O mecanismo do poder e da tirania
PERGUNTA: Aceitais a opinião de que o comunismo é a maior das ameaças ao progresso humano? Se não, que pensais a seu respeito?
KRISHNAMURTI: Não há dúvida de que qualquer forma de tirania é um mal. Qualquer forma de poder sobre outros é coisa má — seja o modesto poder exercido por um burocrata, em pequena cidade, seja a tirania em vasta escala exercida por um grupo de pessoas que estão traçando planos para o futuro do homem, em conformidade com uma ideologia, em suposto benefício do todo. Tal poder é uma coisa má. Mas consideremos esta questão com toda a simplicidade, para vermos as dificuldades que encerra.
Uma sociedade, de toda evidência, precisa ser planejada. Mas que acontece quando se traça o plano de uma sociedade e que acontece quando se põe em execução esse plano? Torna-se necessária uma entidade administrativa investida de autoridade, para levá-lo a efeito, o que significa que uns poucos se tornam detentores do poder. E esse poder se torna um mal, quando exercido em nome de Deus, em nome da sociedade, ou em nome de uma futura Utopia. Entretanto, necessita-se de planos, porque, do contrário, a sociedade se torna caótica. Vem, assim, a existência o problema do poder conferido a uns poucos que se tornam tirânicos, cruéis, que dizem: "Prevemos o futuro e vós não o prevedes. Estamos pondo em execução um plano que irá beneficiar o homem; portanto, tendes de submeter-vos, senão vos liquidaremos". Nestas condições, é possível planejar uma sociedade em que não se exerça tirania sobre o homem? A questão é só esta. "Comunismo" é apenas um nome novo para um jogo que se vem fazendo há séculos. A Igreja Católica Romana já fez este mesmo jogo, com sua Inquisição, suas excomunhões e torturas, para salvação das almas. E várias formas de tirania se encontram na história de todas as outras religiões. Isto, portanto, não é novidade; só que agora tem um nome novo, com um novo grupo de pessoas, que pretendem prever o futuro. A tirania organizada, a tortura, a destruição, foram perpetradas no passado por sacerdotes, em nome de Deus; e são hoje perpetradas pelos ditadores e comissários, em nome do Estado ou do Partido. Nosso problema, por conseguinte, não é a palavra "comunismo" mas, sim, de saber se o homem vive para o bem da sociedade ou se a sociedade existe para o bem-estar do homem. A religião e o governo existem para educar o homem, tornando-o livre para descobrir por si mesmo o que é, verdadeiro, ensinando-o a ser bom, a ter a visão do grandioso? Ou existem para tiranizar o homem, brutalizá-lo, liquidá-lo, só porque uns poucos têm o poder de destruir?
Temos, pois, aí, uma questão muito complexa. O que tem importância não é o que vós pensais ou o que eu penso a respeito do "comunismo", porém, sim, averiguar por que razão a sociedade, comunista ou democrática, compele o homem ao conformismo, e porque o indivíduo se submete a isso. Sem dúvida, só a mente livre é capaz de investigar, e não aquela que está amarrada a um livro, uma religião organizada, uma ideologia. Uma sociedade que condiciona a mente para adorar o Estado, e uma sociedade que condiciona a mente para adorar a ideia chamada "Deus", são igualmente tirânicas.
Mas, pode existir uma sociedade que ajude efetivamente o homem, o indivíduo, a ser bom, a não ser ávido, a ser livre da inveja, da ambição? É este naturalmente o nosso maior interesse. O homem só pode ser bom quando é livre — livre, não para fazer o que entende, mas para compreender o movimento total da vida. Para isso se requer uma escola completamente diferente, uma educação completamente diferente; requerem-se pais e mestres que compreendam tudo o que a liberdade implica. De outro modo, só teremos mais tirania, e não menos, porque o Estado só quer eficiência. Precisa-se de homens eficientes, para se ter uma nação industrializada, precisa-se de homens eficientes para matar, lutar, destruir — e nisto se concentra toda a atenção dos governos atualmente existentes. E os governos se separam mais ainda dos indivíduos, pela ação das chamadas religiões. Nenhuma religião organizada ousa sacudir o jugo e dizer para o governo "Estais errado". Pelo contrário, abençoam canhões e cruzadores de batalha . Durante a última guerra apareceu um livro intitulado "God was my co-Pilot" (Deus foi meu co-piloto) de autoria de um homem que bombardeara cidades, assassinando milhares de pessoas. Naturalmente aqui em Madanapale esta questão da guerra não vos toca de perto. Mas não há dúvida de que a guerra é apenas uma expressão, uma manifestação ampliada de nossa vida de cada dia. Vivemos numa batalha sem tréguas com nós mesmos e com o nosso próximo, somos ambiciosos, queremos poder, mais prestígio, posição mais alta; e este mesmo espírito aquisitivo se manifesta no grupo e na nação. Queremos ser poderosos, para defender a nós mesmos ou para agredir a outros, e assim por diante...
Não importa, pois, o que vós pensais ou o que eu penso a respeito do comunismo ou da democracia; o que importa é descobrir como se pode libertar a mente. Porque, só a mente livre é capaz de compreender a Verdade, conhecer Deus, e sem esta compreensão a vida muito pouco significa. É a compreensão da Verdade ou Deus — a real experiência dele, não a crença nele — que tem a máxima importância, principalmente nesta hora em que o mundo se encontra em tamanha miséria e caos.
Krishnamurti, Segunda Conferência em Madanapale
19 de fevereiro de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana