A felicidade que eu desejo estabelecer é a serenidade, que é fruto da grande experiência, do contínuo descontentamento, da grande revolta, do desapego afetivo, do perfeito equilíbrio da mente e das emoções, do absoluto “domínio” do corpo físico. Isto, por outro lado, é o fruto da obediência contínua à voz da intuição, que é o grito da experiência, a essência de toda a inteligência. Designo por inteligência, não o conhecimento adquirido apenas dos livros, mas a inteligência que é a experiência acumulada da vida. Designo como revolta a atitude da mente e da emoção que não se satisfará com a autoridade de outrem, com a urgência em conformar-se, com todas as trincheiras que as civilizações criam para afastar aqueles que não se conformam, com todos os moldes que as religiões, filosofias, leis, impõe a cada indivíduo. A revolta significa a continua aspiração de descobrir a verdade por si mesmo, esse divino descontentamento que será satisfeito unicamente pela descoberta daquilo que perdura através da eternidade. Esse descontentamento é semelhante ao rio que deságua no mar, produzindo sons pelo caminho e satisfazendo a milhares, até perder-se na vastidão do oceano.
Quanto mais alguém se desenvolve menos necessidade tem de se conformar, e quanto mais experiência se tem menos possibilidade há de satisfação própria.
A revolta inteligente é a recusa de repetir as experiências que trouxeram a infelicidade. A verdade nunca está imóvel; está sempre mudando, sempre em movimento, sempre apresentando aspectos diferentes, diferentes faces, ao observador. Daí, haverá sempre continua mudança em nossas ideias sobre a verdade. Como um homem que galga uma montanha, que nas várias fases da ascensão, tem vários aspectos do mesmo vale e, mesmo quando alcança o cume da montanha, ainda mais altos picos lhe restam para galgar, assim é a verdade que varia de fase em fase, que em certo momento está na sombra e, em outro, em pleno fulgor da luz solar. Igualmente, deve existir em nós uma mudança contínua da escuridão para a luz, afim de manter a compreensão da verdade. O conformar-se é um pecado, e a revolta uma virtude.
A conformidade significa ficar satisfeito com uma visão limitada, ainda que bela, enquanto que a revolta significa um subir constante para obter uma visão maior. Nesta subida de um pico para outro, podemos passar pelo vale sombrio da morte, mas, apesar disso, é uma ascensão.
Com a compreensão desta ideia clara na mente — que o objetivo da vida é o estabelecimento do Reino da Felicidade pela revolta inteligente — chegamos à natural conclusão de que não podemos ser felizes si formos ignóbeis. Todas as religiões, todas as filosofias, todas as seitas, oferecem a esperança da recompensa e o temor do castigo afim de induzirem os homens a uma vida nobre.
Dizem: Sede bom e sereis feliz; praticai o mal e sereis desgraçado. É como se induzísseis um jumento a mover-se na direção que desejásseis, agitando uma cenoura sobre o nariz. Isto é por outro lado apelar para o desejo de conformar, que é inerente a todo ser humano. Se fordes desgraçado quereis ser ignóbil, e se fordes feliz precisais ser bom, porque a Felicidade só pode vir através do pensar nobre, do sentir nobre e viver nobre.
Que é o viver nobre? Afim de viverdes nobremente, deveis ter passado através das experiências, aflições, sofrimentos e prazeres de uma vida ignóbil. A vida nobre é o resultado da vida ignóbil. Precisais ter passado pelas sombras da nobreza, como o lótus que aparece à brilhante luz do sol através da lama e do lodo. Apreciamos mais o lótus pelo seu contraste com a lama, de que provém. A beleza das estrelas é aumentada pela escuridão da noite. Do mesmo modo, para compreendermos o encanto da nobreza, devemos nos elevar da lama das coisas ignóbeis e feias.
Viver conformando-se é ignóbil. A nobreza é o fruto das experiências, enquanto que o mero gozo destas experiências mostra a falta de nobreza.
De nada serve esperar que uma criança ou um adolescente seja nobre. O seu crescimento consiste em adquirir e acumular, enquanto que o adulto cresce pela eliminação ou exclusão do inútil. Muita gente está no período de tentar encontrar a felicidade na acumulação de coisas estranhas. Estão, ainda, na completa agonia de encontrar satisfação nas sensações dos seus desejos — físicos, emocionais e mentais. São ignóbeis, enquanto estão satisfeitos com o permanecer naquela condição, ao passo que no momento em que começam a duvidar, passam-se das sombras para os raios de sol. Muitos de nós desejamos encontrar a felicidade, quer seja esta transitória ou estável. À procura desta felicidade, passamos por essas fases que são, usualmente, tidas como maldade ou pecados. Na realidade, não há tal coisa, o bem ou o mal. Há somente ignorância e conhecimento. Toda a ação egoísta é ignorância e dá origem a karma.
As pessoas medianas em procura da felicidade, precipitam nesses prazeres, que são passageiros, a indulgência desses desejos que desaparecem no momento em que são satisfeitos; confundem as sombras que passam com a verdadeira felicidade, e assim, continuamente vivem nelas até que outra experiência — o resultado dessa indulgência — apodera-se deles e quebra-lhes a sua imaginada felicidade.
A compreensão inteligente de todas as experiências significa que não é necessário passar pelas mesmas experiências outra vez.
Toda a ação ignóbil cria uma barreira mental, emocional ou física, entre nós e a verdadeira felicidade que todos nós procuramos. Toda a ação traz consigo a sua correspondente reação, e se essa ação produz uma barreira ou não depende de ser ignóbil ou nobre.
Somente podeis escapar do domínio das coisas passageiras, que trazem no seu bojo dores, prazeres e tristezas — conquistando-as e tornando-vos senhor delas. Como os peixes que são apanhados numa rede má, nós somos envolvidos pelas nossas ações ignóbeis. A falta de nobreza envolve, embaraça e corrompe a nossa visão da felicidade, enquanto que a nobreza põe-nos livres das peias da ignorância — físicas muitas das vezes, mas certamente emocionais e mentais — e afasta todas as barreiras, de modo a termos uma percepção clara do Reino da Felicidade.
Muitos de nós estão inclinados a pensar que as limitações somente existem no plano físico, quando pelo contrário, as limitações iniciam-se pelo mental. O pensar nobre, que é a liberdade da limitação mental, deve preceder o sentimento nobre e a ação nobre. O preconceito embora seja individual, familiar, nacional ou religioso, é uma forma do egoísmo mental e, portanto, uma limitação que não pode produzir felicidade. O homem que encara o mundo sob um ponto de vista acanhado, naturalmente terá uma visão deturpada.
A revolta inteligente que, como eu disse, é o primeiro passo para atingir a felicidade, deve ter lugar na previsão mental da vida e deve ser aplicada aos problemas religiosos, nacionais, sociais ou individuais.
A mesma coisa aplica-se às emoções. Todas as emoções, que são egoístas e pessoais, são embaraçosas limitando-as em seus efeitos, pelo que precisamos aplicar a revolta inteligente às nossas próprias emoções afim de nos livrarmos da sua estorvante influência.
Finalmente, a nossa parte física, subordinada à mente e às emoções encontrará naturalmente a sua liberdade, desde que a mente e as emoções estejam livres.
As três divisões do nosso ser são semelhantes a três janelas, colocadas em diferentes pontos e que são postas em posição adequada para que a luz possa penetrar. Muitas vezes o corpo físico pode ser belo, mas as emoções não são dominadas ou a mente está tão preocupada e acanhada que a vidraça fica suja e a visão deturpada. A felicidade não pode existir se um desses veículos de expressão estiver erradamente ajustado. Um fonógrafo precisa de disco, de agulha no diafragma e de motor para dar movimento, afim de produzir música, e se faltar qualquer uma dessas três coisas, o resultado é desarmonia. Assim os três seres, dentro de nós, são necessários e devem ser harmônicos para que produzam a música da felicidade.
Os pensamentos nobres, atuando através das emoções nobres devem estar unidos para produzirem ações nobres. Se as três janelas forem postas em linha, a visão será perfeita.
Jiddu Krishnamurti, 1930
Jiddu Krishnamurti, 1930