. O importante é que se liberte a mente do conhecimento e do método, das práticas baseadas naquele conhecimento, que só nos podem levar à coisa que ansiosamente desejamos. Eis por que é de grande importância compreender o que estou dizendo, perceber a ilusão que a mente criou, ou seja, o tempo necessário para adquirir, aprender, chegar, alcançar.
Não digais logo que aquela realidade, Deus, o Atman se acha em nosso interior, e outras coisas de igual natureza. Isto não é verdadeiro; é ideia vossa, superstição, pensar condicionado. Dizeis que Deus se acha dentro de nós mesmos, e o comunista, criado diferentemente, de pequenino, diz que não existe Deus nenhum, e que é absurdo o que dizeis. Estais condicionado para crer de uma certa maneira, e ele para crer de outra maneira; portanto, todos dois sois iguais. Mas, tudo o que nos interessa aqui, nesta nossa palestra, é descobrir se a mente pode, de pronto, despojar-se desta crença, deste condicionamento, a fim de que surja o percebimento direto. Podemos viver mil vidas, praticando a autodisciplina, sacrificando, subjugando, meditando, mas por este meio nunca seremos levados ao percebimento direto, o qual só é realizável em plena liberdade, e não por meio de controle, de subjugação, de disciplinas; e só pode aparecer a liberdade, quando a mente se torna apercebida, prontamente, de seu condicionamento, pois então se verifica a cessação desse condicionamento. Pois bem, vamos apreciar esta questão?
Krishnamurti, Primeira Conferência em Benares, 11 de dezembro de 1955