Tentarei esta manhã resumir
minhas palestras da semana passada; e se claramente quiserdes entender oque vos
digo, deves acercar-vos com o desejo real de compreender. Usarei de termos
vulgares e a vós compete o tornardes estas palavras barreiras ou ponte para
sobre ela passardes além. Alguns de meus enunciados poderão parecer-vos
dogmáticos; se, porém, os escutardes com mente desprevenida verificareis que
eles brotam da plenitude do entendimento e da experiência da vida.
Na confusão e turbilhão da
existência, pelo seu contínuo pipocar e em seu conflito, todo o indivíduo no
mundo inteiro é colhido. Para entender o significado disto é preciso primeiro
aprende-lo intelectualmente e depois levar as teorias intelectuais à prática. O
homem que constrói uma ponte entre o seu pensamento e seus atos, é um homem
verdadeiramente culto. E, desde que o pensamento vem primeiro, é na verdade
necessário que seja um pensamento verdadeiro. Portanto, necessitais de abordar
este problema com a mente clara e sintética, liberta de preconceitos, vaidades
e superstição — uma mente que deseje sondar a raiz real das coisas e não meramente vagar pela superfície. Tendes que averiguar o que é que esta vida
centralizada e focalizada no indivíduo se esforça por levar à prática; pelo que
é que ela luta, e como pode ela encontrar um caminho através do conflito de
propósitos, das irrealidades e ilusões que a circundam. Semelhante a um pássaro
que abre seu caminho, por uma tarde, através de toda a confusão de uma cidade
ruidosa, em direção ao seu ninho, assim deve cada qual encontrar o propósito
último da existência — essa meta na qual se encontram o começo e o fim de todas
as coisas.
Para atingir esta verdade devemos
nos tornar capazes de inquirir sem embaraços. Quisera que examinásseis o que
digo inteligentemente; e, por inteligência entendo eu a colheita do que é
essencial e o deixar de lado o que o não é. Quando mediante uma tal
inteligência houverdes extraído o que é essencial, então deveis assimilá-lo —
isto é, vive-lo. A principal dificuldade ao tentar compreender a verdade é que
cada indivíduo que busca tende a interpretá-la, adiantadamente, à sua maneira
particular. Estabelece uma teoria acerca da verdade e, em vez de amoldar-se à verdade, amolda-se a teoria;
e por esse modo temos inúmeros tipos daquilo que se supõe ser “espiritual”. Uso a palavra “supõe” propositalmente.
Existe, por exemplo, a suposta
espiritualidade do asceticismo. É uma ideia fixa existente na mente de muitos a
de que ser asceta é ser espiritual. Mas, realmente, o asceta é somente um homem
que se atemoriza do mundo. Ele odeia o mundo e todas as experiências que ele
lhe pode oferecer. Encurtando, é um homem que rejeita a vida.
Depois, vem o tipo de
espiritualidade que aguarda uma intervenção miraculosa afim de salvá-lo das
lutas e tristezas da vida. Em vez de lutar na direção da regeneração, tal homem quisera antes
que algo de súbito lhe acontecesse que viesse alterar completamente sua visão
mental. Em lugar de vencer a tristeza, quisera que certa “Mão de cima” lhe
adoçasse as agruras do coração e a febre da mente e assim lhe trouxesse a paz.
Depois vem ainda o tipo que pretende
imitar. A imitação jamais pode atingir a beleza, por ser contrária à vida. Toda
imitação é mecânica; pertence ao mundo da ortodoxia, da tradição e da imitação,
— ao mundo da corrupção.
Finalmente, vem o tipo que busca
evitar o entendimento real, tomando refúgio em um sistema intelectual. Todos os
sistemas são invenções da mente. A vida, em si, não tem sistemas, pois que está
sempre em movimento; sempre crescendo e combatendo. Sistematiza-la, portanto, é
aprisiona-la, é negar sua qualidade vital. Por este motivo o intelecto puro
jamais pode compreender; nem pode a sua antítese, que é o puro sentimento,
jamais entender. Necessita-se de força para o entendimento; mas o
sentimentalismo é sempre fraco.
Para chegar à verdade, pois,
tendes que apagar todas essas supostas espiritualidades. Não estabeleças um
tipo para depois vos esforçardes por vos tornardes mais nobres mediante esse
tipo. A busca da verdade não deve estar sobrecarregada pelos preconceitos. Deve
estar liberta das limitações impostas pela tradição, pelas circunstâncias,
pelos sistemas intelectuais. Ela inicia-se pelo auto-exame. Precisais achar
qual é o vosso interesse particular e o que é que realmente estais buscando. O
conforto ou o crescimento? Para averiguardes isto tendes que ter em vista o
vosso próprio desejo — o vosso, entendei bem, não o de outrem. É fútil gastar
tempo a considerar sobre o que outrem pensa, ou sobre o que imaginais que pensa
— pois que jamais o podereis saber. A única pessoa que pode ser perscrutada
sois vós próprios.
Ora, o desejo que for contrário à
crença geral, é o mais precioso bem do homem. É a chama eterna da vida. Quando,
entretanto, sua natureza e funções não são compreendidas, torna-se agressivo,
cruel, estático, bestial e estúpido. Portanto, o que vos compete não é matar o
desejo, que é o que a maioria das pessoas espirituais do mundo se esforçam por
fazer, mas, sim, compreende-lo. Se matardes vosso desejo assemelhar-vos-eis ao
ramo murcho de uma árvore linda. O desejo deve continuar crescendo e encontrar
seu verdadeiro significado por meio do conflito e do atrito. Somente pela
continuação do conflito pode vir o entendimento. Isso é o que a
maioria das pessoas não vê. Logo que vem o conflito — e a tristeza nasce do
conflito — imediatamente buscam o conforto. O conforto, por seu turno, acalenta
o medo. O medo conduz à imitação e ao abrigar-se por detrás das tradições
estabelecidas. Destas provêm os rígidos códigos de moral, estatuindo o que é
espiritual e o que não é, o que é vida religiosa e o que não é vida religiosa.
É o temor da vida que produz os guias, os instrutores, os gurus, as igrejas, as religiões. Eu digo-o, porque sei.
Nenhuma destas coisas satisfará a
mente que realmente seja inquiridora, que realmente esteja em revolta. Logo que
vos atemorizais, advêm o desejo de vos amoldardes, de escutardes a outrem, seja
ele quem for, a vos tornardes uma máquina, um tipo. E tudo isto é apenas
contradição, e a contradição é tarda, é a morte. Não é por esta forma que o
desejo poderá jamais preencher-se a si mesmo. O crescimento pode vir apenas
mediante a libertação do desejo e a libertação aqui significa o libertá-lo de todo
o temor e, portanto, da crueldade da
exploração que resulta a busca do conforto, o qual é um refúgio para o temor. E
isto, por seu turno, somente pode ter lugar mediante o esgotamento do egoísmo
pelo desejo, pelo
contato com a própria vida. Somente por esta maneira pode a
realidade ser atingida, a qual é a verdadeira consumação do desejo. E, portanto,
verdadeiramente, crescer é aprender a amar mais e mais, a pensar mais e mais impessoalmente,
por meio da experiência.
O desejo, liberto de suas
limitações e da ilusão do medo, torna-se alegria, que nada mais é do que o
verdadeiro equilíbrio entre a razão e o amor. Sendo a princípio pessoal,
limitado, cheio de ansiedade, apegado, cresce ele pelo sofrimento, até
tornar-se todo-integrante, até tornar-se como o sol poente que dá e nada pede
em troca. Do mesmo modo, pela continua experiência, pelo assimilar e rejeitar
torna-se o pensamento de mais em mais impessoal. Quando ambos, pensamento e desejo
houverem nascido purificados, então obtemos o perfeito equilíbrio e a harmonia
entre os dois, que é o preenchimento da vida e do que falamos como intuição. Uma
tal vida assim purificada constitui
a mais alta realidade e, digo eu, que todo o homem e mulher tem de mais cedo ou
mais tarde atingi-la. Ela não se acha reservada para os poucos, pois que a vida
não é a posse de poucos. É aquilo que luta pela realização em todo o ser
humano, e o caminho para a realização é o mesmo em todos os casos. É mediante a
luta, o esforço e o conflito.
Agora, esta realidade é algo que eu afirmo
haver atingido. Para mim ela não é um conceito teológico. É a minha própria
experiência, definida, real, concreta. Posso, portanto, falar do que é
necessário para sua consecução, e digo que a primeira das coisas é o reconhecer
exatamente aquilo que o desejo deve tornar-se a si próprio afim de que a todo o
momento exerçamos vigilância sobre os nossos desejos e os possamos guiar em
direção a essa coisa
toda-integratividade do amor e do pensamento impessoal que deve ser
a sua verdadeira consumação. Quando houverdes firmado a disciplina deste constante apercebimento, desta constante vigilância sobre tudo o que
pensardes, sentirdes e fizerdes, então a vida deixa de ser tirânica, tediosa e
cheia de confusão que é para a maioria dentre nós, e torna-se apenas uma série
de oportunidades, de crescimento, na direção da perfeita consecução.
A meta da vida está, portanto,
não algo distanciada, para ser atingida somente em um futuro distante, mas deve
ser realizada momento a momento neste AGORA que é todo eternidade. Em uma tal realização
cada momento domina o futuro; pelo que fordes agora tornareis a vós próprio
senhor do dia de amanhã. Para compreender a vida e vive-la com entendimento
tendes que vos libertar de todas as ilusões que o desejo projeta em seus
esforços para crescer. E isto subentende que tendes de vos libertar do medo,
pois que todas essas ilusões nascem do temor. Uma vez que tenhais atingido a coragem,
então entendereis claramente o que é que o desejo procura realmente e de como
pode ele atingir o seu fim. O homem que procura a felicidade e sabe o que está
procurando, não deve abrigar o divórcio entre os seus desejos e ações. Sabendo
o que o desejo realmente quer, traduzi-lo-á nas ações diárias. Por outras
palavras, todas as suas ações evidenciarão essa estabilidade da razão e do
amor, que constitui a verdadeira nota do desejo, pois que a libertação é vida.
Krishnamurti em Acampamento de Ojai, 1 de julho de 1930