Se não houver contato com a vida,
no efetivar da ação que implica seleção e contínuo discernimento, não haverá
possibilidade de plena realização. Tal realização somente pode provir do
contínuo desgaste da individualidade. Se, porém, a ação nasce do temor, esta
ação lutará para amoldar-se segundo o padrão estabelecido. O medo origina-se
fundamentalmente, do fato de buscardes realização e entendimento fora de vós
próprios, buscando a certo Ser super-humano que vos livre da treva que vos
cerca em vossas ações. Havendo medo, a todo o instante estareis vos esforçando
pelo vos tornardes; o tornar-se nada mais é que a imitação
originada do medo. Toda a vez que a ação provier do medo, essa ação, em vez de
vos libertar, vos embaraçará cada vez mais. Verdadeira ação é a
contínua eliminação, o desfazer da autoconsciência que se apercebe de
separação. Se, porém, a ação provier do medo, em virtude desse medo advém a
formação de seitas, de grupos estreitos, de indivíduos que se unem em seu tornar-se.
Uma seita, como corporação, não
se pode acercar à verdade, pelo fato de a verdade ser realização individual, um
individual esforço interno. Não é pelo vos apegardes a uma corporação que ireis
chegar à plena realização do ser. Por isso é que eu insisto em que somente por
meio do indivíduo, se encontra a plena possibilidade de realização. Uma seita
ou grupo vem à existência quando há muitos que se esforçam por imitar um padrão
estabelecido — que é não a verdade completa, porém um fragmento da verdade. O
medo acha-se implícito no tornar-se e o ceder ao medo não faz mais do que ampliá-lo e daí multiplicar-se
o engano. Por este tornar-se, baseado no medo, manifesta-se sempre o
desejo de ter, de tomar, de ser guiado. Assim, uma nova corporação se forma
para a pesquisa da verdade; porém, jamais se chega à verdade por meio de grupos
ou sociedades. A verdade somente se percebe por meio do esforço individual.
A verdade é o desapercebimento da
existência autoconsciente. Se não estiverdes mais que imitando, tentando vos
tornar um padrão estabelecido, pelo seguir uma fórmula estabelecida, somente
estareis cedendo ao medo; e por esse modo acrescenta-se o medo. O homem que não
quiser sentir medo deve aperceber-se que, posto que as formas de existência
individual variem, posto que as expressões do eu-consciência mudem, ainda que a
vida a si mesma se manifeste por maneiras diferentes, fundamentalmente, a vida
é uma só. Quando vos aperceberdes disto, todo o medo cessará. Então, não mais
existirá o esforço para tornar-se, e sim a tentativa de vir a ser. Por meio desta luta
tem lugar a verificação intuitiva da unidade do ser, a qual em momentos de
razão desperta em grau extremo (a qual é intuição) todos sentem e conhecem
dentro de si mesmos. A tarefa da
existência autoconsciente é a de verificar a plena potencialidade deste fato; e
quando ele é plenamente realizado, então a individualidade imerge no TODO e
chega assim ao seu preenchimento.
O findar do medo é o começo do
ser; e o ser é harmonia, equilíbrio perfeito em todas as suas expressões. O ser
não exige imitação, a formação de grupo ou seita, o reunir-se em conjunto como
um exército com general em um mundo de caos. O ser é integratividade, no qual não existe
o apercebimento do “tu” e do “eu”. Enquanto estiverdes apercebidos do “tu” e do
“eu”, haverá desarmonia, devida ao esforço para tornar-se, no qual se acha implícito
o medo. A separação é ocasionada por esse ego que nada mais é que a existência
autoconsciente do indivíduo; e desta separação da individualidade
autoconsciente, provem a ansiedade e o autoengano. A individualidade não constitui
um fim em si mesma. A individualidade é imperfeição, acha-se no processo de
tornar-se até chegar ao ser.
O tornar-se é esforço, o ser é
cessação do esforço. Enquanto houver esforço é ele autoconsciente e,
portanto, imperfeito. O ser não é mais que o puro apercebimento da existência isenta
de esforço. São palavras estas que necessitais traduzir por meio da intuição, a
qual vem a ser a razão em sua forma mais elevada. Para chegar a este ser,
tendes que ter em conta o desejo ocasionado pela existência autoconsciente.
Quando tiverdes compreendido o desejo, de onde ele tem sua origem e para onde
se dirige, torna-se ele uma joia preciosa à qual vos segurais, e a qual
estareis continuamente cinzelando e aperfeiçoando. O desejo assim, é a origem
da verdadeira disciplina — não de uma disciplina pré-estabelecida, porém da
disciplina que varia progressivamente até que chegueis ao puro ser.
O desejo busca a felicidade não
impedida. Na busca dessa felicidade ele procura, em primeiro lugar, as posses,
as quais implica cobiça, inveja e outras coisas mais. Em seguida passa ao
próximo estágio, que é o gozo das coisas sutis. Antes que chegueis a esse gozo
sutil é preciso que exista o domínio — com a compreensão do propósito da existência
individual — dos desejos físicos, do gozo do grosseiro. A maioria das pessoas
chegam a este domínio do gozo físico, um pouco tarde, na vida, quando já são
velhos após haverem-no experimentado sem entendimento. Pela fadiga continuada,
pela falta de energia, tem lugar o domínio, domínio esse inconsciente, que não
é o domínio oriundo do entendimento.
O homem que quiser livrar-se do
engano e dos anseios deve ter um perfeito domínio sobre o corpo — domínio por
meio do entendimento, não filho da supressão ou da repressão. O domínio vem com
o desejo de entendimento do propósito da existência individual e do seu
preenchimento. A
maioria das pessoas suprimem seus desejos por terem medo; isto,
porém, não é domínio, é morte. O verdadeiro domínio é flexibilidade, atividade,
tendo o corpo plenamente ativo, porém sob refreio.
Depois, deve haver domínio nas
emoções, o qual mais não é que uma forma sutil do gozo. Por meio da emoção, uma
vez ainda, o desejo busca a felicidade. Eu sirvo-me da palavra domínio como
significando disciplina autoimposta, com entendimento — não o estúpido domínio
que vos deixa de ânimo azedo, que vos torna duros, cruéis, rudes. A disciplina
autoimposta é cheia de gentileza, consideração, é terna e não dura. Se vos
abandonardes a vossas emoções e fantasias, ao romantismo, ao mistério, mais uma
vez sereis vítimas do autoengano e do anseio, do esforço para tornar-se. Do
mesmo modo, deve haver domínio do mental. A função do intelecto é estabelecer
uma ponte entre a ação e a intuição. Ele deve guiar, não dominar, e, por esse
modo, produzir perfeita harmonia.
Krishnamurti em Reunião de Verão, 23 de julho de 1930