Há tantas ideias referentes à
minha pessoa, cada qual mais fantástica, que tenho de começar pedindo-vos que,
se realmente quiserdes dar-me ouvidos, deixeis de lado toda e qualquer
superstição. Aquilo de que vos vou falar pertence-vos tanto a vós, quanto a
mim; e ao passo que para mim é verdade única, não significa por tal que seja
unicamente minha. É ela uma verdade que pode ser atingida por todo o ser humano,
e não uma verdade reservada apenas para os eleitos ou para os eruditos. Onde
quer que haja seres humanos que pensem, sintam e se esforcem, esta verdade será
para eles a culminância e a florescência; e para todo ser humano significa ela
o atingir da
razão pura e do puro amor, a união vital daquilo que é a entremescla
da sabedoria e da beatitude — que é a visão perdurável e perdurável felicidade.
Esta é, para mim, a mais elevada realidade, e o será para todo o ser humano, o
qual, por ser ente humano, poderá atingi-la. No que a mim respeita, dela vos
falo de meu próprio conhecimento; pois sei que libertei essa vida que todos
mais cedo ou mais tarde têm de libertar, e que por meio desta liberdade obtive a iluminação,
a qual vem a ser apenas uma outra palavra para a realização do verdadeiro
mérito das coisas. Portanto, não deveis tomar o que digo por meras palavras e
frases ou por alguma espécie de filosofia oriental, nebulosa. Não o é, porque
aquilo que tendes de libertar é a própria vida; é com a vida que tendes de vos
haver, de lutar incessantemente se quiserdes deitar à plenitude da verdade.
Nem também estou falando a pessoas
especialmente escolhidas, a um grupo ou núcleo separado do resto do mundo. Para
mim tal grupo pode não existir. Eu não conheço “povo escolhido”, somente
conheço o mundo e vós é que sois o mundo — vós e o restante da humanidade. Não
se trata pois de um núcleo excepcional, especialmente qualificado para
compreender o que eu digo. Minhas palavras são para todos igualmente.
Como pretendo desenvolver o meu
tema durante esta semana, espero que cada qual de vós que aqui veio com
intensões sérias, considere o que eu digo, não sob o ponto de vista de qualquer
filosofia ou sistema, porém, com um espírito prático. Quisera que observásseis
como isto se efetiva; pois que o testemunho de qualquer verdade encontra-se na
ação. No ajuizar, portanto, que espécie de ação naturalmente viria a resultar
de qualquer linha de pensamento, podereis julgar o pensamento em si. Pois que o
pensamento verdadeiro conduzirá à ordem, à paz, à harmonia, ao passo que o pensamento inverídico só pode finalizar em caos,
perturbação e exploração dos outros.
Outro ponto — não penseis que o
que eu digo se aplica aos jovens e não aos velhos, ou vice-versa. Acentuo isto,
porque outro dia um amigo meu disse: “Porque haveis empreendido este trabalho?
Sois ainda tão jovem. Tendes ainda que vos enamorar.” Como se a espiritualidade
estivesse reservada para os idosos e para aqueles que têm já um pé no túmulo! A
partir do momento que opereis a divisão da vida e penseis a sua meta, algo a
ser a seu tempo atingido num futuro distante, o doce propósito desta realização
perder-se-á, pois que a atualidade da vida acha-se em cada momento da ação. A
vida não atende a divisões entre jovens e velhos. No Eterno Agora não existe
nem o tempo nem os estágios do tempo.
Quero falar desta vida que existe
manifestada em cada um de vós, que transcende todas as divisões de nacionalidade,
de classe e de religião; dessa vida que, por ser essencialmente livre está
sempre se esforçando para realizar a liberdade; a vida na qual não existe
separação; que é ela própria a realidade última, uma, integra e eterna. É com esta vida
que me preocupo e de como ela pode ser liberta, afim de que venha a funcionar espontaneamente e a ser estabelecida
na beatitude perdurável. Digo beatitude, porque a felicidade é a
verdadeira consumação da vida, a mais alta realidade atingível por um homem. Ao
falar de tal felicidade, não estou dependendo de teoria alguma. Falo-vos do que
sei e digo-vos de meu próprio conhecimento que, quando houverdes chegado a esse
estágio por vos
haverdes despojado de toda ilusão, então sereis todas as coisas,
tornar-vos-eis unos com toda a humana consecução, esteja ela no futuro ou no
passado. Quando houverdes liberto essa vida dentro de vós mesmos, tereis estabelecido
essa verdade que é felicidade.
A vida é um processo de
desenvolvimento contínuo por meio da escolha; e é assim, quer se seja jovem ou
velho. A juventude e a velhice — ambas têm suas ilusões. Os velhos possuem as
ilusões das superstições ocultas, nas quais tomam refúgio para escapar ao
conflito com a vida. Os jovens de hoje, frequentemente, não têm crença alguma;
revoltam-se contra todas as ortodoxias. Porém esta revolta pode, ela própria,
ser uma ilusão, pois que é, muito frequentemente, somente uma auto-concessão
oculta. A ortodoxia de qualquer espécie implica disciplina; e a revolta contra
a autoridade pode ser simplesmente a revolta contra este estado de coisas. De
modo que, tanto os jovens como os velhos têm suas ilusões peculiares —
encontrando-se as dos velhos no conforto da superstição e a dos jovens no
conforto da descrença. No velho isto conduz à estagnação, ao jovem à revolta
sem objetivo. Quando
houverdes ferido a raiz da ilusão por meio da escolha e do esforço, estareis libertando essa
vida que é a verdade. Não se trata de atingir algo; trata-se de libertar a vida
que já ali está. Libertando a vida de ilusões vós a habilitais a funcionar
livremente através de vós, e assim tereis estabelecido em vós próprios essa
serenidade de pensamento e pureza de emoções que fazem parte da liberdade da
vida. Para ferirdes a raiz da ilusão, necessitais primeiro de saber o que vem a
ser essa raiz. Esta
é o desejo. Apercebei-vos do que são os vossos secretos desejos e
tereis conhecido, então, o que cria as vossas ilusões. Buscai somente desejar
com veracidade — isto é, desejar do
ponto de vista da vida universal, não da vida separada. Quando puderdes
fazer isto, tereis atingido a espécie de desejo que não acalenta ilusões.
Buscar alcançar a verdade
mediante a morte do desejo é o mesmo que destruir as raízes de uma árvore e ao
mesmo tempo esperar que ela dê frescas sombras, fragrância e folhas verdes. Se
destruirdes o desejo, vosso crescimento como seres humanos, será destruído. O
problema é manter e intensificar o desejo, ao mesmo tempo que se impeça de
tomar satisfação na ilusão. Uma vez que possais levar isto a efeito, então
vosso desejo estará liberto. Na maioria das pessoas existe conflito entre o
desejo e os meios de auto-realização que lhe impõem, e assim, em vez do desejo
terminar pela felicidade — como o deveria — termina pela tristeza. E quando
isto acontece, o desejo imediatamente busca o conforto. Isto é, atemorizado pela sua própria eclosão,
busca refúgio contra si mesmo e por esta maneira estabelece um ilusório padrão de
espiritualidade. Com um tal
padrão quase todos se sentem contentes, não se apercebendo que ele não conduz à
consumação da vida, sim, porém, à negação dessa própria consumação. A
espiritualidade que flui da vida evidencia-se a si mesma na conduta. Onde a
espiritualidade for apenas um fugir à vida, há sempre conflito entre ela e a
conduta.
Há três estágios na evolução do
desejo. No primeiro estágio o homem pensa que será feliz se construir casa, se
tiver automóvel, livros, dinheiro. Não condeno esse estágio — é uma tentativa
primária natural, o formular de anseio verdadeiro que a pessoa com ele
relacionada não compreende ainda. O que ela realmente está buscando é uma
beleza e uma felicidade que são impessoais; não se apercebe disso, porém, muito
naturalmente interpreta-o como a busca das posses individuais. Uma tal busca,
porém, implica inveja, cobiça, ódio e exploração dos outros, pois que tem que
ser obtido o que se tem em vista, à custa de outrem, e sendo desta natureza,
tem que cedo ou tarde trazer a desilusão. Tempo há de vir em que o homem
descubra que a felicidade jamais pode ser alcançada por meio da posse de bens;
e quando se apercebe disto, vulgarmente entra no segundo estágio do desejo, a
transferência da ânsia de posses para o reino de coisas mais sutis. Aí o desejo
toma a forma de apego aos confortos espirituais que o projetam contra os
conflitos da existência. E como desejou a riqueza, etc., para protege-lo contra
a luta da existência física, assim procura agora os guias, os gurus, as autoridades, afim de
esquivar-se ao conflito em um nível superior. Isto, porém, por seu turno, tem
que evidenciar-se como ilusório, pois que a única maneira de escapar ao
conflito é a conquista. E assim, o segundo estágio do desejo é também
abandonado e o indivíduo entra no terceiro. (Por favor, recordai-vos de que
estes estágios não são divisões reais. A vida em si mesma não pode ser subdividida
desta maneira. É por simples conveniência que falo deste modo.) O terceiro
estágio parece, a princípio, semelhante à pura negação, pois que representa o
abandono de todas as tentativas para encontrar a felicidade em tudo que estiver
fora de nós mesmos — seja nos confortos físicos exteriores, seja no conforto
espiritual exterior representado pelos Mestres e instrutores. Se, porém,
realmente tivermos a coragem de entrar nele, verificaremos ser ele positivo,
não negativo. Eliminar todo o desejo de auxílio exterior é libertar o verdadeiro
desejo que é o de auxílio que somente
pode ser encontrado dentro de nós mesmos. Isto é o que realmente
estamos buscando a todo o instante, porém sem o sabermos. É o verdadeiro e real
significado da busca de auxílio externo. Quando o desejo é assim posto em
liberdade, a própria vida se liberta. Pois um tal desejo nada mais é do que vida. O verdadeiro desejo é PURO SER, é a mais
alta verdade, a mais elevada espiritualidade, o absoluto. É o entrelaçamento do
amor e da intuição, é Deus, é todas as coisas.
Para libertardes vossos desejos,
portanto, precisais primeiro, ver claramente a espécie de satisfação que eles
exigem, e depois colocar à prova esta satisfação à luz da intuição; isto é,
verificai que valor isso tem em relação com o PURO SER. Então, seguramente,
averiguareis que não pode haver verdadeira interpretação do desejo que faça a sua satisfação depender de
outrem. Somente em vós e por meio de vós mesmos podereis realizar o PURO
SER, de modo que é somente por meio de vossos próprios esforços, pela vossa
continua escolha e atingimento, que podeis atingir a real consumação do desejo
— essa consumação por via da qual a vida, manifestando-se como desejo,
realmente anseia.
Existe somente um meio de prova
para todas as vossas ideias e emoções e esta é o verificar se elas pertencem ao
mundo do eterno; mas a aplicação desta prova significa que deveis pensar e
sentir por vós mesmos, o que é a última das coisas que todos desejam efetuar. Tendes que possuir uma visão independente da
vida; vosso pensamento deve ser original, não meramente mecânico. A chave para
a mais alta realidade é a independência — independência de pensamento, de ação
e sentimento. Por difícil que isto seja deveis coloca-lo em prática sem a isso
vos esquivardes. Crescer é lutar e aquilo pelo qual tendes que lutar não é algo
de negativo com o vosso eu separado, nem se trata de cultivar isoladamente esta
ou aquela qualidade especial. É simplesmente o libertar da vida. A pergunta a
fazer é esta: Flui ele por impulso espontâneo interno, de nada dependendo além
de si mesmo? Somente por esta maneira é a mais alta realidade atingida. Tudo
mais respira desordem, confusão e tristeza. É confinar a vida dentro de
gaiolas, ou, melhor ainda, substituir uma gaiola por outra.
Assim, o homem feliz é aquele que
encontrou sua própria verdade — não a verdade de outrem — o homem que segue a
voz de sua própria intuição que é a Voz do Eterno dentro dele.
Krishnamurti em Acampamento de Ojai, 25 de maio de 1930