É de todo necessário atender às
várias dificuldades, problemas e complexidades que nos cercam debaixo de um ponto de vista desinteressado
e impessoal. É tão difícil fazê-lo que é quase impossível, a menos que
tenhais um fim criador para observar que vosso espírito não seja colhido pelos
velhos sulcos do pensamento comum. Deveis, por exemplo, experimentar
desassociar-vos de todos os sistemas do pensamento, de vossas religiões, vossas
ideias preconcebidas, vossa experiência — tudo
— e observar a vida positivamente, desapaixonadamente, embora estejais
examinando alguma coisa que nada tenha a ver convosco, que vos seja estranha,
que seja puramente objetiva, sem vos trazer emoções e prejuízos; e vereis quão
difícil é chegar-se a um modelo desinteressado de pensamento que não pertence à
soberania de nenhuma país, de nenhuma nacionalidade, de nenhuma religião e
nenhuma seita. Quando chegardes à percepção daquele desinteressado pensamento,
como por fim chegareis, ele agirá como um padrão, ele se tornará um espelho que
refletirá todos os vossos sentimentos, pensamentos e atos, sem perversão.
Se procurardes realmente
compreender o que estou dizendo, e este é o motivo pelo qual todos vós estais
aqui — chegareis por contínuos e incessantes esforços, a este ponto de vista
impessoal e daí alterareis vosso pensamento de todo o dia, vossas afeiçoes de
todo o dia, lutas, desconfianças, invejas, contrariedades. Achareis que este
ponto de vista é infinitamente mais simples que todas as vossas complexidades.
Sei que direis: “Isto não se entende com todos nós; é para alguns; é para os
vindouros”; e assim por diante. Mas, vós sois os vindouros. Se não o
compreenderdes, se não o sentirdes, se isto não fizer parte do vosso ser, de
que serve? Se estiverdes na miséria não direis: “Outros estão bem alimentados e
com isto me contentarei”. Precisais satisfazer-vos se tiverdes fome; e aqueles
que procuram espiritualidade devem ter fome da mesma maneira.
Aqueles que desejarem compreender
a vida devem ter o desejo de se soltarem
de suas prisões, de serem livres,
e, assim, poderão pesquisar, indagar tudo de cada transeunte. Devemo-nos
preocupar com a remoção desta prisão a que chamamos tristeza. Tristeza,
esforço, luta passam incessantemente pelo mundo — e esta dor contínua e
entorpecente perverte o julgamento e desvia o pensamento. A tristeza do homem é
uma contínua opressão. É isto o que devemos considerar. A tristeza é causada
pela limitação da vida em cada homem e no momento em que destruirdes esta
limitação e desembaraçardes essa vida, a liberdade começará. É com essa proposição
que nos devemos preocupar; não com aquilo que acontecer quando estiverdes em
liberdade ou com aquilo que ficar além, mas com o colocar livre a vida que está
escravizada.
Nesta civilização — civilização é
apenas a expressão de si mesma — nesta moderna civilização está-se formando o
homem modelo. Como há motor modelo, o homem está sendo modelo. Quer dizer:
estais vos esquecendo da tristeza, em vez de a eliminardes e, portanto, vos
tornais estático criador em vossas
energias. A tristeza que está apenas colocada
de lado faz do homem um autômato.
Há dois tipos de seres humanos no
mundo atualmente. Um diz: “Deixe-me gozar por qualquer preço e não me
incomodará o que acontecer a mim ou a quem quer que seja”. Este é um “comodista”. Sua vida não é criadora nem
proveitosa, mas estúpida e medíocre; ele só deseja divertir-se. Quando falo
assim, não viso outros homens, vizinhos e amigos vossos; eles não são os homens
de que falo — o homem sois vós. Se tudo quanto digo se refere a vós, então
modificai-vos vós mesmos. Como tenho dito repetidamente, estou preocupado com o
indivíduo e não com a máquina porque o indivíduo pode controlar a máquina que é
a civilização. Se ele próprio está procurando libertar a vida, se há educação
na alma, de si mesmo — que é a cultura e esta cultura expressa-se a si mesma na
civilização — então a civilização, que é o fenômeno de si mesma, criará as
circunstâncias, a oportunidade que colocará o homem livre, que fará livre a
vida no indivíduo. Aplicai, pois, o que eu digo a vós mesmos e não a outrem. Se
não for aplicável deixe-o. Se for aplicável, mudai, modificai. Há um tipo de
homem que diz: “A qualquer preço deixe-me ter divertimentos que me permitirão
esquecer a minha pessoa, as minhas lutas, minhas dores, minhas dificuldades.
Deixem-me colocá-las de lado e vaguear pela terra do divertimento que é
totalmente mecânico”.
Agora há outro tipo que é o asceta. Este é outra modalidade de “comodista”.
Um verdadeiro asceta quer deixar o mundo, quer fugir daquilo que se chama “maya”, e através de contínuas
introspecções ele se mata cada vez mais, a si próprio, em vez de enriquecer-se.
O asceta, porque receia inconscientemente — conquanto não demonstre — o
conflito das manifestações, o contato com as reações de seus próximos, a luta
do dinheiro sonante, diz: “Como não posso atingir a perfeição do mundo, devo
abandoná-lo e deixar o gozo para outrem”. Esta é uma forma de tentar esquecer o
conflito.
Estou, naturalmente, falando de
modo exagerado, mas para fazer-me claro. Tanto o “comodista”, como o “asceta”
procuram encontrar quem os substitua afim de escaparem do conflito. Para
compreenderdes a vida deveis encontrar o caminho do meio, o meio termo. Deveis reconhecer
que ambos os extremos são pontos de fuga, evitando por aí, consciente e
propositadamente, um conflito com a própria vida. Quando o espírito receia o
conflito, não pode resolver os problemas da tristeza, da dor, das lutas, das
afeições, e pensamentos, porque através do medo ele procura e inventa outros
meios de fuga e consolação. Segui vosso próprio espírito e vereis que há sempre
o desejo de conforto. Desejais um conforto sombrio, um tabernáculo para onde
possais retirar-vos quando se ferir a batalha da tristeza em vosso redor, isto
está em vós mesmos. Tal espírito procura naturalmente consolação ou em
divertimentos ou na extrema forma de asceticismo.
Para compreenderdes a vida que
aqui se manifesta — que está aqui em ação — não podereis retirar-vos para
outros reinos. Deveis compreender a vida onde estais. Deveis fazer-vos perfeitos,
consumados, onde estais. Isto
significa libertar a vida dentro de vós — não atingirdes a libertação. Desde
que pondes em liberdade a vida dentro de vós, de modo que ela funcione de
acordo com uma vida que é diversa, unificada, integral, completa, então vós
estareis sendo perfeito e consequentemente consumado.
O objetivo da existência é libertar a vida no homem e desde que tenhais medo,
que temais o conflito, o espírito procura naturalmente consolação, suas
conveniências, conforto, deuses, fora desta luta. Os deuses vêm a ser um
remédio que vos acalma para dormirdes. É o mesmo que se dá com os “gurus”. Sei que vós todos discordareis,
mas não importa. Afirmo que ser bom e são, compreender a vida naturalmente,
sadiamente, não através de complexidades, é vital e vos dará espontaneidade e
força. Quando o espirito teme entrar em conflito com todas as lutas da vida,
então tendes formas religiosas, adorações, orações e por aí evitais, cada vez
mais, a harmoniosa e rica compreensão da vida aqui.
Para observardes este ponto de
vista, deveis ser, como disse a princípio, honesto convosco mesmo, separado completamente de
todas as criações de vosso espírito. Vós não conheceis realmente vosso próprio
espírito, não sois honesto, não
atingistes o extremo lógico do pensamento. Tendes recantos secretos,
inexplorados, em vosso espírito, nos quais descansais, e a que não levais a luz
do vosso entendimento. Deveis ter a inteligência de vos separar completamente
de todos os vossos recantos escuros, de vossas criações, de vossos temores, de
vossas tradições, da experiência dos outros. Não sabeis quão difícil é fazer
isso, mas deveis fazê-lo se quiserdes compreender a vida. Sei que me ouvireis
dias e dias, e, quando eu volto, sois exatamente os mesmos, com o mesmo
pensamento habitual, como uma máquina que trabalha para produzir coisas inúteis
que nada têm a ver com a vida, enquanto possam ser convenientes.
Para libertar a força criadora
deveis encontrar o verdadeiro objetivo da vida, que é: não vos tornar-vos sobre-humano,
mas tornar-vos perfeito, harmonioso e consumado
ser humano. Cada um de vós está procurando tornar-se cada vez mais sobre-humano,
porque ser sobre-humano é estar acima da humanidade. Mas, mais engrandece ser
ente humano vivendo, aperfeiçoando-se, atingindo o máximo da perfeição, do que
ser sobre-humano. Sei que muitos de vós discordarão, mas discorde com razão,
com entendimento, com a devida compreensão do que significa o que estou dizendo,
e não como mero julgamento superficial de palavras. Deveis compreender este
mundo, deveis aperfeiçoar-vos neste mundo, ser consumado neste mundo, ser
criador neste mundo. Fazendo-o, deveis libertar a vida universal que está em
vós. Não é, portanto, uma questão de fugir das dificuldades e reações ou por
ter uma época favorável ou por asceticismo ou por mágica ou qualquer outra
coisa; porque tais coisas são apenas uma fuga, um esquecimento, não uma
completa solução às dificuldades da vida.
Não é de esquivar-se da
humanidade o que precisais. O ser humano precisa estar acima da tristeza, tal
como o “comodista” e o “asceta”. Ele precisa ser livre e feliz, tranquilo,
dócil de espírito. Isto só pode ser alcançado por constante e voluntária
previdência, o que significa libertar a vida que é uma prisioneira dentro de
vós. Enquanto a vida estiver escravizada, enquanto houver um limite nesta vida,
o ser esforça-se, debate-se contra este limite, e esta batalha cria tristeza.
Este é o vosso problema. Se vos tornais um ser totalmente mecânico, este
problema não existe porque estais todo tempo esquecido, tornai-vos um dente da
engrenagem na máquina que nada tem a ver com a vida; ou vos retirais, vós
mesmo, deste mundo e vos tornais um dente da roda da espiritualidade, que é o
asceticismo, o que também nada tem a ver com a vida. O problema está em soltar
a vida dentro de vós e fazê-la livre. Ninguém, por fora — não importa quem seja
— pode fazê-lo. Podeis contemplar outros, podeis venerar outros, mas deveis
desembaraçar-vos para vós mesmo, porque como indivíduo, deveis desembaraçar a
vida que nenhum outro pode libertar. Eu sei que abordo este ponto repetidas
vezes. Mas trem sido tão ensurdecido, entre vós, por todos os séculos através
da tradição, da autoridade, escrituras, etc., que precisais procurar auxílio de
fora.
Para libertar esta vida, deveis
assimilar experiência por intermédio dos canais do senso e do desejo, através
dos canais do pensamento e do sentimento. Bloquear ou obstruir qualquer um
destes canais é prejudicar e colocar um limite à vida que desejais fazer livre.
Se obstruis qualquer canal do senso, do desejo, do pensamento ou do sentimento,
pervertereis a completa função da vida e daí resulta a rotina do pensamento, a
imprevidência, temor e incerteza e a necessidade de profunda afeição. Deveis
assimilar a experiência através dos canais; eles são os únicos meios que o
homem tem e não deveis bloqueá-los, se desejardes ter a vida liberta.
Deveis estar sempre em contato
com a vida. Quando fordes tão completa e voluntariamente previdente, disso
brotará espontaneidade de pensamento, de sentimento, de senso e desejo — não
moldado ou usurpado por quem quer que seja. Não vos tornareis então um dente da
engrenagem da máquina, mas funcionareis voluntariamente com uma espontaneidade
que é natural, limpa, sadia — que é o perfume da vida. Se virdes a vida deste
modo, sereis sensível, observador, hábil, e estareis preparado para vos ajustar
a vós mesmos.
Para por a vida livre, deveis ter
experiência. Para desenvolver esta previdência voluntária, ser isento de vício,
ou virtude que é o outro extremo, deveis amar a vida. De um lado está a vida
rica, harmoniosa funcionando livre e plenamente; e do outro lado o seguir a outros
pelo medo. É muito mais fácil seguir a maioria, obedecer, tornar-se escravo da
tradição, uma máquina que funciona subjugada pela força de uma estreita
moralidade, estar restringido à experiência de outros, estar preso a preceitos
religiosos de super-homens. — Tendes, assim, estes dois: um pela falta de
compreensão do objetivo da vida, criando medo; e o outro por esta compreensão,
vivendo a vida rica, harmoniosa, enérgica, ativa, por tudo interessante. Se
observardes deste ponto de vista, vereis que ninguém poderá auxiliar-vos,
deveis entrar em íntimo contato com tudo que vos cerca — não vos podereis
segregar, nem vos esquecer. O homem que procura libertar esta vida deve estar
além da sombra do medo, deve compreender toda a experiência através do desejo,
através do pensamento e do sentimento. Deve dar todo o seu espírito, com
voluntária previdência, à compreensão de cada contato das ondas da vida e,
desse modo, gradualmente destruir seus limites e soltar essa vida que contém
mais alto grau de espiritualidade. Quão mais simples se tornará a vida, quando
nela pensardes sob este ponto de vista! Ela vos dará a espontaneidade criadora
do pensamento e emoção, de modo a não mais serdes uma simples máquina. Mas,
para realiza-lo, deveis afastar-vos inteiramente, totalmente, de todas as
barreiras que criastes em torno de vós e, consequentemente, destruir esses
limites e tornar a vida livre.
Krishnamurti em palestra em
Adyar, 30 de dezembro de 1929