O mecanismo do pensar e
o transcender da mente
o transcender da mente
Reputo especialmente importante compreender-se a questão do conhecimento, do saber. Nós, em geral, parecemos tão sequiosos de saber; estamos sempre a adquirir não só posses, coisas, mas também ideias. Andamos sempre de um instrutor para outro, de um livro, de uma religião, de um dogma, para outro. Passamos a vida adquirindo ideias, acreditando ser, essa aquisição, importante para a compreensão da existência. Desejo, pois — se me é permitido — examinar esse problema, para ver se essa atividade de acrescentamento, por parte da mente, produz liberdade, e se o saber pode resolver algum problema humano. O saber poderá resolver problemas superficiais, mecânicos; pode ele, porém, libertar a mente, tornando-a capaz de perceber de modo direto o que é verdadeiro? É sem dúvida importantíssimo compreender-se esta questão, porquanto sua compreensão nos levará à revolta contra a mera metodologia, que constitui um obstáculo, salvo quando se trata de alcançar algum resultado mecânico. Estou falando a respeito do mecanismo psicológico da mente e considerando se é possível despertar a capacidade criadora individual — que naturalmente é da máxima importância, não achais? A aquisição de saber, tal como o entendemos, gera capacidade criadora? Ou, para tornar-se capaz de conhecer esse estado criador, a mente deve estar livre de toda atividade acumuladora?
Quase todos nós lemos livros ou assistimos a conferências, com o fim de compreender; quando temos um problema, estudamo-lo, ou procuramos alguém para conversar sobre ele, esperando que assim o problema seja resolvido ou possamos descobrir algo novo. Estamos sempre recorrendo a outros ou à nossa própria experiência — que é na essência conhecimento — na esperança de resolvermos os numerosos problemas que se nos antepõem. Recorremos aos intérpretes — os que dizem compreender algo mais — os intérpretes não só destas palestras, mas também dos livros sagrados. Parecemos incapazes de ocupar-nos com um problema diretamente, sozinhos, sem contar com a ajuda de ninguém. E não é importante averiguar se a mente, na sua atividade acumuladora, é capaz, em algum tempo, de resolver algum problema psicológico, espiritual? Não deve a mente achar-se totalmente desocupada, para que possa perceber a verdade existente em qualquer conflito humano?
Espero tenhais paciência para examinar este problema não tão só enquanto eu o descrevo, pois todos nós somos por ele atingidos. Afinal, porque vos achais aqui? Alguns, por certo, aqui estão por mera curiosidade; desses não nos ocuparemos. Outros, porém, devem estar muito seriamente interessados; e se estais interessados, qual a intenção que vos sustenta o interesse? É a intenção de compreender o que estou dizendo e, em caso de incompreensão, pedir a outro que explique o que eu disse, fazendo assim com que surja o “mecanismo da exploração”? Ou estais a escutar-me com o fim de descobrir se o que digo é verdadeiro em si, e não porque eu o digo ou porque outro vo-lo explica? Positivamente, os problemas de que tratamos aqui são problemas vossos, e se puderdes vê-los e compreendê-los diretamente, por vós mesmos, resolvê-los-eis.
Todos nós temos muitos problemas, e há evidente necessidade de uma transformação; mas pode a transformação realizar-se pelo “mecanismo” da mente? Refiro-me à transformação fundamental, e não à mera reforma sociológica ou econômica. Sem dúvida, foi a mente que criou os nossos problemas; e pode ela resolver os problemas que criou? A solução desses problemas se encontra na aquisição de mais saber, de mais ilustração, no aprender novas técnicas, novos métodos, novos sistemas de meditação, no passar de um instrutor para outro? Tudo isso é evidentemente muito superficial; e não importa averiguar o que é que torna a mente superficial, qual é a causa da superficialidade? Para a maioria de nós, o problema é este, não é? Somos muito superficiais, não sabemos examinar profundamente os nossos conflitos e os nossos problemas; e quanto mais recorremos a livros, a métodos, a exercícios, à aquisição de saber, tanto mais superficiais nos tornamos. Este é um fato óbvio. Pode uma pessoa ler livros incontáveis, assistir a conferências altamente intelectuais, acumular vastos cabedais de ilustração; mas se não souber penetrar em si mesma, para descobrir a verdade, para compreender o mecanismo total da mente, os seus esforços, por certo, só haverão de torná-la mais superficial ainda.
Nessas condições, ser-vos-á possível não permanecer meramente no nível superficial, verbal, mas descobrir o mecanismo do vosso próprio pensar e transcender a mente? O que estou dizendo não é muito complicado. Estou apenas descrevendo o que se está passando dentro de cada um de nós; mas, se viveis no nível verbal, se a descrição vos satisfaz e achais desnecessário experimentar diretamente, então, estas palestras serão de todo inúteis. Recorrereis, nesse caso, aos intérpretes, aos que se propõem explicar-vos o que estou dizendo — coisa absolutamente absurda. É muito melhor “escutar” uma coisa diretamente, do que pedir a outro que explique a sua significação. Não podemos chegar-nos à fonte sem necessitarmos de interpretação, sem que nos guiem para descobrirmos como é a fonte? Se somos guiados para descobrir, isso não é descobrimento, não achais?
Por favor, compreendei bem este ponto. Para se descobrir o que é verdadeiro, o que é real, não se precisa de nenhuma indicação. Quando vos guiam para descobrir, isso não é descobrimento: apenas vedes o que alguém vos mostrou. Se descobris sozinho, porém, a experiência é então de todo diferente; é uma experiência original, aliviada do passado, do tempo, da memória, inteiramente livre da tradição, do dogma, da crença. Esse descobrimento, que é criador, é totalmente novo; mas, para chegar a esse descobrimento, deve a mente ser capaz de penetrar e ultrapassar todas as camadas superficiais. Podemos fazê-lo ? Visto serem todos os nossos problemas — políticos, sociais, econômicos, pessoais — essencialmente problemas religiosos; visto serem reflexos do problema interior, do problema moral, — a menos que resolvamos este problema central, todos os demais se multiplicarão. Esse problema não pode ser resolvido pelo expediente de seguirmos alguém, pela leitura de um livro, pela prática de uma técnica. No descobrimento da realidade, são inteiramente inúteis todos os métodos, uma vez, que tendes de descobrir por vós mesmos. O descobrimento implica completa independência, e a mente não pode ser independente se está vivendo de explicações, de palavras, praticando algum método ou dependendo da tradução do problema feita por outro.
Nessas condições, compreendendo que, desde a infância, nossa educação, nosso ensino religioso, nosso ambiente social, concorreram todos para tornar-nos extremamente superficiais, pode a mente colocar de parte a sua superficialidade, esse constante “mecanismo” de aquisição, negativa ou positiva, — pode ela colocar de parte tudo isso e ser, não como uma folha em branco, mas desocupada, criadoramente vazia, de modo que não esteja mais a fabricar seus próprios problemas e buscando solucioná-los? Por certo, é por sermos superficiais que não sabemos penetrar profundamente, descer às profundezas de nós mesmos; e imaginamos poder alcançar essas profundezas aprendendo coisas ou ouvindo conferências.
Ora, que é que faz a mente superficial? Por favor, não me escuteis simplesmente; antes, observai, sêde apercebidos de vosso próprio pensar, quando se vos coloca tal questão: que faz a mente superficial? Porque não pode a mente experimentar algo que é verdadeiro, existente além de suas próprias “projeções”? Não é principalmente a satisfação, que cada um de nós está buscando, que torna a mente superficial? Desejamos a todo custo ser lisonjeados, encontrar satisfação; por essa razão procuramos métodos de alcançar esse objetivo. E existe de fato, em algum tempo, uma coisa tal, como seja a satisfação? Embora possamos satisfazer-nos temporariamente e modificar o objeto de nossa satisfação conforme a nossa idade, existe satisfação em algum tempo? O desejo busca constantemente satisfazer-se e, por isso, estamos sempre a passar de uma satisfação para outra, e quando nos vemos embaraçados nas complicações de cada satisfação nova, mais uma vez nos tornamos insatisfeitos e procuramos desvencilhar-nos. Apegamo-nos a pessoas, seguimos instrutores, aderimos a grupos, lemos livros, adotamos sucessivamente várias filosofias; mas o desejo central permanece o mesmo: queremos satisfazer-nos, estar em segurança, tornar-nos alguém, alcançar um resultado, conseguir um fim. Esse processo não é, todo ele, uma das causas primárias da superficialidade da mente?
E não é a mente superficial por pensarmos sempre em termos relativos à aquisição? A mente está sempre ocupada ou em adquirir, ou em rejeitar, despojar-se daquilo que adquiriu. Há tensão entre o adquirir e o rejeitar, e vivemos sempre nessa tensão; e ela não contribui para a superficialidade da nossa mente?
Outro fator que ocasiona a superficialidade é a incessante ocupação da mente em torno de suas tribulações, em torno de alguma filosofia, de Deus, de ideias, de crenças, ou a respeito do que ela deve fazer ou do que não deve fazer. Enquanto a mente viver absorvida, preocupada, empenhada com relação a alguma coisa, não será ela sempre superficial? Por certo, só a mente que está desocupada, totalmente livre, não emaranhada em nenhum problema, despreocupada de si mesma, de suas realizações, dores, alegrias e tristezas, — só essa mente pode deixar de ser superficial. E não pode a mente viver dia por dia, fazendo as coisas que tem de fazer, livre dessa preocupação?
No que respeita a quase todos nós, com que está ocupada a nossa mente? Quando observais a vossa própria mente, quando estais percebidos dela, com que está ela preocupada? Está preocupada a respeito de como tornar-se mais perfeita, ter mais saúde, obter um emprego melhor; preocupada sobre se é amada ou não é amada, se está progredindo; sobre a maneira de sair de um problema sem cair noutro; enfim, está preocupada consigo mesma, não é verdade? Por diferentes maneiras, ela está perenemente a identificar-se com o mais alto ou com o humílimo. E pode a mente sempre ocupada consigo mesma, ser profunda? Uma das nossas dificuldades, talvez a maior, não é essa de que as nossas mentes se tornaram sobremaneira superficiais? Surge alguma dificuldade e logo corremos para alguém, pedindo ajuda; não temos capacidade de penetração, de descobrimento; não somos investigadores de nós mesmos. E pode a mente investigar-se e conhecer-se a si mesma, se está ocupada com algum problema? Os problemas que criamos com a nossa superficialidade exigem, não soluções superficiais, mas a compreensão do que é verdadeiro; e não pode a mente, conhecedora das causas da sua superficialidade, compreendê-las, sem lutar contra elas, sem procurar afastá-las para o lado? Porque, no momento em que lutamos, isso, em si, se torna outro problema, uma nova ocupação, que apenas aumenta a superficialidade da mente.
Deixai-me expressá-lo assim: se compreendo que minha mente é superficial, que devo fazer? Percebo, pela observação, sua superficialidade. Vejo que estou sempre recorrendo aos livros, aos líderes, à autoridade sob várias formas, aos Mestres, a algum iogue; conheceis bem as diferentes maneiras pelas quais procuramos satisfazer-nos. Percebo tudo isso. Ora, não me será possível pôr tudo isso de parte, sem esforço, sem manter-me ocupado a seu respeito, sem dizer: “preciso pôr isso de parte, para tornar-me mais profundo, mais compreensivo”? Tornar-nos algo mais — não é essa a preocupação constante da nossa mente e uma causa primária de sua superficialidade? Isto é o que todos desejamos: compreender mais, ter mais posses, maior capacidade intelectual, ser melhor no jogo, ser mais belos, mais virtuosos; sempre mais, mais e mais.
Tende a bondade de prestar atenção: quando a mente está em busca do mais, do melhor, ela é incapaz de compreender a si mesma, tal como é; porque está pensando sempre em adquirir mais, em ir mais longe, em alcançar resultados maiores, fica impossibilitada de compreender o seu verdadeiro estado. Entretanto, quando a mente percebe o que ela é realmente, sem comparação nem julgamento, tem então a possibilidade de se tornar profunda, de passar além. Enquanto estamos preocupados com o mais, em qualquer nível da consciência, tem de haver superficialidade; e uma mente superficial não encontrará nunca o que é real, jamais conhecerá a Verdade, Deus. Poderá concentrar-se na imagem de Deus, imaginá-la, conjecturar e forjar esperanças; mas isso não é a Realidade. O de que se necessita, portanto, não é de técnica nova, novo grupo social ou religioso, mas, sim, indivíduos que sejam capazes de ultrapassar o superficial; e não se pode transcender o superficial, quando a mente está ocupada com o mais ou com o menos. Se a mente está toda interessada em ter mais propriedade ou menos propriedade; se a propriedade constitui a sua constante preocupação, esta mente, por certo, é muito superficial e muito estúpida. E a mente aplicada em tornar-se mais virtuosa é igualmente estúpida, pois está também interessada em si mesma e nas suas aquisições.
Assim, pois, a mente é resultado do tempo, que é o mecanismo do mais; e não pode a mente estar apercebida desse mecanismo e ser o que é, sem procurar modificar-se? Certo, a transformação não pode ser efetuada pela mente. A transformação se realiza quando se vê a verdade. E a verdade não é o mais. A transformação — única revolução real — se acha nas mãos da Realidade, e não na esfera da mente.
Não importa, por conseguinte, que cada um de nós não apenas se limite a ouvir estas conferências, mas que todos nos tornemos apercebidos de nós mesmos e permaneçamos neste estado de percebimento, sem recorrermos a intérpretes ou guias e sem desejarmos algo mais? Nesse estado de percebimento, em que não existe escolha, condenação ou julgamento, percebereis tudo o que se passa, conhecereis o mecanismo da mente, tal como é de fato; e quando a mente está assim apercebida de si mesma, ela se torna tranquila, despreocupada, serena. E só nessa tranquilidade existe a possibilidade de se perceber o que é verdadeiro e de realizar-se a transformação radical.
Krishnamurti em, Percepção Criadora,
4 de julho de 1953
Krishnamurti em, Percepção Criadora,
4 de julho de 1953