Tudo que pode ser dito no
presente momento acerca de Krishnamurti, é, necessariamente, fragmentário. Como
se pode apreender em seu pleno desenvolvimento um pensamento vivo?
Krishnamurti apenas começou a sua
obra. Está jovem, está evoluindo. Que mais terá ele a dizer? Que abismos virá preencher?
Que desenvolvimento se seguirá a tais e tais ideias? Será impossível formular o
conjunto de seu pensamento enquanto não chegar o dia em que o lampejar de seu
espírito haja cessado.
Outras dificuldades surgem da
própria natureza do seu trabalho, pois que somente possuímos, para o fim de
analisar suas ideias, registros estenográficos de palestras íntimas,
conferências e entrevistas. Excetuando os seus poemas e parábolas, raramente
ele próprio escreve. Defrontamo-nos, portanto, com sua palavra falada, consideravelmente modificada,
frequentemente portadora da marca do improviso, e muitas vezes provocada e
condicionada pelas circunstâncias. A vida é apresentada sob formas muito
mistas, aqui como impressões da natureza, ali à maneira de símbolos e
comparações. Por este modo, seu pensamento, que repele as abstrações e a
metafísica, raramente se nos depara em toda a sua nudez.
Ao demais disso, qualquer
julgamento sobre o seu trabalho deve ter em conta dois distintos períodos,
separados pelo ano de 1927, a época em que ele encontrou a si próprio. Os valores destas duas sessões de sua obra
são muito diferentes: a primeira parece refletir os esforços de um ser que
ainda não achou a si mesmo, a segunda é a expressão de alguém que, tendo
encontrado a si mesmo, explora um novo mundo.
Todo o homem que vive uma
experiência nova, encontra grande dificuldade no descrever essa experiência
pelas antigas formas de expressão. E Krishnamurti, como todo o explorador de
regiões desconhecidas, acha-se embaraçado pelas limitações que lhe são impostas
pela terminologia familiar, incapazes de traduzir uma descoberta recente,
especialmente de espécie subjetiva.
Krishnamurti não nos traz uma
nova teoria, nenhuma nova filosofia, porém sim o resultado de uma experiência
viva, de um estudo da vida, assim como da quintessência de sua própria vida, de
toda a vida, de todas as vidas.
Por detrás das palavras que
descrevem essa experiência encontra-se o inexpressável que, no entanto, ele
tenta expressar... Porém como? Por imagens que se seguem umas às outras, que se
contradizem e chocam umas com as outras, que são apanhadas e depois
abandonadas, para serem quem sabe retomadas, todas mais ou menos aproximativas,
inexatas, incompletas. Esta profusão e, ao mesmo tempo, monotonia de imagens,
por detrás das quais evolui o seu pensamento, ele as utiliza em um dado momento
para atribuir diferentes significados a um mesmo termo, e, em outros, para exprimir
a mesma ideia sob diferentes categorias. Desesperadamente o faz, pois que não
pode inventar uma nova língua e por isso Krishnamurti muitas vezes falha no
tornar seu pensamento mais preciso, temendo, por esse processo, falsifica-lo.
Daqui segue-se um certo vaguear pelo qual os pedantes o reprovam, visto
ignorarem a causa que o faz surgir. E como é possível proporcionar uma
definição exata em termos tais como “Vida”, “Eterno”, “Verdade”, “Felicidade”,
que Krishnamurti emprega turno a turno, em um ano falando somente de “Felicidade”,
no ano seguinte da “Vida” ou “Verdade?” Serão estas palavras sinônimas?
Perguntaram-lhe. “Sim” e “Não”,
replica ele, e isto, não com ambiguidade ou obscuridade, mas porque pretende
descrever um mundo que é indescritível e que o seu auditório não pode adivinhar
por não o haver penetrado ainda. O que, porém, ele deseja dizer é perfeitamente
claro e simples, não fala senão daquilo que repete incessantemente, porém que,
para ser verdadeiramente compreendido, deve ser experimentado e vivido, aquilo
que não pertence a qualquer dos domínios da inteligência, das emoções, da arte
ou da ciência, porém que inclui a todas essas coisas, ao passo que as
transcende e não permite limitação ou definição.
Krishnamurti, sendo o primeiro a
reconhecer esta dificuldade convida-nos a estabelecer dentro de nós próprios,
se o quisermos entender, uma harmonia,
um equilíbrio entre a razão e a emoção. O coração, bem como a mente devem
participar do esforço para apanhar essa verdade viva que ele nos apresenta. E é
esta falta de equilíbrio de um lado e a ignorância do outro, em nós (que
Krishnamurti define como a mescla do essencial e do não-essencial) que nos
impede de compreender o verdadeiro significado de suas palavras. Confundimos o
eterno com o transitório, aquilo que é essencial com aquilo que não tem importância
alguma, até esse momento em que o discernimento, que é fruto da experiência,
aparece e torna o conhecimento possível, esse
conhecimento que é o firme equilíbrio entre a mente e o coração. Antes
disto, como um prisioneiro de sua ignorância, dominado pela tirania de seu intelecto, da sua paixão, voltado para uma direção
pela sua razão, para outra pela sua emoção, o homem combate vãmente neste caos.
Sob estas condições, como pode ele alcançar a significação da experiência de
Krishnamurti, julgar seu verdadeiro valor e compreender o sentido das palavras
que a descrevem?
* * *
A dificuldade de compreender
Krishnamurti torna-se maior, aos demais, por causa da aparente simplicidade
daquilo que ele diz, que desvia o auditório, cuja curiosidade intelectual é
iludida por verdades que parecem tão evidentes por si mesmas, tão simples e tão
ao alcance de todos. Apesar disto, se alguém tenta definir o que Krishnamurti
chama “Verdade”, não encontrará fórmula para expressá-lo. Porque, em vez de ser
um resultado final, de acordo com o próprio Krishnamurti, é um processo, uma continuidade,
uma consecução da vida. “Verdade”, neste sentido, não pode ser separada de seu sinônimo
“Vida”. E por isto é que a aparente simplicidade das palavras de Krishnamurti
contém uma infinita complexidade de experiências necessárias das quais o homem
deve participar com seu ser integral. Decifrar essas palavras é vive-las.
Se, por vezes, nossas existências
separadas parecem assemelhar-se muito umas às outras, é porque a maioria delas
não são realmente vividas no
verdadeiro sentido da palavra, que a todo instante nos estamos esforçando por
explicar. São reproduções más das outras existências. Uma pequena ambição
acha-se circunscrita pelo desejo de copiar, de imitar, de fazer o que os outros
fazem. A repetição é um ato privado do princípio criativo. A natureza, porém,
não aspira a copiar, a reproduzir modelos exatos por meio do maquinário. Ela
varia o mesmo tema indefinidamente em completa liberdade, que produz ao mesmo
tempo a unidade e a diversidade do universo. No domínio da psicologia esta
diferenciação cria as características individuais que distinguem o homem das
massas e é esta “uniquidade individual” — aquilo que é único em cada indivíduo
— a que Krishnamurti dá tanta atenção.
* * *
I. de Manziarly - Boletim Internacional da estrela - nº 1 - 1930