É este o último dia de
acampamento e gostaria de fazer um resumo do que tenho estado dizendo durante
os oito dias últimos e o quisera, se vos dispusésseis a me seguir com mentes
esclarecidas e impessoais. É muito fácil desnaturar o que eu digo afim de o
adaptar aos vossos desejos. Das perguntas que me têm sido feitas dia após dia,
transparece que existe ainda em vossas mentalidades o desejo de transigir. Cada
qual de vós possui um fundo de ideias de qualquer espécie — do Cristianismo, do Hinduísmo, da Teosofia e
assim por diante. Quando qualquer ideia nova ou nova experiência diante de vós
é colocada, imediatamente vós a traduzis segundo os termos de vossas ideias
preconcebidas sobre a verdade. Daí o haver constantes lutas de ajustamento, não
para descobrir o que é verdadeiro, porém para tentar acomodar o que eu digo com
aquilo que já haveis encontrado, com aquilo que para vós já foi estabelecido
por outrem. Se quisésseis examinar aquilo que eu digo, se diligentemente o seguísseis
mentalmente, então teríeis que operar uma separação completa das ideias
preconcebidas. Eu vos direi por quê. Há alguns anos eu passei pelo mesmo processo de tentar
conciliar. Todos têm de fazer o mesmo. Não podereis, porém, acomodar
certas coisas. Não pode haver transigência em certas coisas. Naquelas coisas
que para vós forem fatos evidentes, no sentido de serem baseados em vossa
própria experiência, em vosso próprio exame — impessoal, despeitado, livre de
autoridade — não mais existe o desejo de transigir. Por favor, apercebei-vos do
porque é que eu tanto acentuo a transigência. Não podereis encontrar a verdade
por continuamente vos ajustardes às ilusões. Tendes que averiguar pessoalmente
o que é ilusão e o que é realidade. Para isto, tendes que possuir mente
liberta.
Como disse há algum tempo, todas
as teorias preestabelecidas da vida, todas as ideias, concepções, planos, de
tudo isso, deliberadamente me desfiz, libertei-me a mim mesmo de todas as
passadas ilusões; e pelo tornar-me impessoal, esclarecido, desapegado de todas
as fantasias imaginativas e confortos, encontrei aquilo que é impessoal e portanto,
perdurável, eterno. Nisso está a imortalidade.
Por meio da grande tristeza que
vos propele a buscar a verdade ou por vos achardes entediados com este mundo
mutável de fantasias, de enganos, de dores e prazeres, podeis libertar a vós
próprios desta roda de incerteza e de dúvidas. Para operar isto é preciso que
haja um forte desejo de buscar por vós mesmos o que é falso e o que é real —
não o que é dito pelos outros, não o que as autoridades houverem estabelecido.
Vossa própria observação impessoal relativa à experiência da vida é o único guru e não qualquer guru pessoal. A própria vida é o
instrutor único e não uma qualquer Divindade pessoal. Uma vez que tenhais o
desejo de examinar, de julgar, de ponderar as coisas, — libertos de todas as
sociedades, de todas as pessoas — não mais transigireis.
E porque é que transigis? Pelo
fato de o desejo, em seu medo, desejar ajustar as novas ideias, as novas
experiências às antigas. E assim dá-se a luta contínua proveniente da incerteza
e com a incerteza da mente e do afeto não podeis chegar ao claro entendimento
da verdade. A acomodação torna-se apenas um desperdício de energia. Isto é o
que está acontecendo com a maioria das pessoas aqui. Perdem-se nesta
acomodação, nesta delicada tentativa de equilibrar para ajustar o passado, o
futuro e o presente. Neste esforço dá-se um desperdício dessa energia que é tão
necessária, é tão vital para o pensamento claro, impessoal e para conduzir esse
pensamento até a ação. Tal energia torna todas as coisas práticas, pois que não
mais vos estareis esforçando por equilibrar aquelas coisas que é impossível
acomodar. Portanto, pela conservação da energia — energia do pensamento e da
emoção — pela sua resultante no esforço, encontrareis a verdade daquilo que
digo. Se houverdes compreendido a realidade viva do que falo, verificares que
tudo na vida está explicado. Se houverdes alcançado esse princípio vivo,
central, que é impessoal, que é a verdade, que nada tem que ver com sociedade
alguma — se houverdes compreendido isto, compreendereis o que significa o estar
desapegado, isento de paixão, isento de cólera, isento de inveja, de orgulho,
de medo, isento de todas as essas coisas que estrangulam e pervertem o
julgamento humano.
De pouco serve o nos reunirmos
aqui todos os anos se não houver na mente e no coração de cada um dos que aqui
vêm um movimento, um esforço definido, claro, impessoal, desprovido de todo o apego
do qual provenha a alegria de viver, a alegria de ser. Para vós, o tornar-se
impessoal é tornar-se indiferente. Esta não é atitude verdadeiramente
impessoal. A indiferença é a resultante da tristeza; vós tendes medo por serdes
pessoais em vosso modo de encarar as coisas e pelo fato de em virtude desse
pensamento e emoção pessoais, haverdes já sofrido. Daí, tornai-vos indiferentes
e julgais ser impessoais; porém a vida verdadeiramente impessoal vem ao ser
quando vos libertais de todo o apego. Uma tal personalidade leva à conduta
verdadeira, à verdadeira excelência de comportamento. O desapego desta espécie
é realmente jubiloso, estático, ardente.
Assim, sem apego no que se refere
ao passado, isentos deste anseio pela glória do futuro que sustenta as mentes e
corações de muitos, deveis viver neste momento, neste segundo no qual existe toda
a eternidade. Sei que isto agora está se tornando apenas uma frase.
Porém, se compreenderdes o que eu tenho em vista, com o viver realmente nesse momento, sem a ideia
quer do futuro quer do passado, com suas esperanças mortas e seus anseios
mortos e concentrados, agudamente apercebidos, nesse segundo, toda a eternidade será
conquistada. Que está acontecendo agora? Olhais para o passado afim
de ajuizardes da experiência — sobre o que fostes e como vivestes — e com isto
olhais para o futuro e ponderais no que vireis a ser, nesta vida ou nas vidas
vindouras. Sempre esta glória da auto-decepção, para serdes algo que não sois,
para vos tornardes alguma coisa. Passai por sobre essas coisas. O dia de ontem
está morto, não o podeis fazer voltar à existência; apagou-se; e o futuro não é
mais que o presente, o agora em preenchimento. O preenchimento do futuro
acha-se na maneira de vosso viver de agora, não na contemplação do futuro.
Torna-se isto infinitamente simples, se chegardes à sua verificação. O futuro
não é senão o preenchimento do presente. O que estais fazendo, o que estais
pensando, o que estais sentindo agora, vence o todo. Portanto, tem que haver
esse desapego impessoal cheio de amor em relação a todas as coisas, tanto às do
passado como às do futuro, com pleno conhecimento do propósito da existência
individual. Tendes que viver com esforço concentrado, plenamente despertos no
presente, que não é senão o momento, da passagem do infinito; e isto significa
não a imitação oriunda do medo, nem o desejo de vos tornardes em alguma coisa —
um ser super-humano, por exemplo — porém o de vos tornardes seres naturais.
Eu vos explicarei o que entendo
por naturalidade. Um lírio, quando perfeito, é a perfeita flor, porque em sua
perfeição contém o todo. Assim, pois, quando compreenderdes qual o propósito da
existência individual e viverdes no entendimento dela, seja qual for o estágio
em que vos encontreis, surgirá a perfeição, a naturalidade. (Sei que tudo
quanto puder ser desentendido o será). O homem que sabe, que possui a visão
magnífica, que colheu o perfume da existência — se não estiver vivendo no
sentido ascendente esta realidade, a todo o instante, tomba abaixo dela. Um tal
homem está vivendo uma vida não-natural, ao passo que o homem que vive em
conformidade a esta percepção elevadíssima, do entendimento da existência individual,
achar-se-á vivendo uma vida equilibrada, natural. Não se trata, pois de tentar
imitar, de tornar-se alguma cosia. Um piano não pode tornar-se violino. Um
piano pode estar desafinado porém, em vez de comprar outro piano, podeis afinar
esse mesmo. Dá-se exatamente o mesmo com a música de vossas mentes e corações.
De nada serve o imitar a alguma outra pessoa, o vos tornardes algo mais do que
aquilo que sois; tendes que criar dentro de vós mesmos essa formosa afinação do
ser que é vós próprios, que é a verdadeira naturalidade.
Todas essas incertezas vãs,
tortuosas, tateantes, são, pois, desnecessárias, são desperdício de energia.
Essa música oculta, supressa do ser, essa afinação da verdadeira amabilidade
somente pode ser encontrada dentro de vós próprios, por meio de vossos próprios
esforços — não por vos tornardes alguma coisa, não por imitardes algo, não por
adorardes a um ser ou objeto, não por buscardes a separação em distinções
espirituais, divisões do homem, no amor, no pensamento. Todas essas coisas
nascem do engano, do esforço para copiar, para vos tornardes aquilo que em vós
mesmos, não sois. A verdadeira naturalidade do ser é desprovida de todo o medo,
o qual mais não é do que o desejo de conforto e, daí, imitação. Ao serdes incorruptos
e, portanto, impessoais, tereis tocado imediatamente na origem das coisas eternas; e,
quando tiverdes vossas raízes nesse solo, que é perpétuo, então vossas ações,
vossa conduta, vosso comportamento, vosso apercebimento, vossa intuição, terão
seu ser nessa qualidade eterna. Porém, não vos acercareis disto enquanto existir o medo, enquanto
houver o anseio pessoal pela continuidade de vossa individualidade.
Não estou pregando a aniquilação
total. Não podeis destruir a vida; porém aquilo que é separado, pode tornar-se o todo. Isto
não é aniquilamento, isto não é destruição; isto é verdadeiro viver, verdadeiro
ser, verdadeira ação, verdadeiro amor e espontaneidade de conduta; é este o
perfeito equilíbrio do amor e da razão que é a essência da experiência. A
perfeição é a cessação do esforço, a qual não significa sono perfeito, porém,
sim, ação dinâmica, — dinâmica por ser toda-integrativa, puramente percebida, e
daí, liberta de todas a reações de gosto e de desgosto, de ódio, de prazer e
dor. É ela a continuidade da serenidade, do ser, desprovida de todo o apego; é
essa qualidade da pura mente que é
percebida, recolhida e ativa, pelo fato de se haver tornado uma com a própria
vida, desimpedida, ilimitada. Quando houverdes percebido essa realidade, quando
a houverdes compreendido, experimentado por meio de grande tristeza, através da dor e do prazer,
então, com esta realidade não poderá haver transigência. A transigência é
resultante do medo que nasce da incerteza, do horror, da dúvida. Quando, porém,
perceberdes aquilo que é eterno, por meio da vossa própria experiência, pelo
vosso apercebimento próprio, pela vossa vigilância e observação de todas as
coisas, não pode haver transigência. Então servir-vos-eis dessa energia, que é
requerida para a ação, afim de encontrardes o meio prático de viver, da
conduta, da excelência do comportamento.
Por agora, temos, ano após ano,
discutido como conciliar as coisas. “Alguém disse isto”, “certa outra pessoa
disse aquilo”, “o que é que o Sr. Diz?” Eu digo isto: realizei esta coisa por
intermédio de minha própria experiência, e esta é absolutamente impessoal, nada
tem a ver seja com quem for, nada tem que ver com personalidades, de qualquer
espécie que sejam, pois que a vida é impessoal. É esse êxtase do ser no qual
existe o amor infinito e o pensamento infinito. Realizei isto; e quando o coloco,
perante vós, não é por autoridade, pelo desejo de domínio, por qualquer desejo
de inspirar temor, porém pelo de evocar um amor e um pensamento semelhantes em
vossa mente e em vosso coração. Pelo fato de vos achardes em conflito, lutando
de contínuo com irrealidades, com incertezas, torturados em vós mesmos por meio
de inúmeras ilusões, eu vos exponho isto, eu vos ofereço ou para que o tomeis
ou para que o rejeiteis. Se o tomardes, tendes que vive-lo a todo o instante do
dia e não apenas por umas quantas semanas. Deveis ser intransigentes, fortes, cheios
de energia e de interesse, pois que a verdade é para aqueles que vêm a ela
livres e destemidos, despojados de todos
os enganos, desprovidos de apego. Se vierdes com uma tal mente e um tal
coração, encontrareis aquilo de que vos falo; se, porém, estiverdes
aprisionados em vossas vaidades pessoais, vossos temores e ambições, não o
encontrareis. Então vos afastareis ainda mais seguros de vossas ilusões, e daí
provirá ainda maior tristeza. Isto não vos digo como ameaça.
Assim, um homem sábio,
verificando a existência de todas as expressões da vida, as ilusões e enganos
criados pela mente em seu combate contra o medo, as separações do homem e homem
— verificando todas estas coisas, observando-as todas — torna-se plenamente
cognoscente, apercebido do verdadeiro valor de todas elas, e por esse modo
atinge a iluminação; e nessa iluminação ele vive e tem seu ser, e daí ser ele
livre para a desimpedida, para a ativa felicidade.
Krishnamurti em Acampamento da estrela de Ommen, 6 de agosto de 1930
(Campfire)