Atenção completa é a bem-aventurança completa
Nossa busca, principalmente em matéria religiosa, afigura-se-me sobremodo superficial. Não parecemos capazes de ir além dos níveis superficiais. A maioria de nós passa os dias buscando certa Realidade que o nosso pensar condicionado "projetou" ou só é capaz de compreender superficialmente. Não é um problema que interessa à maioria de nós o de investigarmos muito profundamente, ultrapassarmos os níveis superficiais, livres de todos os psicólogos, todos os profetas, instrutores, Salvadores, Mestres, e disciplinas, de modo que, como indivíduos, possamos realmente descobrir o que é verdadeiro? Parecemos incapazes disso, pois estamos sempre buscando apoio, confirmação, naqueles que supomos terem já achado a Verdade, ou nos propagandistas das diferentes religiões. Nenhuma confiança temos na nossa própria capacidade de descobrir. Se adquirirmos confiança na nossa capacidade, então possivelmente estaremos livres para descobrir o que é verdadeiro, aquilo que transcende os limites da mente. Mas como adquirir essa capacidade? Porque, se a tivermos, estaremos então livres, libertados de toda obediência, toda autoridade, toda tendência à imitação, ao conformismo com o padrão estabelecido por determinada religião ou filosofia. Se tivermos a capacidade de investigar verdadeiramente, profundamente, de penetrar até as raízes do nosso ser, sem desfigurarmos o que vemos, sem termos medo de não descobrir, não achar um resultado, teremos então a possibilidade de libertar-nos de toda influência cultural, seja do Oriente, seja do Ocidente. Porque nenhuma cultura, assim me parece, pode ajudar-nos a achar a realidade, o imensurável, o atemporal. A influência ocidental ou oriental nos tem condicionado de tal maneira, a tal ponto moldado a nossa mente, que apenas somos rapazes de pensar dentro do padrão de nossa cultura. Não creio que a cultura possa ajudar-nos, em qualquer circunstância que seja. Pelo contrário, acho que devemos estar livres dela, totalmente livres, o que significa que devemos estar livres do desejo de reconhecimento pela sociedade. O homem capaz de descer até às raízes das coisas, só esse é um verdadeiro indivíduo. Presentemente, somos "a massa", o corpo coletivo, resultado da cultura, da tradição, de crenças várias e experiências condicionadas. Por certo, só quando estamos livres de tudo isso podemos ser verdadeiramente individuais; e é só então que a realidade pode despontar. Mas como adquirir essa capacidade que nos libertará de toda autoridade, em matéria espiritual, de modo que sejamos verdadeiros indivíduos, capazes de descobrir por nós mesmos, sem precisarmos do estímulo, da confirmação, do apoio de ninguém? Considero esta uma pergunta fundamental. Raramente fazemos perguntas fundamentais; e, se as fazemos, deixamo-nos satisfazer facilmente pelas respostas superficiais, pelas palavras de outro.
Assim, pode-se adquirir aquela capacidade? Não no curso do tempo, o que, além do mais, é evasão; mas podemos tê-la imediatamente, vós e eu? Pode-se ultrapassar o nível superficial? Que é que me impede de ter a clareza necessária para compreender o todo, a totalidade do meu ser? No próprio "processo" da compreensão de que o meu ser é resultado da tradição, do tempo, da cultura, do medo, da experiência, não poderei lançar à margem tudo isso, para que a mente esteja fresca, lúcida, e apta a descobrir, a perceber diretamente? Estou certo de que a maioria de nós já fez tal pergunta. Pode a mente ser livre, independente de qualquer outro, seja quem for esse outro, independente de qualquer sistema ou roteiro? Se sigo um sistema, um roteiro, terei naturalmente os resultados a que o sistema ou o roteiro conduz, mas já não serei um indivíduo, um verdadeiro descobridor. O verdadeiro descobridor tem de ser um indivíduo livre. Assim, pois, que nos está impedindo de ter essa extraordinária capacidade de investigar profundamente, sem nos satisfazermos com explicações superficiais e crenças? Uma das razões é que agimos, pensamos, de acumulação em acumulação, não é verdade? Onde há acumulação tem de haver imitação. Toda experiência deixa um resíduo, uma lembrança, e em virtude dessa lembrança agimos, acumulamos, e tornamos mais forte o "eu". Não há um só momento em que nosso espírito esteja verdadeiramente livre, sem os resíduos das experiências de ontem. Essa memória, resultado de anos de acumulação, essa memória é que nos priva da capacidade de percebimento claro, direto. Como vemos, a nossa mente nunca é livre.
Não sei se já notastes como toda experiência deixa um resíduo, um resultado, ao redor do qual as experiências ulteriores vão sendo traduzidas, colhidas, acumuladas e conservadas. A memória, pois, como experiência, como tradição, como saber, constitui uma carga que nos impede a capacidade de ser livres, completamente individuais, e capazes de descobrir as coisas por nós mesmos. Se um homem nasceu hinduísta ou cristão, o seu espírito naturalmente foi condicionado segundo uma determinada simbologia, segundo várias ideias relativas à realidade, à meditação; e através desse condicionamento a mente experimenta, e fortalece, assim, cada vez mais tal condicionamento. O cristão, em matéria espiritual, estará sempre apegado à imagem do Cristo ou da Virgem Maria, e o hinduísta faz a mesma coisa, à sua maneira. Quando se é livre, totalmente, e não apenas à superfície — o que significa: quando não há imitação em circunstância alguma, quando não há tendência para o conformismo, psicologicamente, interiormente —, só então, por certo, tem o indivíduo a capacidade de investigar, de descobrir.
Se prestastes atenção até aqui, ocorrer-vos-á naturalmente esta pergunta: "Como posso libertar-me de toda acumulação do passado, de todo o meu condicionamento?" Não há "como"; só há o descobrimento da Verdade, sem se perguntar "como ser livre?" Porque se toda nossa atenção está aplicada ao descobrimento do que é verdadeiro, então este próprio percebimento, este próprio escutar do que é verdadeiro, liberta. Enquanto estamos pensando em termos de crença, ilusão, coisas que desejamos ser, somos incapazes de escutar, de dar toda a nossa atenção. Nossas crenças, nossas tradições, nossos símbolos, nos impedem o efetivo escutar de qualquer verdade. A mim me parece que a única coisa importante é a atenção; a atenção completa é o bem completo. A atenção que tem em mira um objetivo já não é atenção, é exclusão.
Por conseguinte, se formos capazes de escutar, não com o fim de ganharmos alguma coisa — porque tal atenção se torna exclusivista, estreita, limitada — e, sim, com a totalidade de nosso ser, escutar totalmente, sem objetivo algum, ver-se-á que nunca mais pediremos o "como", o método, o sistema, a filosofia, a disciplina. Nesse estado de atenção completa não há contradição dentro de nós mesmos, não há batalha entre o consciente e o inconsciente — é a atenção total. Por conseguinte, não há necessidade de se percorrer todo o "processo" psicanalítico, exumando, uma por uma, as lembranças, para nos tornarmos livres delas.
Podemos, então, vós e eu, que estamos escutando, experimentar de fato, sem que cada experiência deixe resíduo algum? Compreendeis o problema. Se experimento algo, essa experiência deixa uma lembrança, esta lembrança condicionará as experiências futuras; e, nessas condições, não será possível experimentar aquilo que é imensurável. O que é está fora do tempo; e a memória é do tempo. Quer se trate da lembrança superficial de um dado incidente, quer da lembrança de uma experiência que tivemos em raras ocasiões, em que sentimos, em que conhecemos talvez algo que excede todas as medidas da mente, algo eterno, como quer que seja, estamos perenemente apegados a tal experiência, com o que a mente fica impedida de experimentar mais além, mais profundamente. Enquanto a experiência deixar vestígio de memória, que é tempo, nunca será possível experimentar o que é eterno. A mente, portanto, deve deixar-se morrer, momento por momento, para cada experiência. Efetivamente, só nesse estado ela é criadora. E pode-se adquirir a capacidade de profunda penetração? Acho que sim, mas isso só é possível quando não nos satisfazemos com explicações, quando não nos deixamos nutrir com palavras; quando já não dependemos da experiência de outros; quando não recorremos a ninguém e empreendemos a viagem completamente sós, depois de nos desvencilharmos de todas as tradições, toda a cultura, toda crença, e, sobretudo, todo o saber. Porque, se a mente está abarrotada de muitos conhecimentos, só poderá experimentar aquilo que sabe.
Assim sendo, é possível pormos de parte, vós e eu — não teoricamente, não apenas por agora, porque estamos escutando uma palestra, mas realmente, diretamente —, é possível pormos de parte toda a acumulação racial, hereditária, deixarmos de ser ingleses, ou hindus, deixarmos de ter religião, no sentido de ortodoxia, dogmas, símbolos? Se ficamos apegados a todas estas coisas já não somos verdadeiros descobridores.
Estamos, então, meramente em busca de uma satisfação, do prazer de uma experiência exigida pelo nosso condicionamento. E eu penso que aquela capacidade não é coisa do tempo. Se levamos em conta o tempo, cairemos de novo na sujeição ao método. Mas se vemos, se sentimos a importância de perceber claramente a necessidade de completa liberdade interior, se vemos a verdade a esse respeito, então esse próprio percebimento, esse próprio escutar com plena atenção, traz a capacidade.
Krishnamurti, Terceira Conferência em Londres, 19 de junho de 1955