A transformação requer
paciente atenção
Poderíamos considerar hoje a significação da
autoridade, na vida, e a relação existente entre a autoridade e o temor.
Durante as duas reuniões anteriores, estivemos examinando a questão da
liberdade individual e considerando se é possível ser-se individual, no sentido
de ser livre de temor, e aventei que só pode haver individualidade quando não
há temor. É uma das coisas mais difíceis o ser livre de temor, pois o temor
assume formas múltiplas. Quando a mente está de todo absorta numa determinada
ideia, essa absorção pode representar uma fuga; e o homem que disciplina a
mente em conformidade com um padrão de pensamento pode, contudo, achar-se sob o
jugo do temor. Quando nos ajustamos a determinado padrão de moralidade — e isso
implica autoridade, compulsão —- estamos livres de temor? O seguir a
autoridade, sob qualquer forma, sem plena compreensão do significado da
autoridade, é estar sob a opressão do temor. Examinemos, pois, esta questão da
autoridade; mas, antes de o fazermos, desejo sugerir-vos ouçais de maneira
adequada. Escutar adequadamente não significa tirar conclusões. Quando saltais
a uma conclusão, já não estais abertos para averiguar, descobrir. Não podeis
ser guiados para descobrir: o descobrimento tem de ser espontâneo. Se me estais
escutando com o desejo de ser guiados, nunca fareis descobrimentos, isto é
bastante claro, não achais? Se ficais esperando que vos mostrem o caminho, jamais
descobrireis coisa alguma por vós mesmos; só descobrireis o que o guia quiser
que descubrais. Por conseguinte, deveis estar atentos, não apenas ao que estou
dizendo, à descrição que faço, mas, principalmente, ao que se passa em vossa
mente, o que significa estar vigilante. Embora me utilize de certas palavras e
frases como meios de comunicação, o que realmente descrevo é o que cada um de
nós está pensando, consciente ou inconscientemente. Se vos limitais a ouvir o
que digo, não estais dando atenção a vós mesmos; estais apenas acompanhando uma
descrição. Se, porém, através dessa descrição, começardes a estar apercebidos
das atividades da mente, com todas as suas tendências e idiossincrasias, haverá
então uma possibilidade de descobrimento, a possibilidade de vos tornardes
inteiramente percebidos do que vos está sucedendo realmente dentro do ser; e
isso, assim me parece, é importantíssimo.
Não estou dizendo uma coisa difícil de compreender;
mas, se vos limitardes a ouvir-me as palavras, perdereis a parte mais essencial
deste nosso exame. Estou descrevendo o que de fato se está passando, consciente
ou inconscientemente, dentro de nós mesmos; e o que se está passando é uma
coisa muito complexa, que requer grande soma de paciente atenção, um
perceber sem julgamento, um a observação sem escolha. Se formos capazes de
ouvir com essa atitude mental, acredito, começaremos então a compreender todo o
significado da autoridade. Positivamente, enquanto a mente está sujeita à
autoridade, ela não é, em absoluto, individual; e, para descobrir-se o que é
real, o que é Deus, o que é a Verdade, para se descobrir o inefável, não se
requer sejamos completamente individuais? Ser individual significa estar em
completa liberdade de todo temor, de toda compulsão, e do desejo de encontrar
uma forma correta de viver. É isto o que todos desejamos, é este o reclamo dos
nossos corações: encontrar uma correta maneira de ação, de conduta, um método
correto para se viver feliz, em paz. E esse mesmo reclamo não cria autoridade,
a autoridade de um livro, de uma pessoa, de uma ideia? Desejamos nos ensinem o
que devemos fazer, como devemos viver, de que maneira devemos dominar os nossos
inúmeros problemas; e, com esse desejo na mente e no coração, seguimos aqueles
que se propõem a dar-nos o que buscamos, aqueles que pensamos haverão de
conduzir-nos à realidade, à felicidade, a Deus. Elegemos, assim, uma entidade,
um instrutor que é produto de nossa própria “projeção”, e lhe vestimos a
fantasia do nosso desejo. O impulso a confiarmos as nossas vidas à guia de
instrutores, de livros, representa essencialmente o nosso desejo de estar em
segurança, não é verdade? É isto o que desejamos: estar em segurança neste
mundo e também no outro.
Ora bem, o desejo de segurança põe em funcionamento
o mecanismo da compulsão, da subordinação a um padrão, a uma ideia ou a uma
pessoa que representa a ideia; e assim passamos a vida, não é verdade ? Não
devemos, portanto, ficar completamente livres desse desejo de segurança, que
cria a autoridade? A autoridade é um problema sobremodo complexo. Existe
autoridade em diferentes níveis: a autoridade do governo, a autoridade social,
religiosa, e a autoridade da nossa própria experiência. Desde a infância somos
forçados à submissão. Nossa educação, nosso preparo social e religioso, todo o
nosso ambiente estimula-nos a subordinar-nos, ou a resistir, ou a seguir, —
sendo esse o mecanismo ordinário do nosso pensamento; e enquanto vós e eu nos
acharmos em tal estado, podemos ser indivíduos livres? Se não o somos, é claro,
nunca chegaremos a descobrir o que é real; e o “ser livre” exige muita
compreensão deste problema da autoridade. Não podeis simplesmente rejeitar toda
autoridade externa e seguir o que desejardes seguir, pois o próprio ato de
seguirdes o que desejais cria outra autoridade. Podeis rejeitar a autoridade
externa, mas resta a autoridade interior da experiência, e essa experiência
está baseada no vosso condicionamento. É muito fácil rejeitar a autoridade
externa; continuamos, porém, a ser ainda o resultado dessa autoridade, da
tradição, da sociedade, da cultura, da civilização em que vivemos. Rejeitar o
“exterior” e seguir o “interior” não significa estar livre da autoridade. Esta,
por certo, é um processo unitário. Não há linha divisória entre autoridade
exterior e autoridade interior: há só autoridade. E pode a mente que está
seguindo uma autoridade, sob qualquer forma, descobrir o que é verdadeiro?
Ouvi com atenção o que digo, sem saltar a
conclusões. A compulsão, a resistência, a disciplina, o seguir a autoridade,
resultam do temor; e pode um espírito, embargado pelo temor, ser livre? Só
quando o espírito é livre, pode haver individualidade; mas o produzir essa
liberdade espiritual é sobremodo difícil; “difícil”, no sentido de que o
simples desejo, o mero esforço, não a produzirá. O desejo e o esforço são reações
ao nosso condicionamento; e reação não é liberdade. Pode, então,
a mente libertar-se de toda resistência, de todo desejo de encontrar uma
solução para os nossos problemas?
Não sei se me estou fazendo claro. Este é, com
efeito, um assunto muito difícil de tratar, porquanto, quando começamos a
apreciá-lo, vem-nos imediatamente esta reflexão: “Se não tenho uma
autoridade, um modo de conduta, como poderei guiar-me amanhã? Se não posso servir-me do
meu conhecimento do passado para descobrir o que é verdadeiro, que devo fazer”?
Ora, não é possível vivermos de momento a momento,
compreendendo cada incidente, cada experiência, cada relação, no instante em
que surge? Não pode a verdade das coisas ser percebida momento por momento?
Preciso de uma carga de conhecimentos, preciso da autoridade da experiência,
para descobrir o que é verdadeiro? Para compreender, não deve a mente estar de todo livre
do passado? Não deve desistir de traduzir a experiência imediata de acordo com seu conhecimento
anterior, erigido em autoridade? Mas é isso o que estamos fazendo, não é?
Quando temos um problema, de que maneira o atendemos? Traduzimos o problema de
acordo com o nosso fundo de condicionamento, com a nossa experiência anterior;
avaliamo-lo de acordo com os padrões que estabelecemos, ou que a sociedade
estabeleceu; e, ao traduzirmos um problema, não estamos livres para compreender
a verdade nele contida. Pode a verdade relativa a qualquer problema humano ser
compreendida através da autoridade da experiência ou do saber? Inteligência não
é liberdade de compreensão, momento por momento?
A vida é muito complexa, e a mente mais complexa
ainda e dotada de extraordinárias capacidades; e para compreender qualquer
problema humano, não deve a mente considerá-lo de maneira nova, como coisa
nova, e não partindo de um centro que armazenou, que acumulou? Isso é que é compreensão
criadora, não achais? O centro que acumula é o “eu”, o “ego”, e,
portanto, toda ação procedente desse centro poderá, apenas, aumentar o
problema. A Realidade, Deus, ou como quiserdes chamá-lo, deve ser algo
totalmente novo, nunca dantes experimentado, completamente original; e pode uma
mente que é resíduo do tempo, do passado, da autoridade, da compulsão, da
resistência — pode uma mente em tais condições compreender, perceber a
significação do que é verdadeiro? Entretanto, toda igreja, toda organização
religiosa, toda seita está sempre a falar de Deus; e os que creem em Deus têm
visões que fortalecem a sua crença. Ora, o que podemos reconhecer é sempre
coisa já conhecida e, portanto, não pode ser o verdadeiro. O que é verdadeiro
nunca foi anteriormente conhecido e, por conseguinte, a mente deve
compreendê-lo de maneira nova, como coisa nova; e uma das nossas principais
dificuldades está em como despojar a mente de todas as compulsões, todos os
temores, todas as resistências, todas as autoridades, a fim de que seja livre
para observar, para “escutar” e compreender. O amanhã jamais é o mesmo dia; a
próxima reação nunca é coisa que existiu antes; e é por traduzirmos cada
reação, cada manhã, cada momento subsequente de acordo com o “velho”, que estão
sempre surgindo mais e mais complicações em nossa existência. Não há nunca um
momento em que contemplamos a vida, as árvores, os pássaros, cada incidente, de
maneira original, livre e plenamente.
Não há dúvida, pois, de que a questão não é de como
libertar-nos de problemas, ou de como encontrarmos soluções para eles, ou de
como sermos livres da autoridade; não se trata, antes, de podermos olhar todos
os problemas extraordinariamente complexos e sutis, da vida, com uma mente
pura, original, não corrompida? Isso só se pode fazer quando estamos livres do
temor, porquanto o temor gera a autoridade: a autoridade de uma pessoa, a
autoridade de uma igreja, de uma crença, de um dogma; e, ainda que estejamos
livres de dogmas e crenças, se somos escravos da opinião dos nossos
semelhantes, ainda estamos, evidentemente, agrilhoados pelo temor.
É, pois, o temor que gera a autoridade; e pode a
mente ser livre de temor, do temor da insegurança em todas as nossas relações,
o medo de não saber, o medo de não ser? Em nosso desejo de segurança, em nosso
temor ao desconhecido, criamos céu e inferno, criamos deuses e visões; é de
nossa mente que nascem todas essas coisas. Porque, intrinsecamente,
profundamente, existe em nós o medo de estarmos completamente sós, a
nossa mente astuciosa começa a acumular propriedades, conhecimentos,
experiências; e, uma vez que estamos na sujeição desse “processo",
“projetamos” aquilo que deve ser a Realidade ou Deus; e isso
é mera especulação; portanto, sem nenhum significado. Criamos inumeráveis
formas de crença, atrás das quais a mente se abriga.
Pois bem. Pode a mente ser livre de todo esse
“processo” e viver simplesmente, dia por dia, compreendendo a vida tal como se
apresenta momento por momento? Afinal, o atemporal, a eternidade inefável é
isto: quando a própria mente é o desconhecido. Por ora, a mente é o conhecido,
resultado do tempo, de ontem, do saber, de experiências e crenças acumuladas,
e, nesse estado, a mente jamais chegará a conhecer o desconhecido. Isto não é
uma forma vaga de misticismo. Por certo, se desejo conhecer uma coisa nunca
dantes experimentada, que não faz parte do tempo, que não pode ajustar-se ao
molde da autoridade, é necessário minha mente esteja de todo livre do passado,
o que significa que deve estar liberta de temor. Ante isso, nossa reação
imediata é a seguinte: “Como posso ficar livre do temor? Sei que tenho medo,
mas como ficar livre dele?” Não é esta a nossa reação instintiva? Ouvi com
atenção a pergunta, e encontrareis a resposta. Pode a mente, que criou o temor,
libertar-se dele? No seu desejo de segurança, a mente se abriga na crença,
engendrando assim o temor e tornando-se, ela própria, incapaz de fazer frente
ao desconhecido; e pode a entidade que dá nascimento ao temor ser livre de
temor? Sem dúvida, o seu próprio desejo de ser livre de temor é resultado do
temor; por conseguinte, todo o esforço da
mente para livrar-se do temor faz parte, ainda, do temor. A
mente pode apenas estar apercebida do temor e manter-se completamente passiva
em presença dele. Nesse percebimento passivo não há escolha, não há
esforço para dormir e, quando a mente se acha nesse estado, não há temor algum.
A mente, porém, nunca se achará nesse estado de percebimento, enquanto houver
esforço para dominar.
Tende a bondade de escutar com toda a atenção, e
percebereis a verdade disso. A mente, que é pensamento, gera temor, não é exato?
Nós, em geral, vemo-nos sós e não sabemos o que significa essa solidão; nunca a
examinamos, jamais a compreendemos, porque estamos sempre a fugir dela por meio
de alguma distração. Só compreenderemos a solidão quando a enfrentarmos, e só a
enfrentaremos quando não a temermos. Quando fugimos da solidão, damos entrada
ao temor; nossa fuga é temor. Nessas condições, a mente está criando temor
continuamente — temor do que irá acontecer amanhã, do que acontecerá quando morrermos.
O pensamento, resultado do passado, está sempre a projetar-se no futuro e
gerando temor.
A mente em tempo algum se libertará do temor
enquanto estiver fazendo esforço para dele fugir. Pode, apenas, estar percebida do
seu medo e manter-se completamente passiva, sem nenhuma escolha.
Vê-la-eis tornar-se extraordinariamente tranquila, e como nessa tranquilidade
pode resolver-se o problema do temor. Nessa tranquilidade mental, a autoridade
se desvaneceu de todo. Que necessidade tendes de autoridade, quando estais
vendo, momento por momento, o que é verdadeiro? A verdade não depende de
avaliação ou julgamento e, quando percebe isso de maneira completa, a
mente é então, ao mesmo tempo, experimentador e coisa experimentada; e, em consequência,
está apta a transcender a si mesma.
Tudo isso exige muita paciência e atenção, um
percebimento isento do desejo de vir a ser, de evitar ou obter. É por estarmos
eternamente desejando realizar algum fim, ser bem-sucedidos, ou evitar algo,
que criamos o temor. O temor multiplica problemas, o temor embarga a mente,
prendendo-a ao passado, e por isso a mente é, ela própria, o centro do temor.
Somente ao compreender o pleno significado do não desejar ser algo, de ser, não
como uma folha em branco, mas completamente vazia, de todo silenciosa — só
então lhe é possível, à mente, resolver cada problema no momento em que surge.
Krishnamurti em, Percepção Criadora,
28
de junho de 1953