Só há bondade
quando há atenção completa
Uma das coisas mais difíceis parece-me ser a
comunicação. Venho dizer-vos certas coisas e desejo, naturalmente, que as
compreendais. Mas cada um interpreta as palavras que ouve conforme seu próprio
cabedal de conhecimentos, experiência, etc., e, assim sendo, diante de um
auditório tão grande como este, é dificílimo transmitir exatamente aquilo que
desejamos comunicar.
Nesta tarde, desejo discorrer sobre uma coisa que
considero deveras importante: o problema referente ao cultivo da virtude.
Decerto, sem virtude, a mente é caótica, contraditória; e se não temos a mente
tranquila, em boa ordem e livre de conflitos, é óbvio que não podemos ir muito
longe. Mas a virtude não é um fim em si. O cultivo da virtude leva-nos numa
direção, e o ser virtuoso, noutra direção. Em geral temos muito interesse no
cultivo da virtude, porque, ainda que superficialmente, apenas, a virtude
confere à mente certo equilíbrio, certa tranquilidade, livre do incessante
conflito dos desejos contraditórios. Mas, afigura-se-me bastante evidente que o
mero cultivo da virtude não pode, em tempo algum, trazer a liberdade, e, sim,
só levar-nos a uma tranquilidade respeitável — o espírito de ordem, de
controle, que resulta quando moldamos a mente para acomodá-la a determinado
padrão social, denominado “virtude”.
Nosso problema, pois, é o de nos tornarmos bons, sem
fazermos esforço para ser bons. Vejo uma vasta diferença entre estas duas
coisas. O "ser bom” é um estado em que não existe esforço algum; mas nós
não nos achamos em tal estado. Somos invejosos, ambiciosos, maledicentes, cruéis,
limitados, vulgares, prisioneiros de rotinas estúpidas, e nada disso é bom; e,
se somos assim, como poderemos alcançar um estado mental “bom”, sem fazermos
nenhum esforço para sermos bons? Ora, por certo, o homem que se esforça para
ser virtuoso, não é virtuoso, é? Quem se esforça para ser humilde não tem,
evidente - mente, a mínima compreensão do que é a humildade. E, se não somos
humildes, há possibilidade de termos o senso da humildade, sem o cultivo da
humildade?
Não sei se já pensastes neste problema. É bem
evidente a necessidade de virtude. Ela é como conservar a sala bem arrumada;
mas, ter a sala bem arrumada não é, em si, da máxima importância. O fazer da
virtude um fim em si traz ao indivíduo certos benefícios sociais, fá-lo ser
considerado — aqui, na Índia, ou na Rússia — um “cidadão decente”, porque vive
de acordo com um certo padrão. Mas, não é muito importante reconhecermos que a
mente deve estar em boa ordem, sem se exercer compulsão ou disciplina — e em
seguida nos esquecermos disso, para que a mente não esteja a todas as horas a
dominar-se e disciplinar-se, cultivando o conformismo?
Afinal, que é que estamos buscando? Que é que busca,
cada um de nós, não teoricamente, abstratamente, mas na realidade? E há alguma
diferença entre a busca do homem que aspira à satisfação por meio do saber, de
Deus, e a daquele que deseja ser rico, realizar suas ambições, ou daquele que
vai buscar satisfação na bebida? Socialmente, há diferença. O homem que vai
buscar satisfação na bebida é, sem dúvida, um ser anti-social, ao passo que o
que busca a satisfação ingressando numa ordem religiosa, tornando-se eremita,
etc., é socialmente útil; mas a diferença é só esta.
Mas, a coisa que buscamos — por mais interessada que
seja a nossa busca, traz-nos a tranquilidade? E nós, de fato, estamos muito
interessados, pois não? O eremita, o monge, o homem que busca o prazer, de
diferentes maneiras, cada um deles está muito interessado. Mas esse interesse é
realmente sério? Existe sério interesse, quando empreendemos uma busca com o
fim de adquirir alguma coisa? Entendeis minha pergunta? Ou só pode haver um
interesse sério quando não se está visando a um fim?
Afinal, vós, aqui presentes, deveis sentir um certo
interesse, pois do contrário não vos teríeis dado ao trabalho de vir. Ora, eu
pergunto a mim mesmo e espero estejais também perguntando a vós mesmos, o que
significa “interesse sério”; porque eu acho que daí depende o que vou explicar
mais adiante. Se aqui estais a buscar a satisfação ou um meio de compreender
uma certa experiência passada, ou de cultivar um certo estado mental que
pensais vos dará tranquilidade, paz, ou de experimentar algo que chamais
“Realidade”, “Deus”, podeis estar com muito interesse; mas, não devemos duvidar
desse interesse? É sério o nosso interesse ao buscarmos uma coisa porque
achamos que ela nos dará prazer ou tranquilidade?
Se pudermos compreender o mecanismo da busca,
compreender porque buscamos e o que buscamos — e essa compreensão só é possível
pelo autoconhecimento, pela percepção do movimento do nosso próprio
pensar, nossas reações e nossos diferentes impulsos — talvez possamos,
então, descobrir o que é “ser virtuoso” sem nos disciplinarmos para sermos
virtuosos. Pois bem, tenho a impressão que, ainda que consigamos reprimir o
conflito existente em nós, ainda que procuremos fugir dele, disciplinar e
controlar a mente, moldá-la de acordo com diferentes padrões, o conflito
permanecerá latente, e nossa mente nunca estará verdadeiramente tranquila. E
ter uma mente tranquila, acho eu, é coisa essencial, porque nossa mente é o
único instrumento de compreensão, de percepção, de comunicação, e enquanto não
tivermos esse instrumento perfeitamente claro e capaz de percepção, capaz de se
aplicar à busca sem ter um fim em vista, não poderá haver liberdade, tranquilidade,
nem, por conseguinte, o descobrimento de coisas novas.
Assim, há possibilidade de vivermos neste mundo, —
tão cheio de agitações, de ansiedades, de insegurança — sem esforço? Esse é um
dos nossos problemas, não achais? Para mim, esta é uma questão muito
importante, porque só é possível a ação
criadora, quando a mente se acha num estado em que não existe esforço algum.
Não estou empregando a palavra “criadora” no sentido acadêmico de aprender
“literatura criadora”, “atividade criadora”, “pensamento criador”, etc.;
estou-a empregando num sentido muito diferente. Quando a mente se acha num
estado em que o passado, com seu cultivo da virtude através de disciplina, desapareceu
completamente, só então pode existir uma ação criadora atemporal, que se pode
chamar Deus, a Verdade, ou como quiserdes. Como pode, pois, a mente chegar a esse
estado de constante ação criadora?
Que acontece quando tendes um problema? Pensais nele,
de princípio a fim, ficais engolfado nele, vos tornais nervoso e agitado por
causa dele; e quanto mais o analisais, aprofundais, desbastais, quanto mais
preocupado ficais a seu respeito, tanto menos o compreendeis. Mas, no momento
em que deixais de dar-lhe atenção, nesse momento o compreendeis, tudo se torna,
de súbito, perfeitamente claro. Tal experiência já deve ter ocorrido à maioria
de vós. A mente já não se acha num estado de confusão, conflito, estando, por
conseguinte, capacitada para receber ou perceber uma coisa totalmente nova. E é
possível a mente permanecer nesse estado, de modo que não fique mais repetindo
as mesmas coisas e se torne capaz de experimentar “o novo”, momento por
momento? Depende isso, a meu ver, de compreendermos o problema do cultivo da
virtude.
Cultivamos a virtude, disciplinamo-nos, com o fim de
ajustar-nos a determinado padrão de moralidade. Por quê? Não só porque
desejamos tornar-nos socialmente respeitáveis, mas também porque percebemos a
necessidade de pôr em ordem, controlar a nossa mente, o nosso falar, o nosso
pensar. Reconhecemos quanto isso é importante, mas, no mecanismo de cultivar a
virtude, estamos construindo a estrutura da memória, essa memória, que é o
“eu”, o “ego”. Tal é a base da nossa ação, principalmente dos que pensam ser
religiosos, porque praticam constantemente uma certa disciplina, pertencem a
certas seitas, certos grupos, chamados coletividades religiosas. Sua recompensa
poderá estar noutra parte, “no outro mundo”, mas é sempre recompensa o que querem;
no cultivo da virtude, que significa polir, disciplinar, controlar a mente,
estão eles desenvolvendo e mantendo uma memória do “eu” e, por conseguinte,
nunca há um momento em que estão livres do passado.
Se realmente já disciplinastes a vós mesmos, exercitando-vos
para não serdes invejosos, irritadiços, etc., não sei se tendes notado como
esse próprio exercitar, esse próprio disciplinar da mente cria uma série de
lembranças, que são conhecimentos. É assaz difícil este problema, e espero me
esteja fazendo claro. Esse mecanismo que consiste em dizermos: “Não devo fazer
isto” — cria ou constrói o tempo; e a mente que está aprisionada no tempo não
pode, é claro, nunca, experimentar algo fora do tempo, “o desconhecido”.
Entretanto, devemos ter nossa mente “bem arrumada”, livre de desejos contraditórios
— e isso não significa ajustamento, aceitação, obediência.
Nessas condições, se sentis um interesse muito
sério, no sentido em, que estou empregando a palavra, este problema tem de
surgir, inevitavelmente. Vossa mente é resultado do “conhecido”. Vossa mente é
o conhecido, sendo moldada pelas memórias, pelas reações, pelas impressões do
“conhecido”; e a mente mantida no terreno do conhecido jamais compreenderá ou
experimentará o desconhecido, aquilo que não se acha na esfera do tempo. A
mente só é criadora quando está livre do conhecido; e, então, ela pode
servir-se do conhecido, isto é, da técnica. Estou-me fazendo claro?
Como sabeis, nosso tédio é tão grande,
que estamos
constantemente a ler, a adquirir, a aprender, a frequentar igrejas e executar
rituais, sem nunca conhecermos um momento inédito, original, não corrompido,
completamente livre de todas as impressões; e esse momento é que é criador,
atemporal, eterno, ou qualquer outra palavra que preferirdes. Sem essa ação
criadora, a nossa vida se torna insípida e estúpida, e todas as nossas
virtudes, nosso saber, nossas ocupações, nossos entretenimentos, nossas várias
crenças e tradições, tudo muito pouco significa. Como disse há dias, a
sociedade apenas cultiva “o conhecido”, e nós somos o resultado dessa
sociedade. Para encontrarmos o desconhecido, é essencial nos libertarmos da
sociedade — o que não significa retirar-nos para um mosteiro e ficarmos rezando
da manhã à noite, disciplinando-nos incansavelmente, ajustando-nos a certo
dogma ou crença. Isto, por certo, não pode emancipar a mente do conhecido.
A mente é resultado do conhecido, resultado do
passado, que é acumulação no tempo; e tem essa mente alguma possibilidade de
ficar livre do conhecido, sem fazer esforço algum, para que possa descobrir
algo original? Qualquer esforço que ela faça, para libertar-se, qualquer busca
que empreenda, estará sempre na esfera do conhecido. Ora, por certo, Deus ou a
Verdade deve ser algo que nunca foi pensado, algo inteiramente novo, nunca
formulado, descoberto ou experimentado antes. E como pode a mente resultante do
conhecido, experimentar, em algum tempo, essa coisa? Percebeis o problema? Se o
problema está claro, achareis então a maneira correta de o atenderdes, a qual
não é um método.
Aí está a razão por que importa descobrir se uma
pessoa pode ser boa, no sentido completo desta palavra, sem se esforçar para
ser boa, sem lutar para libertar-se da inveja, da ambição, da crueldade, sem se
disciplinar para deixar de ser maledicente, enfim, abstendo-se de todos os
rigores a que nos submetemos quando desejamos ser bons. Pode haver bondade, sem
se fazer esforço para “ser bom”? Acho que só haverá, se cada um de nós souber escutar,
estar atento. Só há bondade quando há atenção completa. Percebei esta verdade
de que não pode haver bondade mediante luta, esforço. Percebei simplesmente
esta verdade — mas só podereis percebê-la se estais dando atenção completa ao
que se está dizendo. Esquecei todos os livros que lestes, tudo o que vos têm
ensinado, e prestai toda a atenção à asserção de que não pode haver virtude,
enquanto há esforço para se ser virtuoso. Enquanto luto para não ser violento,
tem de haver violência; enquanto luto para não ser invejoso, tem, de haver
inveja; enquanto luto para ser humilde, tem de haver orgulho. Se percebo esta
verdade, não intelectualmente, ou verbalmente, — o que significa apenas ouvir
as palavras e concordar com elas, — se a percebo com toda a simplicidade, diretamente,
então, daí virá a bondade. Mas a dificuldade é que a mente diz: “Como conservar
esse estado? Posso ser bom, enquanto aqui estou, ouvindo algo que sinto ser
verdadeiro, mas, depois de sair daqui, ver-me-ei de novo colhido pela corrente
da inveja”. Acho que isso não tem importância; vós o descobrireis.
Nossa cultura, nossa sociedade está baseada na
inveja, na vontade de adquirir conhecimentos, experiência, bens materiais, etc.
E para nos libertarmos disso não se requer nenhuma luta ou esforço, mas só que
vejamos o que significa o esforço. O homem que está adquirindo conhecimentos,
não está em paz, pois está empenhado num esforço. Só quando completamente livre
de esforço, pode a mente achar-se em paz, que é, na verdade, um estado extraordinário,
mas que pode ser alcançado por qualquer um que a isso se aplique de coração e com toda
a atenção. A mente que não está lutando, tentando “vir a ser” alguma
coisa, social ou espiritualmente, a mente que está reduzida a “nada” — só ela
pode receber “o novo”.
Krishnamurti,
23 de agosto de 1955, Realização sem Esforço
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