A ideologia de Krishnamurti, considerada como uma função de sua adaptabilidade à vida aparece-nos acima de tudo, como ideologia pratica, que se esforça para modificar a vida e alcança êxito em fazê-lo. Não devemos, entretanto, esquecer, que esta mudança deve começar do interior e que a modificação externa da existência é só secundariamente, sua expressão adequada.
O lado especulativo de diferentes filosofias, traduzidas em doutrinas metafisicas e cosmologias, acha-se inteiramente ausente nos ensinos que estamos estudando. Isto está explicado pelo fato de que certas teorias existem, por assim dizer, paralelamente à vida da época na qual foram elaboradas. Não se relacionam, de forma alguma, com a existência transformadora, enquanto que o ensino de Krishnamurti tem, precisamente, por objetivo, tornar a vida mais nobre, mais bela, mais feliz, mais rica, mais essencialmente criativa. É nesta aproximação da vida, é neste esforço para transformá-la que se verifica o caráter dinâmico da ideologia de Krishnamurti.
Ele observa, em diferentes países, a vida social e a vida dos indivíduos e verifica quão caóticas são elas, quão perturbadas, quão cheias de luta, de sofrimento, e de problemas insolúveis. A humanidade achando-se constituída por unidades separadas, medidas algumas universais alcançarão êxito no suavizar essas dificuldades e no solver esses torturantes problemas. Não haverá possibilidade de colocar fim ao caos, enquanto cada indivíduo não houver encontrado a paz dentro de si mesmo. Assim, verificamos que o problema do mundo acha-se reduzido ao problema do indivíduo.
Onde, então, encontraremos a causa dos descontentamentos e dos sofrimentos da caótica existência do indivíduo? Porque é a vida humana tão frequentemente triste, miserável e estéril?
A resposta a esta pergunta fornece um dos mais importantes elementos da concepção de Krishnamurti relativamente ao mundo. Por meio de uma profunda intuição, espécie de revelação interna, chega ele ao enunciado de que todas as manifestações da vida, em todos os reinos da natureza, por toda a parte, se encontra a mesma essência vital, a mesma substância, por assim dizer, da vida. No perfume da flor, assim como na mais sublime das criações do homem.
Esta essência da Vida, seu princípio (Vida com “V” maiúsculo), busca manifestar-se a si mesma em plena fruição, na natureza assim como no homem. Assim como a flor é a mais perfeita manifestação do princípio vital na planta, como um animal brincando demonstra a plenitude de suas forças vitais, assim a felicidade, para o homem, é o preenchimento da vida.
A felicidade que Krishnamurti concebe está muito longe de ser sinônimo de conforto, de consolação, de bem-estar. O preenchimento da vida para ele, significa a tensão de toda a sua energia interna, isto é, criação. A felicidade não é um estado no qual o homem fique ao abrigo de todas as circunstâncias desagradáveis, porém, antes, um estado que o capacita a suportar todas as calamidades da vida. A felicidade concebida como possibilidade de escapar de todas as vicissitudes, só pode ser efêmera, enquanto que, a felicidade que não depende de nenhumas circunstâncias externas, é eterna, inabalável; é uma incorruptível primavera e não um banho quente que se esfria e do qual a água se evapora com o tempo. Felicidade não é contentamento, porém o ponto culminante da manifestação da Vida Eterna, o expandir de todas as energias, de todas as possibilidades. Felicidade é o desabrochar do espírito, é criação. Lá, onde a limitação impede e estrangula a vida, a tristeza, a dor e a doença são encontradas também. A planta provada do brilhar do sol enfraquece-se e murcha; a vida não pode plenamente ser expressa por meio dela; o animal languesce numa gaiola; o homem, agrilhoado pelos seus temores, por deveres impostos do exterior, pelas suas crenças, pela autoridade externa, pelos seus apegos pessoais e preconceitos, torna-se fraco, mesquinho, estéril, e não tem escopo para o exercício de suas faculdades criativas.
Uma das causas do sofrimento do mundo e deste estado de caos, encontra-se, precisamente, nas condições de escravidão interna do homem. A vida nele jamais pode florescer. Limitada em sua manifestação, permanece estéril, e por essa razão os homens ignoram o propósito de seu ser e não encontram a felicidade. Se o mundo precisa ser transformado, se a beleza e a felicidade têm de nele encontrar seu lugar verdadeiro, a vida deve expressar-se a si mesma livremente em cada indivíduo. O homem, cego, descontente com uma existência privada de significação, cheia de angústia, procura por todos os meios possíveis escapar aos seus sofrimentos, procura o ouvido, procura abrigo e satisfação, mesmo que sejam momentâneos e superficiais. Ao mesmo tempo está cheio de medo, atemoriza-se das complicações, das dificuldades, da imensidade da vida. Busca proteger a si mesmo pelas suas crenças, pelas suas teorias, pelos seus dogmas que o capacitam a reduzir a pedaços as rodas das máquinas e coloca-las em compartimentos, de modo que para ele nada haja de inesperado e aflitivo. Com este objetivo torna-se membro de certas sociedades, igrejas, seitas, partidos políticos, acrescentando sempre novas prisões às antigas.
Torna-se escravo da opinião pública, dos dogmas da sua igreja, dos preconceitos de sua classe, do sentimento nacional e de seus próprios prejuízos. Está por toda a parte rodeado de limitações que impedem a expansão da sua mente e de suas emoções, e permanece encerrado em um círculo estreito que não ousa atravessar.
A felicidade, entretanto, consiste na plenitude da vida, nessa plenitude de criação que exige uma plena liberdade interna, e a eliminação de tudo aquilo que paralisa o impulso da mente e as emoções do coração. E assim, chegamos à necessidade da libertação que desempenha tão grande papel na ideologia de Krishnamurti. Ela é indispensável ao preenchimento da Vida. Não é de modo algum destrutiva nem mesmo negativa — como pensam alguns — mas, ao contrário o mais positiva possível. É o princípio ativo que encaminha o homem para a perfeição, a integra e perfeita expressão da Vida, é a sua livre manifestação; consequentemente, o processo da Libertação, torna-se o processo mediante o qual a perfeição da Vida é elaborada. Como se pode esperar atingir essa felicidade, essa Libertação, quando cheio de incerteza e dúvida, se está ainda no reino do caos?
Krishnamurti, pela sua própria pesquisa, pelo seu próprio sofrimento, pelo seu próprio descontentamento, e, finalmente, pelo seu próprio atingir, encontrou a seguinte resposta: o homem precisa descobrir por si mesmo a sua meta última e todos os seus esforços, todos os seus pensamentos, todos os seus sentimentos devem ser dirigidos para essa meta. Porém, o homem somente chegará a este entendimento necessário, após haver passado através de inúmeras lutas, desilusões, sofrimentos. Enquanto ele estiver contente com uma existência mesquinha, apegando-se àquilo que realmente já possui, enquanto a vida não lhe houver demonstrado a vaidade de suas alegrias e a insignificância de seus desejos, deve ele convidar essa dúvida que lhe trará o desgosto de sua mediocridade e o desejo de encontrar a razão do seu ser. Na busca da definição de sua meta suprema, o homem escolhe, rejeita e escolhe novamente; quanto mais escrupulosa for a sua eliminação mais clara será a sua visão. Por essa maneira Krishnamurti descobriu que essa meta eterna, a Verdade absoluta, não é outra senão a Vida única que se torna divina no homem liberto. Somente pode ser atingida por um intenso desejo; o desejo da energia vital de manifestar-se a si mesma. É esse desejo que primariamente dá nascimento à experiência e, depois, a esse conhecimento que é resultado da experiência e, finalmente, à Verdade que é o seu coroamento. Esta Verdade traduzir-se-á a si mesma em uma certeza interior, a autoridade única à qual o homem deve obedecer.
Pela busca da meta eterna, pelo esforço de atingi-la, estabelece-se a ordem no próprio ser humano assim como na existência: desprezando o caos individual, triunfa o homem sobre o caos universal. Liberdade e perfeição acham-se intimamente ligadas uma à outra. Manifestam-se por si mesmas no homem tornado livre, nessa flor de diferenciação humana que Krishnamurti chama a “uniquidade individual. Ele, porém, não dá regras mediante as quais o homem possa chegar a essa perfeição. É somente por meio de uma experiência subjetiva, e pela intensidade de um desejo interno, que cada qual chegará — pelo fato de eliminar de sua vida o não-essencial — a descoberta da verdade eterna. Sem outro guia a não ser o ardor deste desejo, deve o homem lançar-se bravamente na corrente afim de encontrar a si mesmo. Regras concretas somente cristalizariam e limitariam a Verdade e deteriam, por esse modo, o livre movimento de todo o pensamento individual.
Sem outra autoridade que não a dele próprio, ardendo em um grande desejo, não terá que defrontar múltiplos obstáculos, aquele que decidiu descobrir e atingir a verdade eterna?
O tempo prende-o em sua teia. Os homens são o produto do seu passado ao qual se apegam e do qual não serão separados. Ao mesmo tempo o futuro paralisa-os pela sua treva e o seu mistério. Entre os dois o presente desliza, esgueira-se veloz como uma sombra, e esquecem que o presente momento criativo é o único que está dentro do seu poder e domínio. Se, porém, puderem segurar o momento presente e possui-lo, tornar-se-ão capazes de despedaçar os grilhões do tempo. Separar-se-ão do passado como de um fardo inútil e transportar-se-ão a si mesmos para o futuro, no presente, por tornarem-se por si mesmos sua própria meta e assim, perderem-se nela. Terão vendido o tempo e chegado em sua plenitude ao preenchimento da ida, por fim liberta. Então desejarão partilhar sua felicidade com todos, de modo que a Vida possa preencher-se a si mesma em todos e uma nova era de criação possa surgir.
I. de Manziarly - Boletim Internacional da estrela - nº 1 - 1930
(a concluir)