O que vos apresento todas as
manhãs, não é deduzido de leitura superficial; não proveio do raciocínio sobre
séries de acontecimentos que culminam na absoluta, serena, suprema
tranquilidade do ser. Para mim isto é uma realidade viva, que eu entendo por
uma realidade capaz de ser traduzida na ação de todos os dias na conduta. Por
estar vivendo esta realidade é que vo-lo apresento; e se vos encontrais
ansiosos por examinar uma realidade assim, viva, não somente lhe devereis
prestar o vosso entendimento, vossa mera concordância, inclinando as vossas
cabeças, como devereis verificar por vós mesmos se tendes a capacidade de
traduzir o que eu digo em ações. De outro modo, não terá valor e constitui um
vão esforço vossa vinda a este acampamento.
Para colocar à prova esta
realidade de que falo, deveis colocar em prática — por pouco que seja — aquilo
que houverdes entendido, não por amor a autoridade (esta, banimo-la completamente
da nossa visão), não por meio do raciocínio intelectual, porém por vós,
pessoalmente, haverdes analisado, criticado e a critica vos haver conduzido à
ação. Se meramente aceitardes aquilo que digo ou o que é dito por outrem, tal
coisa não será por vós, uma realidade viva e jamais pode ser posta em prática;
pois que sempre existe em vós um fundo
de temor não investigado e, enquanto o não houverdes analisado e desarraigado,
não podereis encontrar por vós mesmo essa realidade viva que possais levar à
prática. Portanto, o que importa não é a formação de centros nem a vossa
reunião aqui (não entendais mal isto, ainda vamos continuar a ter acampamentos)
porém sim, o viverdes nesta realidade. O viver, então, torna-se o assunto de
vital importância — não as teorias, não as discussões metafisicas ou as
disputas filosóficas, mas sim a maneira pela qual vos conduzis, vosso modo de
ser para com aqueles que vos rodeiam afim de não mais criardes uma gaiola de
ilusão. Para viverdes desta maneira necessitais coragem impessoal e a faculdade
de examinar claramente, impessoalmente, aquilo que vos digo — não do vosso
ponto de vista individual, porém do ponto de vista do todo. Isto exige
determinação, exige constante vigilância, constante reflexão e ajustamento.
Nas vidas da maioria das pessoas
há um contínuo tatear, uma certeza torturante, um aborrecimento contínuo para
consigo mesmo, pois que na mente e no coração de cada um existe a tristeza do
desespero, a tristeza da espera da morte, a tristeza da solidão, a tristeza que
brota da falta do bem estar, da pobreza, dessa existência mecânica esmagadora,
em que não existe o êxtase do viver, em que não existe o deleite da existência
impessoal, nem o afeto, nem a alegria de ser. Ora, todos se estão esforçando
por encontrar a causa dessa tristeza e o meio de atingir essa razão, esse amor
que, em sua essência, são equilíbrio e harmonia. A tristeza existe por haver falta
de harmonia em vós mesmos, desarmonia entre o que se pensa e o que se faz,
entre o que se sente e a forma pela qual se age. Num homem verdadeiramente
culto, não existe falha entre pensamentos, emoções e ações. Esta é a verdadeira
prova segundo a qual se pode julgar um homem culto. Assim, a tristeza existe
por causa das limitações. Quando não mais houver limitações, quando existir
esse amor no qual há o completo desapego — não o amor pessoal nem a indiferença
— esse amor que não conhece reações de prazer e desprazer, de separação, de
distinção, no qual não mais existe o “tu” e o “eu”, a consciência de sujeito e
objeto — quando houver perfeito equilíbrio, haverá libertação. Um homem liberto
é verdadeiramente feliz porque a felicidade é o ser desimpedido, a vida não
mais embaraçada, expressando-se sem resistência.
Assim, essa qualidade da
libertação, — se assim me é dado denomina-la sem que lhe atribuais qualidades —
é pura consciência, a libertação de toda a consciência e não a expansão da
consciência. Vou explicar isto, porque senão, chegareis logo a conclusões
acerca destas palavras, conclusões com que vos encontrais já familiarizados,
que possuem um significado muito definido em vossas mentes. Estou servindo-me
das palavras vulgares, porém dou-lhes uma interpretação completamente nova.
Consciência implica autoconsciência.
Libertar-se da consciência não é aniquilamento, é puro ser, é esse extraordinário equilíbrio que se produz quando conheceis
o verdadeiro valor das coisas; é iluminação. Então, não mais sereis perturbados
por falsos juízos. O verdadeiro
julgamento depende da experiência. A experiência deveria libertar e tem de
libertar o homem de toda a consciência, pois que a consciência somente existe
quando vos achais tolhidos. A limitação ocasiona a consciência. Isto é, vós vos
apercebeis de algo que vos embaraça e por esse fato a consciência vem à
existência. Portanto, a consciência surge dessa limitação que é também a causa
de vossa tristezas e prazeres, de vossas satisfações e desgostos, de vossa
cobiça, inveja, desejo de possuir, crueldade e medo. Quando isto reconheceis
manifesta-se a consciência desperta da limitação. Quando removeis toda a limitação, estais livres da consciência.
Isto não é condição de sono perpétuo; nem tampouco é condição de aniquilamento
total. É liberdade de consciência, a qual, para mim, é o ser não tolhido, vida,
pura ação. A totalidade de vida funciona sem limitações.
Como ego — o ego não é mais do
que as vossas reações não vencidas — estais a todo o momento conscientes de
limitações e, por isso sois conscientes. Desta limitação surge desejo de lutar
e vencer. Por meio de vossa luta contra a limitação, despertais a
autoconsciência. Ora, como vos disse anteriormente, os desígnios da Natureza
preenchem-se quando ela se realiza a si mesma no indivíduo autoconsciente.
Porém, este homem autoconsciente
é ainda sub-humano enquanto se encontrar nas garras da cobiça, da posse de
bens, do desejo de arregimentar-se quando temer a solidão, enquanto tiver medo
da morte. Seu preenchimento reside em libertar-se da consciência e não é este
um estado de sono ou de aniquilamento, porém essa vida não tolhida na ação que
é puro ser, sem nenhuns atributos
especiais. Ela é a causa de si mesma, auto-existente e, portanto, funciona
livremente e sem impedimento. O homem liberto não se encontra consciente de
viver separadamente; isto é, ele, como indivíduo, cessa de projetar uma sombra.
Ele é. Ele não mais se acha
limitado, e, portanto, existe nele sempre a reta ação, a conduta reta, a reta
percepção de todas as coisas, a diferenciação do especial e do particular. Ele
é semelhante a um farol que está brilhando, que proporciona sua luz clara a
todo o objeto que lhe é posto diante.
Quando vós, como indivíduos,
houverdes preenchido a finalidade da existência individual nesta liberdade de
consciência, e plenamente estiverdes conscientes de toda a vida, então em vós a
vida operará livremente. Assim, pois, para o homem liberto não existe coisa que
se pareça com consciência, pois, como o disse anteriormente, a consciência
implica autoconsciência. Um tal homem será puro
ser. Se vos apraz, chamai-lhe pura
consciência de todas as coisas, distinguindo-a da consciência que é noção
de limitação. A pura consciência não tem
empecilhos. Atua sem limitações.
Para haver esta totalidade de
vida é preciso que exista o puro ser,
é preciso que haja a pura ação. Para
traduzir esta pura ação em reta conduta — o que significa ser homem completo e
não semi-homem — precisais possuir desapego no que se refere à opinião pública.
Explicarei o que entendo por opinião pública. A opinião pública existe, não
para que vós a copieis, porém sim, como algo por onde ajuizar de vossas
próprias opiniões. Então, tereis transcendido a opinião pública, ultrapassando-a,
e dela não sereis escravos. A maioria das pessoas que se libertam da opinião
pública tornam-se excêntricas, dão grande valor a coisas que não têm
importância alguma, — ora, isto não e desapego real. Quando um homem se acha
liberto da opinião pública, geralmente, comporta-se de maneira diferente — com
rudeza — veste-se por maneira excêntrica, cede sem freio algum a seus pendores,
adora estranhos deuses, cultua estranhas ideias. A isto eu não chamo estar
liberto da opinião pública. Isto é apenas uma outra maneira de iludir-se com a
ideia de estar livre. Liberdade no que se refere à opinião pública, não se
demonstra pelo garbo do porte, pelo trato rude, pelo fato de se tornar
irresponsável, inconsiderado, auto-indulgente, porém, antes, pela conduta autoimposta,
auto-realizada. Isto é, uma lei mais estrita de conduta, que é autodisciplina.
Depois, é preciso que haja
desapego de bens. Podeis permitir que as coisas vos possuam ou podeis
possuí-las, porém é exigência essencial para atingir o puro ser, a indiferença para com os bens. Tendes que colocar à
prova este desapego e verificar que não estejais meramente auto-iludidos.
Deveis, ainda, estar liberto das
opiniões. Quanto mais fortes forem vossas opiniões, mais iludidos podereis
estar. Deveis, porém, possuir a capacidade de julgar impessoalmente, de
analisar com clareza, desapegadamente, e então, as opiniões, não mais terão
força sobre vós. O vosso princípio norteador deveria ser a própria finalidade e
não os meios para a ela chegardes. E então, fareis dessa finalidade que é a
meta da existência individual, o meio, e com a consciência contínua desse
propósito encontrareis a maneira de realizá-lo.
Assim, a liberdade da
consciência, no sentido que estou usando o termo, não é o estado de sono ou de
aniquilamento. Para mim, na realidade, não existe coisa que se assemelhe à
consciência, pois que a consciência vem à existência quando há empecilho,
limitação. Não se trata, pois, da expansão da consciência individual, porém,
sem, trata-se de libertar-se de toda a consciência-autoconsciente-limitada,
liberdade essa à qual se chega por meio do contínuo esforço. É este ser sem empecilhos, sem embaraços, que
é a própria vida, que é a realização da totalidade de todas as coisas, em que
não existe tempo. É um mundo desprovido de tempo, um mundo sem caminhos, uma
realidade por si mesma, à qual não podeis chegar por um caminho qualquer que
seja, pois que todas as coisas estão contidas nessa realidade.
Krishnamurti em Acampamento da estrela de Ommen, 1 de agosto de 1930