A maioria das pessoas aqui
reunidas vieram pelo fato de não estarem satisfeitas com as coisas que as
cercam, descontentes consigo mesmas, com suas ideias e a sua vida; e de um
descontentamento, do qual se hão afastado, foram
parar a outro descontentamento; e assim, estágio por estágio tornaram-se cada
vez mais indiferentes. Ora, para mim, a indiferença de qualquer espécie que
seja, em relação seja ao que for é o maior dos crimes, pois que a indiferença
permite as acomodações e a partir do momento que haja indiferença, a qual não é
verdadeira tolerância, dá-se um amortecimento do pensamento e das emoções; não
mais terá lugar a espera contenda, a luta violenta, o combate ativo. Enquanto
não chegardes ao verdadeiro contentamento — e o contentamento verdadeiro mora
somente onde houver absoluta serenidade da mente, absoluta certeza e segurança
— deve haver descontentamento, deve haver eliminação contínua, contínuo
questionar e dúvidas, de modo que pela vossa análise, chegareis cada vez mais a
essa segurança do ser, a essa certeza em que não mais perguntareis se uma coisa
qualquer é boa, se é segura, porque a todo o momento estareis atuando em
virtude da espontaneidade do vosso próprio ser.
Indiferença é simplesmente
negação, e desta não pode surgir sentimento ou ação forte. O descontentamento
deveria levar a um forte sentimento, não à indiferença — ao forte sentimento
que cria a ação dentro de vós, que produz a alteração de vosso ponto de vista —
não acomodação, porém contínua eliminação, até que não mais sejais sub-humanos,
porém sim, o Homem, completo,
integralmente concentrado, desprendido e puramente acautelado.
Assim, alguns dentre vós aqui
vieram por descontentamento, e pretendem examinar o que eu digo, criticar,
analisar o que tenho estado a dizer durante estes últimos poucos dias. Ora, se
olhardes em torno, haveis de verificar que a Natureza — a que é ainda
instintiva, não autoconsciente — esconde a vida em si mesma. Posto que ela
seja, potencialmente, a mesma no homem o mais civilizado e culto, é, no
entanto, mais limitada do que no homem consciente de si mesmo, é mais
instintiva. A função, o destino da Natureza é criar o indivíduo autoconsciente
e a autoconsciência é criada pela limitação. Portanto, a tarefa do homem, a
tarefa do indivíduo, é tornar-se o Todo,
sem esse sentimento de limitação que nada mais é do que a autoconsciência. É
contra esta limitação que ele tem de lutar, que combater, devendo tornar-se um
anarquista contra a limitação que existe em si mesmo. Este é o verdadeiro
anarquismo — não a destruição de algo de exterior — esta é a verdadeira
revolução, pois que produz a criatividade do Ser.
A medida que vos tornardes cada
vez mais autoconscientes, cada vez mais vos tornareis separatistas. Em vós
existirá o objeto e o sujeito. Posto que saibais que no objeto — isto é, no
todo — todas as coisas estão contidas, que toda a vida é, no entanto, dentro do indivíduo, nesta limitação da
autoconsciência, o todo não está ainda
realizado e daí, a tarefa do indivíduo, é tornar-se conscientemente esse
todo, essa totalidade. É esta a tarefa da existência individual, a da perfeição inconsciente, instintiva, por meio da limitação da
autoconsciência, da imperfeição, chegar à pura perfeição intuicional. O indivíduo colhido pelo cativeiro da
tristeza, que ainda luta contra esta limitação, achando-se ainda no está
instintivo do sub-humano — tal indivíduo, para lutar contra esta limitação, tem
que derrubar a parede que o separa desse ser
puramente intuicional.
Para mim, portanto, a
autoconsciência é ainda sub-humana, enquanto que a liberdade de consciência, é
chegar a ser o Homem Puro. Assim,
pois, investiguemos o que é sub-humano, quais os instintos do sub-humano. A
primeira das características do sub-humano é o medo. O medo cresce por
intermédio do desejo de conforto, do bem-estar; e deste medo surge a
hipocrisia, o desejo de acomodação, o seguir com a multidão, coisa que é, se
bem examinardes, qualidade do sub-humano. Depois, do medo, vem o desejo de
poder, o desejo de dominar a outrem, por meio das faculdades criativas, o que
mais não é do que impor vosso próprio entendimento, o vosso próprio poder, a
vossa própria percepção a outrem, de modo a dominá-lo e guia-lo. Assim, pois,
do temor em todos os seus estágios provém o desejo de alcançar poder, domínio,
para conforto.
Em seguida, em segundo lugar, há
a paixão, a sensação, a satisfação, a antecipação, e o lamento. Em terceiro
lugar, o ódio, no qual se acham implícitos gostos e desgostos, — gosto e
desgosto para o uno e rejeição para o todo; exclusividade; o repelir os outros
em virtude do afeto por um.
Depois, há a avareza, a cobiça
pelas posses, o depender das posses para a felicidade, para o bem-estar. Das
posses provem o ardor de guardar o que possuís e invejar aqueles que têm, e
destas coisas vem o entorpecimento, a ira, a cólera.
Finalmente, existe a tendência a
serdes muito pessoais em vossa visão, sempre encarando o mundo, as outras
pessoas, a partir do ponto de vista de vós próprios; todos os atos, sentimentos
e conduta brotam de desejos pessoais e ambições.
Todas estas coisas são apenas
qualidades sub-humanas, instintos; e o homem, autoconsciente, que seja ainda
sub-humano, por meio de sua experiência destas coisas pelo seu contender com
elas, por meio da reação que elas provocam, cresce. Pelo amoldar o instinto e a
razão, por meio da experiência, torna-se o homem puro; torna-se desprendido, liberto de todo o
apego. Daí segue o comportamento, a excelência de conduta, o puro
apercebimento sem limitação do “Ego”, essa pura percepção que é intuição.
Então, estareis vivendo nisto a todo o instante e sendo isto a todo o instante.
Ora, o desapego, se for meramente a resultante
da tristeza, da dor, torna-se indiferença, a qual é apenas negação;
ao passo que o verdadeiro desapego é alegria, beatitude, pelo fato de haverdes
terminado com as equações pessoais, com os pontos de vista pessoais. Um tal
desapego é mente plácida, serenidade, e daí surge a excelência da conduta,
sendo a conduta a ação, a ação espontânea do vosso ser, tratando a todos do
mesmo modo, evidenciando a mesma qualidade de afeto para todos.
Este apercebimento é diligente,
recolhido, concentrado, não a partir do ponto de vista do “Eu”, do ego, o qual
é reação, porém do ponto de vista do conjunto; sem limitações, não impedido.
Então, dá-se a
percepção pura da intuição que é inteiramente impessoal, desprovida de apegos,
de todo o medo — sem objeto, que chega a conhecer independentemente
de objetos, ser, também, pois que a intuição não é mais que a experiência da
vida — não esta vida individual, porém a vida de todas as coisas. Ela é a
totalidade do ser, do qual todas as qualidades pessoais, as ambições pessoais,
as pessoais aspirações foram desprendidas. Ela é. Esta é a mais alta realidade,
o ser mais alto. É a própria vida, a qual é a verdade, a qual é a felicidade.
Quando perceberdes isto, coisa
que só podereis efetuar quando estiverdes apercebidos de vossas limitações,
plenamente cognoscentes da causa dessa limitação que é o desejo, isto vos
propelirá a lutar para atingir esse ser ilimitado, a vos tornardes tão
concentrados a todo o momento do dia, que sobrepujais, por meio do
entendimento, as qualidades sub-humanas do medo, da avareza, da cobiça, da
inveja, do desejo pelas posses, pelo poder, pelo bem estar pessoal e a pessoal
resistência. Tornai-vos desapegados com grade alegria e felicidade; e por meio
desse desapego nasce a excelência de conduta, do comportamento, e por intermédio
deste, mais uma vez nasce o puro apercebimento, sem limitações. Então, sereis
uno com a vida, a qual é infinito ser, e esta se evidenciará a si mesma na ação
— não em discussões metafísicas e disputas, porém na ação referente à conduta
de todos os dias. O estado de vosso ser não é senão o deleite, o perfume da
existência. Este estado de ser é eterna felicidade, na qual existe tanto o
positivo como o negativo, que é a consumação
de toda a vida. Alguém que haja alcançado isto, é Homem; ter-se-á tornado um ser em quem instintos sub-humanos não mais
existem.
Krishnamurti em Acampamento da estrela de Ommen, 5 de agosto de 1930