A inteligência plenamente liberta
não é consciente nem de subjetivo nem do objetivo considerados como tais. Ela inclui a ambos na pura
realização. Uma tal inteligência, ao demais disso, não é um Ego. É absolta impersonalidade
— a qual, apesar disso, conserva a faculdade de pensar, sentir e agir.
O ego, não é uma entidade. Pode
mais veridicamente ser denominado um
sintoma. Ele surge na consciência somente quando o livre fluxo da vida é
obstruído. Podemos encontrar disto uma analogia familiar em nossos próprios
corpos. Normalmente somos perfeitamente inconscientes de nossos órgãos
internos; eles somente se fazem notar quando algo anormal com eles se passa.
Pela mesma forma, se estivéssemos em perfeita saúde espiritual não seríamos
conscientes de “eu-dade” alguma separatista. O fato, porém, é que não nos
encontramos em saúde espiritual; não existe, na maioria de nós, o verdadeiro e
não impedido fluxo da vida. E daí, apercebemo-nos da obstrução —e é esta
obstrução o que a nós parece ser o nosso eu.
É um erro, portanto, discutir a
questão do Ego e de sua persistência como se se tratasse de uma entidade real
tendo perante si somente duas alternativas — ou permanecer como está (isto é,
uma entidade real) ou ser abolido. O Ego, como entidade, não possui e jamais
possuiu existência, qualquer que ela seja. Nada mais é quem um sintoma de desordem interna, à qual,
em nossa ignorância, vimos atribuindo o ser objetivo.
Em cada um de nós é a vida
somente que age, sente e pensa; porém, dado o fato de ser por enquanto incapaz
de manifestar-se com essa absoluta liberdade e pureza que lhe pertence como
vida, a ilusão de um Ego é assentada — uma ilusão que é tão pouco entidade
objetiva como o é a protuberância causada pela picada de um mosquito. O Ego
existe somente quando o imaginamos.
De fato é possível a qual um de
nós eliminar a consciência de Ego e restabelece-la vinte vezes ao dia. Quem quer
que esteja completamente absorvido em alguma tarefa simultânea e funcionando
livremente nessa tarefa deslizará da consciência de Ego, automaticamente,
enquanto que a concentração persiste — e tanto assim é que frequentemente “volta
a si próprio” com uma espécie de estremecimento quando ela passa. A absorção
absoluta em qualquer atividade é, na verdade, tudo de que necessita para provar
quão ilusório é o sentimento de eu-dade
e quão não essencial para a plenitude e intensidade do viver. Significa, porém,
isto que o homem que se acha absolutamente centrado esteja temporariamente nas
mesmas condições do homem liberto? Não; a não ser que esteja ao mesmo tempo em
contato com a Verdade. No que se refere ao Ego, acha-se ele em um estado que se
assemelha ao da libertação,
exatamente como um homem que ama a certo indivíduo intensamente e
exclusivamente se assemelha, dentro dos limites de seu afeto particular, ao
homem cujo amor abrange a todo o mundo pela mesma forma. Porém, o indivíduo
concentrado ordinário, engana-se por duas maneiras: em primeiro lugar sua perda
do eu separado é temporária; em segundo lugar, enquanto perdura, depende de
certa atividade especial que cessa logo que a atividade passa.
A consciência liberta, por outro
lado, jamais pode deslizar retrospectivamente para a eu-dade, separada, porém,
permanece tão livre da separatividade quando se acha em estado de suspensão
como quando se encontra empenhada em alguma atividade definida. E a razão disto
é que ela tem sua morada na Verdade. Somente a Verdade pode proporcionar essa
ausência de todo o egoísmo, a qual é independente de todas as condições
mutantes e portanto, não é devida a qualquer coisa de exterior ao próprio
homem.
O que ocasiona a maior parte das
dificuldades nestas discussões acerca do Ego é o não acharmos fácil distinguir
entre um eu que é puro sujeito ativo e um eu ao qual podem acontecer coisas e
que, por consequência, pode tornar-se objeto. O eu real — o eu que continua
para sempre e que a libertação não pode afetar — jamais pode ser objeto. Ele é
eternamente sujeito e expressa-se a si mesmo, no que se denomina a “pura ação”;
no passo que o outro eu somente vem à existência ilusória quando houver “reação”,
isto é, quando o movimento — vida, por qualquer razão, for detido e feito
retroceder sobre si mesmo. É somente este último eu que é o Ego. O outro eu é
completamente não egoísta. É absoluto — pois que é a própria vida, a vida que
despertou no auto-apercebimento.
Porém, que acontece à “uniquidade
individual?” Não será esse eu que é puro, sujeito à mesma coisa que aquele?
Sim. Isto, porém, não a impede de
ser vida universal ao mesmo tempo. Quando falamos de “tornar-nos unos com toda
a vida”, não devemos pensar nesse todo sujeitando-o a termos de espaço —
quantidade.
A totalidade, neste sentido, é o
todo como qualidade. Significa pureza absoluta. O conjunto integral da vida
pode existir em um ponto único, se a vida nesse ponto se encontrar
absolutamente pura. Isto é que torna possível à vida do homem liberto o ser ao
mesmo tempo individual e universal. A pura
vida, em si mesma considerada, jamais pode atuar de outra maneira que não
seja universalmente. Assim, pois, quando um homem houver purificado
completamente a si mesmo de modo absoluto, — quando houver extirpado de sua
natureza os últimos resquícios de egotismo e separatividade — a ação universal
manifesta-se imediatamente, embora por detrás de todo o pensamento, sentimento
e ação se encontre o ser único que é sujeito vivo em todas as atividades.
A universalidade, digamos para
encurtar, é assunto não do que p homem é e sim daquilo que ele faz. Não pode
isto deixar de ser verdade, ao verificar-se que a própria vida não é mero Ser
passivo, porém é, ao invés disso, um momento de energia ativa. Não podemos, portanto,
proferir a palavra “é” em um sentido
puramente estático, relativamente a qualquer pessoa ou a qualquer coisa. No mundo da Verdade não há substantivos, há
somente verbos. O homem torna-se universal na proporção direta, até ao
ponto em que pensa, sente e age universalmente. Assim, pois, o assunto real não
é o de saber se existe um Ego e se este persiste ou se é suprimido; e sim, o de
saber se aquilo que está por detrás de todo o pensar, sentir e agir, como ser
vivo e único, é capaz de tornar-se sujeito ativo em um processo de vida
universal, portanto por intermédio e através de suas atividades, isto é, de
transcender sua própria uniquidade.
O fato é possível. Pois é nisto,
justamente, que consiste a libertação.
Os indivíduos acham-se atualmente
tão interessados pelas questões últimas, que se esquecem de que têm de começar
pelo início. Se partissem, simplesmente, do ponto em que se encontram e
permitissem que o desdobramento se efetuasse naturalmente, verificariam que
todas essas perguntas, com o correr do tempo, teriam respostas por si mesmas. A
crisálida não pode sair da borboleta. Tornai-vos primeiro a borboleta, para
depois chegardes a saber.
Praticamente, todas as perguntas
feitas acerca do estado de libertação por aqueles que se encontram ainda em cativeiro,
são feitas erradamente. Isto acontece por terem eles como coisas reais as
coisas que para o homem liberto são ilusões. E quando o investigador chega a
ver todas essas coisas como ilusões, não mais necessitará de fazer perguntas,
pois que saberá.
Krishnamurti, 1929