O que se entende por percepção total?
APARTE: A mente parece estar sempre a dar voltas, sem nunca ultrapassar as próprias limitações.
Krishnamurti: Vamos investigar um pouco esta questão, já que não desejamos que esta seja apenas uma reunião de “perguntas e respostas”? Em primeiro lugar, antes de dizermos que a mente anda “a dar voltas” não é necessário descobrirmos o conteúdo total da mente, averiguarmos o que entendemos por “mente”? Ora, como responder a uma pergunta desta natureza? Qual o “mecanismo” que começa a funcionar quando se faz tal pergunta? Tende a bondade de observar a vossa própria mente, sem aguardar resposta minha. Eu fiz uma pergunta: Que é a mente? Como reagis, e que é “reagir”? Como observais uma coisa qualquer? Como observais uma árvore? Lançais-lhe um rápido olhar superficial, ou observais o tronco, os ramos, as folhas, as flores, os frutos: a totalidade da árvore? Como se observa uma coisa totalmente? Espero não estar tornando a questão abstrata demais, mas acho necessário examiná-la bem. Quando fazemos a pergunta: “Que é a mente?” — como reagis a este desafio? De que centro, de que fundo (background) observais? E para observar uma coisa inteiramente, de maneira nova, totalmente, que fazeis?
APARTE: É preciso observar com percepção total...
KRISHNAMURTI: E que se entende por “percepção total”? Compreendeis? Notai, por favor, que não estou cavilando, mas será recomendável não fazermos uso de termos substitutos. Prossigamos juntos, um bocadinho. Que se entende por “observar”, “ver”, “perceber”? Quando digo que vejo uma coisa com toda a clareza, que significa isso? Significa que não vemos a coisa apenas fisicamente, com os olhos, mas também que ultrapassamos os limites das palavras, não é verdade? Vejo que o nacionalismo é uma estúpida modalidade de “emocionalismo” , destituída de racionalidade e de sentido. Vejo-o — eu, não vós. Primeiro, há o percebimento imediato de sua falsidade e, em seguida, dou as explicações: como separa as pessoas, sua natureza venenosa, quanto é destrutivo um indivíduo dizer-se indiano, inglês, alemão ou o que quer que seja. Ninguém mo precisa dizer, nem tenho necessidade de raciocinar a esse respeito, chegar a uma conclusão por meio de dedução ou indução. Percebo tudo isso num relance, com percepção imediata, exatamente como quando vejo que pertencer a qualquer religião organizada significa uma existência em extremo corruptora e destrutiva?
Ora, que é essa capacidade de ver? Vejo a totalidade da mente? Não os segmentos da mente, a parte intelectual, a parte emotiva, a parte que conserva e utiliza o conhecimento, a parte que é ambiciosa e contradiz a si própria não desejando ser ambiciosa, etc., etc. Percebo a coisa em sua totalidade, ou fico à espera de que alguém ma indique?
Seria muito interessante e lucrativo — se me permitis esta expressão comercial — se pudéssemos, cada um de nós, descobrir o que se entende por ver. Ora, eu não preciso que ninguém me diga que estou com fome. Sei que tenho fome. Nenhuma descrição, por mais eloquente que seja, me pode dar a experiência da fome. Ora, podemos ter a experiência direta da mente como totalidade? E quando tendes a experiência de qualquer coisa como totalidade, de onde vem essa experiência?
Desejais experimentar “a totalidade da mente”, não? Desejais experimentar o estado em que se verifica o sentimento total da vida, o sentimento total do desapego a uma dada coisa. Mas, como sabereis o que é “a totalidade da mente”? A experiência está sempre em relação com o conhecido, não é verdade? E se nunca experimentastes a totalidade da mente, como a conhecereis? Percebeis o problema? Por favor, não concordeis, apenas, porquanto isso encerra uma porção de coisas.
Quando viajamos de avião de um ponto para outro, trinta ou quarenta mil pés abaixo de nós se estende a terra; e, sobrevoando o Paquistão, o Irã, o Oriente Médio, a ilha de Creta, a Itália, a França, a Inglaterra, a América etc., sabemos que tudo está separado pelas divisões artificiais criadas pelo homem, mas existe o sentimento da totalidade da Terra, desta Terra inteira, tão extraordinariamente bela!
Ora, para sentirmos a qualidade dessa totalidade, podemos experimentá-la em termos do que já conhecemos? Ou trata-se de coisa que não pode ser experimentada em termos de reconhecimento?
Talvez eu esteja entrando rapidamente demais na questão, e, pois, perguntemos mais uma vez a nós mesmos: Que é a mente? Examinemo-la, descubramo-la. A mente é a capacidade de reconhecer, de acumular conhecimentos na forma de memória; é o resultado de séculos de esforço humano, experiência, conflito, e das presentes experiências individuais em relação ao passado e ao futuro; é a capacidade de planejar, de comunicar, de sentir, de pensar, racional ou irracionalmente. Existe a mente de sentimentos mansos, quietos, serenos, e também a mente brutal, cruel, “superior”, arrogante, vã; a mente em estado de autocontradição, solicitada em diferentes sentidos. Esta é a mente de quem diz: “sou inglês”, ou “americano” ou “indiano”. Existe a mente inconsciente, o profundo reservatório coletivo, hereditário; e há a mente superficial, educada de acordo com uma certa técnica, um certo código de conduta, de ação, de conhecimento. Esta é a mente que busca, que deseja a permanência, a segurança; a mente que vive da esperança, mas só conhece a frustração, fracasso, desespero; a mente que pode lembrar-se, rememorar; a mente muito destra e exata; a mente que sabe o que é amar e desejar ser amado.
Tudo isso, por certo, constitui a totalidade, não? Essa é a mente que vós e eu possuímos — e os animais também, embora em menor escala. E há, ainda, a mente que diz que precisa transcender tudo isso, alcançar um certo ponto, experimentar uma totalidade, um estado atemporal, imensurável.
Tudo isso, pois, constitui a mente. Conhecemo-la por segmentos quando sentimos ciúme, raiva, ódio; ou conhecemo-la na autocontradição; ou por meio de sonhos, sugestões ou intuições provenientes do passado. Tudo isso constitui a mente. É a mente que diz: “Sou a alma”, “sou o Atman”, o “eu superior”, isto, aquilo e aquilo outro... A mente que se acha aprisionada dentro dos limites do tempo — pois tudo isso se relaciona com o tempo. A mente escrava das palavras, assim como os ingleses são escravos das palavras “Rainha”, “Cristo”; e os hindus, escravos de sua própria coleção de palavras; e os chineses e os comunistas, escravos das suas, e assim por diante.
Agora, percebendo tudo isso, como proceder? Que é, com efeito, a mente?
Consideremos a questão de maneira diferente. Vós vedes, senhores, que se necessita de mudança; mas mudança calculada não é mudança nenhuma. A mudança que visa a um certo resultado, por meio de exercício, disciplina, controle, impiedosa dominação, é, meramente, a continuação da mesma coisa sob disfarce diferente. E a mudança progressiva, evolutiva, disso já tratamos e é assunto liquidado. A única mudança verdadeira é a mudança radical, imediata. Como pode a mente alcançar essa mudança, depois de se tomar livre de seu condicionamento, suas brutalidades, suas ações estúpidas, seus temores, sua “culpa”, suas ansiedades e, portanto, tornar-se nova? Digo que isso é possível, mas não pelo processo analítico, a investigação, o exame etc. Digo que é possível “limpar a lousa” de um só golpe, instantaneamente. Não traduzais isto como “graça de Deus”; não digais: “Isso pode ser possível a outro, mas não a mim” — porque, assim, não estamos enfrentando o problema, porém evitando-o. Eis por que eu disse no começo que necessitamos de um pensar muito claro e muito preciso, de implacável investigação.
APARTE: Essa eliminação instantânea... nela, decerto, não pode haver pensamento de nenhuma espécie.
KRISHNAMURTI: Mas como pode ela ser feita, qual a ação necessária? Compreendeis, senhores, o que quero dizer? Sabeis muito bem o que está acontecendo no mundo — talvez melhor do que eu, pois não costumo ler jornais nem estudá-los; mas viajo muito e vejo muita gente, pessoas “importantes’’ e pessoas “insignificantes”, e escuto. Sabeis que há necessidade de uma tremenda revolução interior, para fazer frente ao desafio deste mundo caótico e conturbado. Digo que ela é possível e desejo, se permitis — sem interromper vosso exame — continuar a investigar nesta direção. Promover uma transformação radical — não é este o vosso problema, quer sejais jovens, quer sejais velhos? Assim, como empreender este trabalho?
APARTE: Isto está parecendo algo que estamos tentando “pegar”, mas não podemos...
KRISHNAMURTI: Quando tentamos “pegar”, quando tentamos capturar uma coisa, não há dúvida de que já a estamos traduzindo em termos do velho. Senhor, não deveis ver claramente se este problema vos concerne? Se eu vos estou impondo o problema, tem de haver necessariamente um estado de contradição entre vós e mim. Não estou impondo o problema; apenas o estou enunciando. Se não o vedes, cabe-nos examiná-lo. Mas, se o vedes, ele é então vosso problema, e não meu. Então, vós e eu estamos em relação; estamos em contato um com outro, procurando uma solução. E se o problema não vos concerne, digo-vos então: “Por que não?” — Vede, por favor, o que se passa no mundo: uma crescente tendência para a “exteriorização”... as coisas exteriores a se tornarem cada vez mais importantes... voa até à Lua, ver quem chega lá primeiro... quantas infantilidades se estão tornando hoje em dia de tremenda importância! Assim, se este problema atinge a todos nós, como a ele devemos aplicar-nos?
APARTE: Só podemos responder que não sabemos.
KRISHNAMURTI: Quando dizemos “Não sei”, que queremos dizer?
APARTE: Eu quero dizer isso, exatamente.
KRISHNAMURTI: Não, desculpai-me, não quereis dizer isso. Deixai-me esclarecer melhor, porquanto há diferentes estados de “saber” e “não saber”. Se vos fazem uma pergunta familiar, sabeis responder imediatamente, não? Porque estais familiarizado com ela, vossa resposta é instantânea. Se a pergunta é mais complicada, precisais de certo tempo para responder; e a demora entre a pergunta e a resposta é o “mecanismo” de pensamento, não é? Esse pensar é uma consulta à memória, para encontrar a resposta. Isto é óbvio; não estou falando de coisa complicada, pois isso é muito simples. Depois, se vos é feita outra pergunta mais complicada ainda e à qual momentaneamente não sabeis que resposta dar, dizeis: “Não sei”; mas ficais em expectativa, esperando descobrir a resposta no arquivo de vossa memória ou por informação de outra pessoa. Assim, ao dizerdes “Não sei”, isso significa que estais esperando, que estais na expectativa de descobrir a resposta. Agora, um minuto. Podeis dizer honestamente “Não sei” — sem isso significar expectativa nem consulta à memória? Temos, pois, dois estados, quando se pergunta como pode tornar-se existente uma mente nova: Podeis responder “não sei”, significando que esperais que eu vo-lo diga; ou de fato não sabeis e, por conseguinte, não há expectativa nem desejo de experimentar algo; e esta pode ser a coisa essencial.
Voltemos um pouco atrás, pois acho importante compreender o que se entende por perceber, ver, observar. Como vemos realmente uma coisa?
APARTE: Parece-me que só podemos ver através de palavras.
KRISHNAMURTI: Vós compreendeis através de palavras? Naturalmente nós nos servimos de palavras para fins de comunicação, para que possais falar comigo e eu falar convosco; mas isto não significa escravização à palavra. Percebeis como estamos escravizados às palavras? As palavras “inglês”, “russo”, “Deus”, “amor” — não somos escravos delas? E se sois escravos de palavras, como podeis compreender uma coisa total, não contida numa palavra? Se sou escravo da palavra “amor” — palavra de que tanto temos abusado e tanto temos corrompido — posso compreender a natureza total do amor, que há de ser necessariamente uma coisa extraordinária? Todo o universo está contido no significado desta palavra.
Mas, infelizmente, somos escravos das palavras e estamos tentando alcançar algo que se acha além dos limites verbais. Extirpar, destroçar as palavras e ficar livre delas — isso dá invulgar percebimento, vitalidade, vigor. E é necessário tempo para nos libertarmos das palavras? Dizeis “preciso refletir primeiro” ou “preciso exercitar o percebimento” ou “vou ler Bertrand Russel”? Ou vedes deveras que a mente escrava da palavra é incapaz de olhar, de observar, sentir, ver? — e esta própria clareza, esta própria verdade não destrói a escravidão?
PERGUNTA: Poder-se-ia ver, por um instante, e logo a mente interferir?
KRISHNAMURTI: Vedes, por um instante, que o nacionalismo é venenoso e, logo a seguir, nele recaís?
Percebemos realmente que somos escravos das palavras? O comunista é escravo das palavras “Marx”, “Stalin”, etc. E o chamado cristão é escravo do símbolo, da Cruz, e do respectivo jogo sutil de palavras. Ide a Roma, ide a qualquer parte do mundo, e o que se encontra é sempre a palavra.
E talvez sejamos também escravos da palavra “mente”. Adoramos a mente, e nossa educação consiste apenas em cultivá-la. E, por certo, o que estamos tentando descobrir é a totalidade de alguma coisa que não é a palavra: o sentimento que abarca a totalidade, sem a barreira das palavras.
Krishnamurti, Londres
02 de maio de 1961, O Passo Decisivo