Já fizemos menção da dissolução
da Ordem da Estrela, como gesto que caracteriza a tendência de Krishnamurti
nestes últimos anos. O desejo de liberdade, de redenção. O jovem hindu declara
abertamente que seu único desejo é libertar o indivíduo, incondicional,
absolutamente, libertar o homem de todas essas coisas que o aprisionam
internamente, que o mutilam, que o limitam, afim de que a Vida que está dentro
dele possa encontrar sua livre, criativa expressão. Seu trabalho é, portanto,
essencialmente espiritual e, portanto, incompreensível para aqueles que —
privados de espiritualidade — quiserem dar outro significado às suas palavras.
Em sua linguagem, liberdade é, frequentemente, equivalente de licenciosidade.
Krishnamurti, como Chefe da Ordem
as Estrela, procede à sua abolição por acreditar que a Verdade não pode ser
organizada e por ele próprio não pertencer a nenhuma instituição de propósitos
espirituais. Surgiu a confusão e perguntas impertinentes lhe foram dirigidas.
Esta asserção somente se refere definidamente a instituições de caráter espiritual,
porém não impede o público de acusar Krishnamurti de ser contrário a todas as
instituições, o que o obrigou a declarar que, necessariamente ele utiliza-se
delas como faz uso dos postes de telegrafo.
Um conservador ponderado verá,
entretanto, nestas declarações, uma tendência anarquista, ao passo que um
extremista do partido oposto explorará esta declaração, interpretando-a de modo
errôneo, em favor de suas convicções. Krishnamurti não se preocupa, entretanto,
com a destruição das instituições públicas. Ele concede ao Estado o cuidado da
administração material da nação, porém recusa aceita-la como uma força moral:
exige para o indivíduo o direito de escolher livremente e sem intervenção de
autoridade externa, a direção que deseja seguir internamente. Quando diz revolta,
livramento, liberdade, é às do espírito que ele se refere. Para ele,
revoltar-se, tornar-se livre, não significa atacar primariamente as
instituições legais de um país, porém sim dispensar
internamente todas as muletas, todo o auxílio, todo o abrigo, toda a autoridade.
O primeiro gesto não precisa ser externo porém uma destruição dos nossos
próprios preconceitos, de nossas próprias limitações, de nossos próprios
desejos de domínio. Este é o ponto em foco.
Tendo atingido o momento de sua
liberdade, o homem tornar-se-á um ser novo para o qual o mundo terá tomado um novo significado. O que esse ser virá a
fazer quando chegar a um tal momento, só ele próprio o poderá dizer; profetizar
ou adivinhar, seria vã especulação. Ocupemo-nos com o futuro, sim, porém
somente até ao ponto em que ele estiver contido no momento presente.
O indivíduo (que significa para cada um ele próprio), tratado aqui,
no momento presente, tal é nossa preocupação e nossa tarefa claramente
definida. Não nos é permitido fugir ao acontecimento adiando-o para um futuro
nebuloso onde cada coisa seria miraculosamente disposta para nós. Nem nos
devemos preocupar com os deveres de nosso próximo em relação a nós. É a nossa conduta, a nossa atitude, a nossa
vida diária que deve ser tornada perfeita, isto é, levada a esse ponto onde o
transitório está em harmonia com o eterno. E é precisamente o transitório que
nos permitirá reconhecer o eterno. Simplificai.
Não nos
embaracemos com especulações inúteis, porém vamos diretamente de um
ponto essencial a outro ponto essencial, sem nos perdermos no labirinto dos atalhos.
A vida do espírito exige seus
direitos com tanta insistência como os do corpo. Um homem esfomeado não
pergunta o que os africanos do Timbuctoo estão comendo nesse momento, ou o que
ele próprio irá comer daí a dez anos: ele deseja comer imediatamente. Se a fome
de verdade for igualmente cruel assim, ela nos fará repelir tudo que nos distraia
ou venha adiar a sua satisfação. Notamos aqui como Krishnamurti insiste sobre a
necessidade de tornarmos clara para nós mesmos a aplicação da palavra “essencial”,
e em seguida, escolhermos deliberadamente. Ele convida a cada um a examinar o
que realmente lhe parece de importância primária. Acha-se ele à busca de
riqueza material, popularidade, glória? Ou perfeição espiritual, libertação? Acima
de tudo, não nos permitamos confundi-las umas com as outras ou nos esforçarmos
para atingir ou jogar com ambas as coisas. Assim como todo o ser é
completamente livre, como nenhum juiz se vai pronunciar sobre seus méritos,
pode ele, com toda a segurança, procurar descobrir suas verdadeiras tendências
sem mentir para si mesmo no sentido de adquirir uma ilusória tranquilidade da
mente. Que ele
próprio determine portanto o objeto de sua busca e depois o persiga com todo o
ardor. O único mal real é mentir para si mesmo, tentar conciliar o
inconciliável. A sabedoria de Krishnamurti evidencia-se por si mesma nessa
linha reta, sem transigência, na convergência de todas as tendências em direção
ao ponto essencial. Um ardente desejo é
a necessidade única para uma tal concentração. Isso depende de nós e guia espiritual
algum nos pode servir de ajuda. Regras estabelecidas de conduta, sistemas,
somente podem satisfazer a alguém que espere resposta do exterior. Porém somente a
experiência vivida é que pode proporcionar uma resposta interior que seja de
valor perdurável. É esta descoberta, esta revelação íntima que nos deve dirigir, é nossa vigilância curada que
deve ser nosso verdadeiro guia, advertindo-nos durante o dia inteiro dos erros
que houvermos cometido. Não há leis pré-estabelecidas para guiar o espírito. O
espírito dita suas próprias leis e sopra aonde quer. A execução da nossa tarefa
nos virá provar que soubemos nos aperceber dessa Voz da Vida. A Verdade precisa
ser descoberta: nenhum roteiro trilhado conduz a ela. O Mundo da Verdade é, em
cada caso individual, um mundo ainda não descoberto. Isto não significa que
cada exploração esteja necessariamente sob o domínio da sorte, do acaso, do
caos ou da anarquia. Pelo contrário, a ordem a governa, porém a sua própria ordem
peculiar e os valores estáticos, temporários, são substituídos pelos valores
eternos que são dinâmicos.
É o momento presente que os
encerra. É neste momento que descobriremos o mundo da Verdade, invisível e
contudo real, próximo, porém inacessível para aquele que vive absorto no
passado ou perdido no futuro.
* * *
Que há, então, de novo, no que
Krishnamurti diz?
A expressão desta descoberta
experimental. Porém ela perde o seu sabor de novidade a não ser colhida por
mentes prontas a realizarem uma experiência equivalente. Velhas garrafas
contaminam o vinho novo e aqueles que “se tornaram sábios em coisas infantis”
são incapazes de perceber esta nova frescura. Somente aqueles que são de
espírito rebelde, que só podem sentir-se satisfeitos pela destruição em si
próprios da antiga ordem serão capazes de responder a esta nova efusão do
espírito eterno.
Eis o que Krishnamurti em pessoa
diz sobre o assunto:
“Aqueles que quiserem compreender
meu ponto de vista, que possuem o desejo de atingir aquilo que eu atingi, não
podem de maneira alguma transigir com irrealidades, com as coisas não
essenciais que o rodeiam. Pelo seu próprio desejo estático de atingir, devem
impor a si mesmos a autodisciplina da qual vos vou falar. Quero que isto fique
perfeitamente entendido. Que utilidade tem uma grande hoste de pessoas que
transigem sempre, um número vasto dos que se acham incertos, vagos, atemorizados,
duvidosos? Se três houver que hajam se tornado uma chama da Verdade, que sejam
um perigo para tudo quanto os rodeie e que seja desnecessário, esses três e
mais eu criaremos um novo entendimento, um novo deleite, um novo mundo. Vou à
procura de um, três ou meia dúzia que se achem absolutamente seguros e
determinados, que tenham terminado com todas as transigências. Os outros
seguirão vagarosamente conforme as suas conveniências, por necessitarem sofrer
mais e aprender mais.
O homem, sendo livre, é
integralmente responsável para consigo mesmo, não guiado por plano algum, por
nenhuma autoridade espiritual, por nenhuma dispensação divina, seja ela qual
for. E por ser livre é, em virtude dessa mesma liberdade, limitado. Se não
fosseis livres, teríeis um mundo diferente daquilo que existe presentemente.
Assim como a vontade é livre em todos, é também limitada e pelo fato de o eu
ser mesquinho, sem determinação ou propósito ao começo, escolhe, discerne, tem seus gostos
e desgostos. No remover essa limitação que é autoimposta ao eu reside a glória
do atingimento do Eu, a liberdade do Eu.
Este atingimento não é produzido
pelo êxtase, nem reside no abandonar-nos a trabalhos ou à meditação, no seguir
cegamente a um outro ou na imolação de si próprio a uma causa. Pelo fato de o “Eu”,
o Ser, se achar em processo de consecução, vai ele criando barreiras
entre si e o seu conseguimento, pelo seu ardor, pelas suas lutas, pelo seu
temor, por meio de complicações inúmeras. Para removerdes estas barreiras de
limitação, necessitais de constante apercebimento, vigilância constante, continua auto-reflexão, que deve
ser imposta a vós próprios por vós próprios, jamais por outrem. Se, porém, a
vós próprios disciplinardes inconscientemente, sem saberdes para onde ides,
esta mesma disciplina se tornará uma barreira. Compreendei o propósito da vida
e desse entendimento mesmo surgirá a autodisciplina. A autodisciplina deve
nascer do amor a Vida — vasto, imensurável, integro, incondicionado, sem
limites, ao qual toda a humanidade pertence. Pelo fato de amardes essa
liberdade que é absoluta, que é a própria Verdade, que é a Vida eterna, que é
perfeição, que é incorruptibilidade, que é harmonia; pela própria força
inerente a esse amor, vossa autodisciplina vos tornará incorruptíveis; assim,
precisais alimentar esse amor. A incorruptibilidade do eu é a perfeição da
vida.
Enquanto um homem não for tornado
incorruptível por si mesmo, não conhecerá felicidade, será colhido pelo
cativeiro da amizade e pelo temor da solidão. A fadiga da angústia ainda o
empolgará. É preciso que sejam criados homens pela serenidade e harmonia.
Homens tais devem nascer de nós. Tais homens devem dar nascimento a novas
transformações, devem tornar-se uma chama para queimar todas as escórias das
irrealidade e criarem essa energia terrífica que será um perigo para todas as
coisas não necessárias e infantis.
Para vos tornardes homens assim,
precisais de viver no eterno agora, neste momento da eternidade que não é nem
futuro nem passado. Em vós deve estar concentrado esse entendimento, esse poder
imenso que destruirá as irrealidades, as coisas não essenciais que rodeiam o
eu. Tais homens, por suas vidas, criarão um novo mundo, um novo entendimento. É
vossa vida que importa, o que fazeis, o que pensais, não o que pregais, não a
maneira pela qual projetais uma sombra sobre a face da vida.
Tudo isto pode parecer imenso,
vago, incerto, impossível de alcançar; tendes, porém, que ir-lhe atrás, embora
sejais fracos, embora tenhais as vossas perplexidades, vosso isolamento, vossas
complexidades — essas coisas são pequenas em comparação com o eterno”.
I. de Manziarly - Boletim Internacional da
estrela - nº 1 - 1930